OS RETRATOS

Ele não queria viver as amarguras todas de uma sina pobre. Por isso, cumpria com destreza seu papel de clone. Dirigia seu carro popular (mas novinho), comia no mesmo restaurante que os doutores da clínica de estética ao lado, comprava suas roupas no shopping classe A da esquina de cima.

Perscrutando imperfeições ao espelho, passava horas e horas fazendo cálculos para encaixar a próxima plástica no orçamento perigosamente comprometido com perfumes franceses, clareamento dentário, academias e cotas de clubes nobres.

Jamais sofria ante dores alheias, pois sequer percebia as próprias, ciente de que a vida assopra a ferida que faz. Bastava a paciência de esperar; a mesma paciência que se deve ter para a deflagração de uma vingança definitiva.

E o celular tocou, quebrando o silêncio daquela tarde enfadonha de domingo...

- Pedro, é Guilhermina. Precisamos conversar. Tenho uma proposta a lhe fazer. Pode me encontrar daqui a uma hora, naquele bar de sempre?

- Tudo bem.

O convite veio a calhar, estava mesmo disposto a sair um pouco. Tomou seu faustuoso banho de essências caras, vestiu a roupa nova que lhe custara doze meses de prestações no cartão de crédito e seguiu rumo ao bar, em seu carro preto e rutilante.

Quando chegou, a senhora já estava à sua espera.

- Olá, Guilhermina! Que saudade! Há muito tempo desde nosso último encontro.

- Não compartilho da mesma sensação. Mas vamos direto ao assunto. Como disse, tenho uma proposta a lhe fazer. É que Marcelo, meu marido...

- O garotão vinte anos mais moço que pegou para criar?

- Poupe-me de suas ironias tolas. Afinal, você tem quase a mesma idade dele e já me quis.

- Sim, você é uma mulher atraente. E sua conta bancária, mais ainda!

Guilhermina, sorrindo:

- Pelo menos é um canalha sincero... Bem, suspeito que Marcelo esteja envolvido com a funcionária de uma floricultura perto de casa. Uma jovem muito bonita, apesar de todo o ranço da pobreza. Estão amigos demais, trocando gentilezas demais e não quero correr riscos. Você é a pessoa indicada para me ajudar; tem beleza e charme suficientes para encantar Letícia, a tal moça. E caso aceite o jogo, aparecerá em sua vida com um belo carro importado. Isso impressiona quase toda mulher.

- Mas o carro será meu?

- Claro! Com IPVA e outras despesas pagas por três anos. E se conseguir seduzi-la, terá mais cinquenta mil em sua conta. O que acha?

- Mulher! Que homem gostoso esse Marcelo, hein?

Sorriu cinicamente e concluiu:

- Eu já aceitei!

- Ótimo. Vou lhe passar todas as instruções.

Conversaram por algumas horas, articulando os detalhes do plano.

Na segunda-feira, pela manhã, Pedro foi à floricultura e logo avistou uma linda moça, que preparava um arranjo de verbenas. Pelas características dadas por Guilhermina, concluiu tratar-se de Letícia. Apresentou-se, dizendo-se interessado em adquirir um buquê como aquele e a partir de então, iniciou-se um promissor relacionamento. A afeição foi recíproca, havia algo de intenso no olhar da florista que o encantava e ela, por sua vez, deixava claro que sentia algo especial por ele. Uma intimidade inexplicável norteava aquela convivência plena de encantamento.

Pedro abriu seu coração para Letícia, confidenciando-lhe detalhes que jamais contara a outra pessoa: sobre sua relação conflituosa com a mãe falecida, que dera seus sete irmãos de pais diferentes para que famílias desconhecidas criassem e só ficou com ele porque ninguém o quis; sobre seu medo exagerado de desagradar aqueles pelos quais tinha algum interesse social ou financeiro; a vaidade exacerbada que usava como subterfúgio para esconder frustrações; sobre a coragem que dizia ter e que, no fundo, era tola mentira; enfim, com Letícia, Pedro descobriu-se humano.

Os encontros eram frequentes, as afinidades expandiam-se mais e mais... Ah! Estariam apaixonados? Em um desses encontros, Letícia lhe falou sobre a simpatia que nutria por Marcelo, que mesmo sendo tão rico, tratava-a como gente, atitude rara nos abastados da zona sul.

Teve a certeza de que não havia romance entre eles. Porém, decidiu omitir tal verdade para Guilhermina; desejava... como desejava um carro importado! Quanto à florista, talvez um dia criasse coragem e contasse tudo...

Até que, finalmente, a admiração, as afinidades e todo o encantamento levaram o casal às sendas do sexo. Tornaram-se ardentes amantes! Guilhermina ficou satisfeitíssima com o trabalho do rapaz e cumpriu com entusiasmo a outra parte do acordo, recheando sua conta com cinquenta mil reais!

Passaram-se alguns meses...

Era um sábado chuvoso. Letícia, a observar, da janela, os pingos furiosos que se quebravam contra o chão, trazia nas feições uma tristeza indisfarçável e no colo, um álbum de fotografias. Pedro aproximou-se, indagando sobre o motivo daquela angústia.

- Você sabe, meu querido, que fui adotada, que jamais conheci meus pais...

- Não fique assim. Já lhe falei da mãe que tive...

- Meus pais adotivos me deram essas fotos de minha mãe biológica e sempre que as vejo, eu me entristeço muito. Olhe.

O moço tomou-as das mãos da amante e ao fitá-las, os olhos esgazeados inundaram-se de lágrimas! Tremores dos pés à cabeça! Depois de toda uma vida aprisionado no vazio dos valores aparentes, mal pôde sorver a delícia dos valores sentidos, dele extirpados com requintes de crueldade...

E engoliu grifes, carro, clareamento, plásticas, academias, cotas de clube, conta bancária e perfumes franceses, que se dissolveram na infectada e incurável ferida aberta na alma, ao reconhecer a própria mãe naqueles malditos retratos.

Marco Aurelio Vieira
Enviado por Marco Aurelio Vieira em 10/07/2012
Código do texto: T3769840
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