ALMOÇO À LUZ DOS OLHOS

Nem tudo pode ser perfeito. Por que de tantas palavras ditas com sabedoria ébria ou sóbria naquela noite nefasta, no afastado da cidade, ficara mais essa martelando a sua cabecinha, fazendo-o coçar os cabelos emaranhados e secos? Sentou-se na grama como de costume desde o fundamental naquela parte mais isolada das dependências do edifício

Sentiu uma presença atrás de si, uma emanação mais forte que qualquer emanação humana. Era como uma presença intensa que saísse de dentro de si e mesmo que se escondesse estava ali. Sentiu um leve calafrio que lhe arrepiou a penugem da nuca. Ouviu o estalar de um e outro graveto, mas um estalar tímido de quem tomava cuidado para chegar devagar, não assustar. Renato voltou à cabeça por sobre os ombros e viu que o professor Franz o olhava ali atrás, um pouco encurvado, alto, sorrindo triste e silenciosamente com as mãos cruzadas para frente.

_Te procurei a sala de aula; sempre achei que ficava lá durante os intervalos – disse quase em se mover.

Renato levantou-se e disse de um modo encolhido, arfante de ansiedade e felicidade:

_Às vezes fico aqui – e circunvagaram os olhos em volta – aqui ninguém vem.

_Gosta tanto de ficar sozinho – comentou Franz num cerrar das espessas sobrancelhas a cingir uma leve ruga como uma marca entre elas.

Renato olhou fixamente com seus olhos tortos aqueles olhos de assombração que pareciam atenuar numa bondade de observar, esperar sem gesto; a amargura na mascara sutil de expressões tão delicadas e densas. Dir-se-ia que a solidão encostava a ele como sombra feita por arvore.

_Sei que tem razões para ficar triste, Renato, mas saiba que tem sorte – disse Franz aproximando-se com cautela no andar, como uma pessoa que tivesse medo de esmagar insetos. As mãos grandes e ossudas agora se esfregavam uma na outra.

_Sim, eu tenho sorte. Tenho o Charles – confessou ardentemente, sentindo tatalar de asas de um pássaro de fogo dentro do peito; as pernas tremendo, e as mãos como se exaustas de manivelar.

Franz sorriu. Um sorriso tão inibido que era como se não quisesse ser sorriso. Não contaria aquele garoto como de certa maneira – ainda que de outra – suas vidas se pareciam como num retoque que desse a mesma narrativa. Tocou-lhe ao ombro. Ou garoto era muito baixo ou o homem alto demais. Renato sentiu a picada de um carinho no toque daquela mão imensa sobre seu ombro, e um rubor tomou-lhe a face. Uma mão imensa e leve pousada sobre seu ombro, tal como se um enorme pássaro estivesse pousado ali sem desassossego. Os olhos estrábicos de Renato foram do gesto ao rosto de Franz. O achou bonito de arder, embora os olhos dele tivesse aquele tom de assombração, de além tumulo. Morava certa bondade crua e áspera em seu modo de sorrir, de ameaçar falar e suspender o que tencionava dizer no próprio agir dos ombros recurvos. Quando suspirou assumiu um semblante glacial que repeliu o olhar encantado do garoto.

_Charles disse que vai me levar à Londres no final do ano – revelou de repente se lembrando de que confiava no doutor – a mãe dele mora lá. O senhor conhece Londres?

O homem teve um olhar para o céu cinzento e disse:

_Sim, Renato, eu conheço Londres, Berlim, Paris... Algumas cidades europeias.

Ficou absorvido um instante no semblante do homem, um semblante fechado, mas sem casmurrice. Era como se esquecera o tom de sorrir e inutilmente tentasse busca-lo. O nariz muito comprido, os olhos fundos de sobrancelhas cerradas e espessas traziam uns traços de um morto-vivo que se esquecera de se decompor.

_Charles me mostrou fotos. Parece um lugar bonito, muito bonito – disse recuando devagar.

_Não tem dias muito claros – avisou voltando-se o homem com os olhos assombrosos para o rapaz.

Renato abaixou o queixo como afirmando que Charles já o informara.

_O senhor tem parente lá também – perguntou sem suspender a cabeça, fixando os olhos enviesados nos sapatos de bicos quadrados do professor.

Franz lembrou: as flores no centro da mesa. Eu mesma vou buscar as flores, Betty. Clarissa num vestido longo e verde, uma imitação de esmeralda num colar de pescoço alvo. Beijos em seu rosto. Meu lindo Franz, meu menino, e ele tímido, já tenho 32 anos Clarissa, e ela segredou-lhe algo baixinho, sussurrado, eu faço 50, 50 como se no bolo branco as duas velas com o numero não avisasse a todos, mas que o canto dos olhos ao mínimo sorriso e nos cabelos tingidos e longos. Senhora, sim senhor, dizia aos outros, e ele tímido, sempre tímido – como um menino, a voz de Clarissa, segurando uma taça de vinho tinto, sentindo-se deslocado, mesmo no simpático porem simplório apartamento de Clarissa. Procurando uma coluna para se esconder e Richard Dalloway vinha lhe apertar a mão, puxava-o para o circulo , perguntando a frente de outros, em seu tom de voz seco, irlandês, Progredindo em sua Literatura, rapaz?, o risinho era de sabor tão seco como o vinho tinto. Clarissa dava o braço a Richard, sorria enigmaticamente para Franz, quase lhe piscava. Engolia em seco aquele vinho. Medo daquela mulher, medo daquele marido dela, medo daquela cama no quarto dela, a cinta-liga no corpo já curtido, mas até enxuto, Ah como te desejo judeuzinho herege, rouquejava ao ouvido dele, alvoroçando as mãos de unhas cor de sangue a desprender-lhe os botões de sua camisa depois de despir-lhe o paletó.

_Alguns amigos apenas – revelou ao garoto – conhecidos – definiu. Era o sinal do intervalo, mas por um momento acreditou ser Felícia de São Paulo, chamada interurbana a cobrar. Pode, pode ligar até a cobrar, dissera aflito, apertando a mão (suada?) entrando a disparada no vagão do metrô – que o levaria ao aeroporto – como se já fosse partir dali para seu destino em uma seta.

Franz ao deixar o colégio em seu “caidinho” resolveu seguir pelo atalho do ônibus, e era do outro lado da estação. Com as mãos grandes ao volante, dentro do carro um pouco empoeirado, ele sentiu o coração bater mais forte, mas junto ao prédio havia uma placa de “Não estacione”, contudo era bem permitido junto a uma loja de livros usados. E olhando a vitrine da loja de livros usados acabou esquecendo. Afinal não teria coragem. E o que perguntaria na portaria? Riu-se e fez-se convencer que o motivo que dera toda aquela volta fora para entra aquele Sebo e comprar algum livro bom e barato. Talvez algum para Renato. Renato, Renato, cismava seu pensamento , andando pelas trilhas margeadas de estantes abarrotadas até quase o teto de livros de lombadas gastas. Havia ainda uma pirâmide feitas de livros, de encadernação dura e vermelha. Aproximou-se com as mãos ao bolso da calça. Eram clássicos do período romântico: Dickens, Victor Hugo, José de Alencar, Lamartine, Stendhal, entre outros. Dickens, sorriu lembrando-se do seu livro favorito desde a infância: David Copperfield. Como lera e relera aquela brochura imensa, em seu quarto, era-lhe uma companhia grandiosa nas noites insone. Deixava o minguado abajur na cabeceira aceso, e por aquela quadrangular de luz ele lia as aventuras e desventuras do jovem órfão, perdido, tão perdido como ele próprio, mas ele não era órfão. Seu quarto era um tanto úmido, sua cidade lá no frio interior paulista. Será que sua mãe ainda espanava as teias de aranhas pelos cotovelos das paredes, pensou assoprando uma que cruzava entre uma estante e outra na loja de cheiro embolorado. Lâmpadas florescentes pareciam piscar azuladas no teto quadrado e fazendo pirilimpar junto com a atmosfera. Apareceu à frente dele uma mocinha ruiva e sardenta de guarda-pó sobre o vestido preto, com os braços cruzados para trás.

_Procura por algo especial senhor – perguntou-lhe sorrindo.

_Ah... bom...sim, bem não sei – foi hesitante Franz. A bonequinha de porcelana a sua frente parecia irreal àquele ambiente de arca antiga.

_Fique a vontade – respondeu ela sorrindo simpática – qualquer coisa que precisar é só me procurar ali ao balcão – e apontou a direção atrás de uma banca repleta de revistas velhas e ensebadas. Desapareceu, e ele não soube bem por onde. A voz dela, suave como uma musica de caixinha de toucador, ainda ficara insistindo em sua lembrança como o aroma de um perfume bom. Espirrou de súbito, devido ao cheiro embolorado de mofo e tudo um pouco se espatifou como as mãos serenas de sua mãe agindo com a flanela.

Renato tinha algo de Oliver Twist misturado com uma personagem de um romance de sua autoria, pensou com o livro de capa até conservada na mão, que achou sobre o balcão dos seminovos. Não, não darei a Renato um romance que escrevi, publicado há seis anos, que por acaso fora parar naquele Sebo. Abriu o livro e havia uma assinatura na folha de rosto “Lorena de Vaz Leme” e uma data que era o ano retrasado. Assustou-se franzindo o cenho: Lorena não gostara de seu livro, para vendê-lo ou trocá-lo por outro naquele Sebo. Folheou a brochura: não muito volumoso e viu escrito a lápis na pagina em branco do final “Como alguém escreve uma historia tão nojenta, tão sem graça e sem nexo. De asqueroso mau gosto”. Riu saboreando a critica.

Dentro do carro, que dirigia, lançou um olhar para o livro atirado ao banco ao seu lado. Uma capa um tanto que grosseira, um desenho que ou era um caracol ou um simples espiral. Daria o livro a Renato. Lembrou-se do vulto sensual mexendo-se naquela janela de vidro embaçado. Ou seria embaçada a atmosfera pela fumaça diesel do subúrbio? A flanela amarela agia lépida, insistente, desmaculando mognos e cerejeiras aromatizadas. Seguiam-se dias assim cotidianamente.

Amanhã iria de ônibus, decidiu-se.

Em seu apartamento, sozinho, logo se viu de cuecão, as pernas compridas e magras bem pálidas a amostra; os pés achatados e grandes descalços; o peito magro, cavo, liso. Bebia café nu copo afunilado, sentando em frente ao seu notebook aberto sobre a mesa. Uma estante pequena com alguns livros mal arrumados ao seu lado. Poucas coisas. Um aparelho de som antigo numa estação de rádio que tocava musica instrumental. Planejava aulas ou pensava num próximo conto. Havia alguns empilhados em papeis que ele esquecera-se de revisar para ver se podia ser possível. Coçou o queixo. Podia advogar, voltar a mofar – como os livros imprestáveis – atrás daquela mesa no Instituto de seguros. Melhor lecionar. O parco salário, algumas horas à toa para escrever. Lembrou-se da escola publica onde dá aula também. Fala de Filosofia para uma turma de adultos num curso rápido de ensino médio. Rostos interrogativos, cabelos brancos. Sempre ganha uma maçã. São carinhosos. O senhor parece um homem triste, dizia uma senhora e lhe trazia docinhos que ela mesma fazia. Bom, bom, mas nunca dissera, não revelando se era ou não triste. Charles é o loirinho cabeludo, lembrou-se, mas havia outro cabeludo naquela mesma instituição, foi cismando a coçar o nariz comprido, observar bem a tela com nada escrito. Danilo, sim Danilo. O que adotou Renato é o loirinho neto da professora Helena, convenceu-se num gesto de balançar a cabeça como se conversasse mentalmente com um interlocutor. Sim Charles lhe contara aquela grande história : o pai era um punk alemão que cravou a marca da sua bota nos escombros do muro derrubado. Dai puxava-se um fio para uma grande história. Reminiscências e os dedos longos procuraram as teclas, mas desviou os olhos para as pastas abarrotadas por cima da estante: seus manuscritos, sentado na cama, curvado. Renato leria o seu primeiro romance impresso. Acreditaria que era uma historia de horror. Talvez Charles e Danilo gostassem também. Seu Oswaldo lá da EJA com certeza não. Por que tantos dispares assim.

O sono veio tarde. Jantou um leve creme de aspargos. Tomou um banho morno, vestiu a parte de baixo do seu pijama de flanela e deitou sobre a cama mal forrada no outro cômodo do flat apertado em que vivia, o livro que daria a Renato nas mãos, O senhor que escreveu! Imaginou a vozinha frágil dele. Garoto triste. Mundo triste. Nascido com o vírus da AIDS. Que sentimentos gladiavam no intimo daquele garoto? Já nascer com uma doença sexualmente transmissível. Bom, o tal Charles gosta dele mesmo, acreditou com esperança. Será que existe esperança para nós, perguntou-se e era como ver o cinto do pai sobre o espaldar durante o almoço e o jantar, as mãos duras e calejadas, a voz áspera, Franz coma tudo e não roa os ossos da galinha, rapaz. A mãe e suas mãos para flanelas e panos de pratos. Deus, Deus. Abrahão e seu sacrifício. Moises e Davi os heróis do povo judeu. Crucificaram Cristo, ouvira muitas vezes e sempre se calara omitindo que era um desses, se o visse nu talvez percebesse pelo pênis circuncisado.

A lâmpada apagada, mas o sono não tombava com sua mente fervilhando. Felícia pegando-lhe o rosto entre as mãos, beijando-o, o corpo dos dois colados. Dentro do quarto dele, daquele quarto pequeno e úmido na casa paterna. Ainda podia sentir a brisa ainda mais úmida, quase molhada que vinha da janela esquecida aberta. Uma tarde após tempestade, o céu colorira de um tom rosa metamorfoseando toda atmosfera. Sentiu uma agonia, uma pressão, um frio ardoroso na barriga, Não, não Felícia eu sou impotente, mas sentia o membro em ereção, como agora, vivo, insistente, parte independente quase. Possuíra Clarissa, mas sentira o membro arder como se penetrasse argila. Ela o convidara para aquele chá, os olhos pintados como a meretriz daquela fabula grande que lera na infância, as mãos de unhas longas num tom encarnado como os lábios, unhas que prendiam seu animal vivo para que ficasse assim desperto, atento. Felícia eu tenho vergonha, dissera a ela, desvencilhando-se com veemência, debruçando-se a janela, respirando em grandes haustos o vento frio do crepúsculo manchado de rosa. Ele ouvia respiração cansada dela atrás de si, talvez cresse ele um louco, um idiota. Namorava muito a aliança que ele pôs ao dedo dela.

Foi de ônibus mesmo. Parecia engraçado, mas lá estavam as mesmas pessoas que frequentavam aquele mesmo ponto, aquela mesma hora, durante aquele tempo que ele realmente precisara. Agora ele queria o reencontro com aquele espectro que parecia fazer o mesmo usual gesto no exato momento em que o ônibus ficasse detido aquele ponto por mais tempo. As mesmas moças maquiadas, com decotes que deixavam os bustos a explodir por fora da blusa, olharam-no com aquele jeito que pediam, e examinavam-no de cima a baixo, sorriam de um modo a convidar, querendo-o a rir entre elas sem desviarem os olhos, deixando-o encabulado e cismado, ruborizado. Aqueles faziam sinal, ele podia continuar com suas mãos no bolso do paletó. Ouviu um cochicho entre as moças maquiadas, atrás dele, quando subia o coletivo ele deve ter lindas mãos, e que mãos, isto o fez enrubescer ainda mais, e acompanhado daquelas risotas.

O diferente foi que encontrou um lugar a janela vaga logo de primeira. Encolheu-se, recurvo, segurando a bolsa-maleta entre os joelhos. Seu coração disparou quando o coletivo parou naquele ponto junto à estação do trem, demorando-se no embarque e desembarque de alguns passageiros, e lá estava a janela com o vulto além da estação. Só que o vulto agora parecia bem mais nítido, afastando a cortina ou os cabelos e parecia ter um cigarro entre os dedos. Pareceu soprar a fumaça com intenção de chegar à direção onde ele estava, mas podia e devia ser por que Franz olhava fixamente, e o movimento brusco do coletivo arrancando novamente o despertou como de um sono em que se encontrava.

O Dr. Franz então lhe sorriu detrás de sua mesa, fechando o livro de capa grossa. Renato sentiu-se encorajado em se aproximar, mesmo assustado com aqueles olhos de assombração.

_Que livro é este – perguntou tímido.

_Livro de direito. Código penal – disse olhando dele para o livro. E o garoto fez um leve ar de tola compreensão nos olhos enviesados.

_Por que não fica com os outros na hora do intervalo – quis saber Franz, mas o rapazinho baixou os olhos como enormemente envergonhado de mostrar que não tinha amigos ali no colégio, e disse que preferia ficar só. A tristeza morava no rosto de pouca beleza do garoto como um estigma de uma doença crônica.

Franz mexeu em sua bolsa sobre a mesa, avisando que lhe trouxera um livro, e os olhos tortos do garoto admiravam as mãos grandes e ossudas do homem. Recebeu o livro com as mãos tremulas. Os olhos do professor buscaram o semblante do rapaz lendo a capa do livro.

_O autor tem o seu nome, professor – e dançando dentro das orbitas os olhos vesgos – é o senhor mesmo o autor!

Franz sorriu desconsertado, enrubescendo levemente.

_Sim, Renato...Eu sou...bom – espalmou as mãos sobre a mesa, sorriu inibidamente – acho que sou um escritor.

_O Charles nem sabe não é – comentou levando o livro junto ao peito como um objeto que tentasse afagar.

Encostando-se mais a vontade no espaldar da cadeira, Franz foi dizendo que não, achava que Charles não sabia.

_O senhor autografa para mim – perguntou emocionado com doçura tremula na voz. Franz ficou tocado, sorriu e circunspecto abriu a folha do rosto do livro, riscando a antiga assinatura – o pomo alto no gogo subindo e descendo – e escreveu para Renato, um querido e novo leitor, que com certeza saberá amar e cuidar melhor do conteúdo deste livro, ansiando e podendo encontrar a sua razão. Do seu amado professor, Franz K. Entregou-lhe o livro que o garoto pegou com delicadeza, os olhos desviando-se encabulado, abrindo a capa e lendo a mensagem, abrindo um sorriso no rosto desolado. Aquela fealdade era de uma compaixão que Franz sentia dor no amago como se lhe pisassem no coração.

_Vou ler com muito carinho, professor – disse arfante, fanho, embargado na docilidade e fragilidade da voz – e vou mostrar ao Charles – acrescentou ainda com um tom de voz mais esganiçado.

Franz sorriu, enquanto o silencio desabou sobre ambos. Renato exalava emoção pelo arfar continuo, um sorriso inquieto e desconcertante nos lábios; um chiado de sintonia se procurando, até que a mão enorme de Franz foi até a miúda mão do menino abandonada sobre a mesa, e cobriu-a. Renato olhou o gesto, sentindo uma picada de carinho e desviou os olhos vesgos como que envergonhado da sua ausência de beleza, mas deixou e foi gostando que mão de Franz afagasse a sua. Sentiu-se tomado por uma doçura nova, tão nova quanto o gosto secreto de um vinho novo como a musica do Black Sabbath que fora o sinal de que dentro de si as coisas se transformavam.

O silencio rangeu lá fora entre queda e farfalhar das folhas das arvores, ou como o sopro próprio do vento concertando uma canção para palavras que jamais nasceriam por mesmo não haver necessidade de serem ditas. Palavras entocadas dentro dos olhos assombrosos e dos olhos vesgos que se entreolhavam num dialogo que o próprio afago das mãos é que era. E de súbito Renato se afastou, ardendo de certo constrangimento, mas muito feliz, voltando a sua cadeira, abraçado ao livro.

Aceitou a carona de Franz à saída. Dentro daquele carro humilde, cheirando a enciclopédia, Renato não parava de admirar as mãos, o perfil de Franz. Não conseguia falar, estremecia um pouco por dentro e ouvia a voz do homem que conduzia o carro, a voz mansa, pausada, soturna como vindo de um sonho antigo. Solitário, ele dissera assim depois de um pronome e de um verbo.

_Não gostaria de almoçar, comigo, Renato – convidou Franz.

_Almoçar com o senhor – perguntou-se o perguntando o menino, hirto no banco ao lado no automóvel, segurando sua mochila como quem se segura num escudo.

_Sua família deve estar esperando não é – disse ele num tom leve de desanimo. E Renato pensou: Conrado fora, Virginia talvez presente-ausente como sempre, olhando-o com comiseração. Charles, o adorado Charles por ai pela rua...

_Adoraria almoçar com o senhor – respondeu – se o senhor quiser – e enrubesceu ante a ousadia.

Franz sorriu, desviando um pouco os olhos da direção para ele, dobrou uma rua à direita dizendo:

_Conheço um restaurante aconchegante. Servem um perfeito prato de saladas. Sabe, Renato, eu sou vegetariano, mas tudo bem servem carnes lá também.

_Eu vou comer o que o senhor comer – disse empertigando-se um pouco no assento do carro.

Renato ficou deslumbrado com o salão do restaurante com mesas de madeiras forradas com toalhas em vermelho e branco xadrez; as paredes forradas de madeiras. Pelos cantos havia balcões com garrafas de bebidas dependuradas. Um garçom gorducho, com avental branco sobre uma camisa branca e calça preta, recebeu-os da porta e os conduziu até uma mesa. O ambiente estava quase cheio, e da atmosfera, além de sons de talheres e copos tilintando, exalava um som ambiente, uma musica instrumental doce, compungida. Franz puxou a cadeira para que Renato se sentasse. Franz sentou-se a frente dele, afrouxando um pouco o nó da gravata. Pegando o cardápio sobre a mesa, Franz pediu ao garçom uma salada de brócolis americana com um mousse de aspargos. Renato pediu o mesmo, embora Franz insistisse para que ele comesse carne ou frango, mesmo peixe.

_Não, eu quero comer mousse de aspargos – disse tolhido, mas num tom decidido, reparando que os olhos bovinos do garçom gorducho insistiam nele, certamente reparando seu uniforme colegial, seu ar de menino feio, vesgo e desajeitado, desabituado ao ambiente.

Logo os pratos chegaram numa bandeja. Franz pediu um vinho licoroso para acompanhar, e Renato um suco de manga, que veio num copo de quase um litro.

_Gostei do ambiente, professor – respondeu o garoto timidamente, pegando os talheres sem muito jeito.

_Quando estou com dinheiro almoço aqui – respondeu Franz já provando do prato.

_O senhor é escritor – exclamou Renato num sussurro quase, mexendo tímido a comida com o garfo; desviou os olhos para a mão do homem estendida sobre a toalha da mesa: os dedos compridos de unhas oblongas e bem polidas; escutou um pigarrear seco vindo dele, e mesma mão que estava estendida levantou-se suspendendo a taça pela haste, levando-o a boca. O garoto reparava as sobrancelhas espessas, escuras do professor, o vinco no meio da testa.

_A Literatura é tudo que eu tenho – confessou Franz num rouco tom de voz apaixonado – e a docência também...

_O Charles me disse que o senhor é advogado – comentou Renato com um tom de pudor perceptível na voz, os olhos estrábicos como que buscando outras paisagens.

_Sim, sim, mas não pretendo advogar – respondeu estendendo a mão novamente sobre a mesa, os dedos tamborilaram. A taça com o vinho cor de sangue descia sua fita fimbria pelo recuo.

_Renato, você havia me feito uma pergunta dias desse – foi falando Franz enquanto pegava a garrafa de vinho dentro do baldinho com gelo e enchia mais sua taça – e eu acho que não te respondi.

_Já fiz tantas perguntas ao senhor – observou um pouco acanhado, de súbito lembrando-se que era magico, quase um sonho que estivesse ali almoçando com ele. Um homem bonito apesar dos olhos assombrosos, foi seu pensamento cismando, o coração dando um tranco emocionado, pareceu mesmo chutar algo invisível debaixo da mesa, deixando escapar uma risadinha como afetado por cocegas.

_Não gostaria de um pouco de vinho, Renato – perguntou Franz suspendendo a garrafa.

_Charles diz que não é bom – respondeu num tom fragilizado de voz. Franz sorriu, encheu mais sua taça. Os olhos vesgos do garoto embeveceram pelo gesto delicado do professor. Era macio nos gestos aquele homem, quase pausado, sereno, mesmo como se o tempo não o interessasse.

_O Charles é muito importante para você – comentou.

_Somos como irmãos – respondeu Renato ufano, depois de ter engolido um bom pedaço do mousse de aspargos.

A mão de Franz foi novamente até a mesa, estendeu-se e pegou a mãozinha pequena de Renato, tomando-a na sua grande, e ficou alisando os dedinhos trêmulos e frágeis do rapazinho raquítico. Franz sentiu nos seus aqueles olhos vesgos e amedrontados que num sorriso tremulo acedia a sutil caricia.

_Ah, Renato, você ainda tem dezessete anos, e eu já estou com trinta e oito, e me sinto assim como você muitas vezes: um menino assustado com a imensidão do mundo e a nossa existência tão ínfima e insignificante. Não casei, não tive filhos – suspirou, agarrou com as duas mãos imensas a mãozinha em garrancho do rapaz – somos parecidos Renato, somos parecidos.

_Não, não, o senhor é muito bonito – respondeu gaguejando o garoto, arfante, enrubescendo, mas cheio de coragem na confissão.

Franz riu, largando a mão do garoto, encostou-se mais empertigado a cadeira.

_Não, não Renato, eu não sou bonito – dizia e enrubescia – sou magro demais para minha altura. Olhe minhas orelhas grandes e pontudas. Sou judeu, careta, misantropo, quase um ranzinza também. Sou um saco de intolerância. Tudo me aborrece.

_Mas o senhor é bom, me convidou para almoçar – lembrou o menino.

_Sim, sim, eu gosto das pessoas; anseio tanto por companhias, mas ao mesmo tempo me sinto aflito perto delas – confessou.

_Está se sentindo aflito perto de mim – quis saber o menino tolhidamente.

_Não, não...mas, sei lá – o pomo subiu alto na garganta. Ia falar de mulheres. Não tinha mulher. Estava vivendo sem sexo há alguns anos. Um anacoreta!

_Esqueça o que eu disse – falou de súbito num gesto ousado com as mãos – vamos pedir uma sobremesa – e apoiou os cotovelos sobre a mesa, sorriu para Renato que o devolveu o sorriso.

Dentro do carro em movimento, olhando as mãos compridas de Franz, Renato comentou que foi muito boa à tarde, o almoço, a companhia dele.

_Eu que agradeço sua companhia, Renato – disse Franz num sorriso – você é muito agradável.

_O senhor mora sozinho –perguntou do seu modo sempre tolhido, agarrado a sua mochila.

_Moro. Gostaria de conhecer meu apartamento qualquer dia desses?

_Seria bom – respondeu o rapazinho pigarreando desconsertado, observando um pouco mais as mãos do homem no volante – o senhor deve ter muitos livros.

_Alguns, mas de conteúdo pouco agradável a você – falou desviando os olhos assombrosos para o garoto.

Ele tem o cheiro das enciclopédias, mas o livro comprado num Sebo tinha o aroma de arca antiga. Seu professor. Sentou-se na cama, e ouviu conversas lá fora ao pé da escada, vindo pela porta entreaberta. Virginia admirava-se de Conrado àquela hora em casa. Estalos de beijos tímidos. E o menino, perguntava, e ela respondendo, almoçou fora, disse que o professor de Filosofia o convidou, ainda emendou em meio a um grande suspiro. Um pouco na ponta dos pés, Renato foi até a porta entreaberta e fechou-a. Assim não ouvia mais nada. Daqui a pouco, Charles chegaria. Se trouxesse Thiago? Ficar-se-ia olhando, olhando, olhando para ele com aquele risinho debochado. Sou veado, assim dizem as pessoas, pensou consciente e baixo, achando graça da descoberta.

Rodney Aragão