ENCONTRO

PARTE 1

Ela havia acordado cedo novamente.

Sabia que tinha que estar de pé, antes do seu filho pequeno acordar e mesmo que tivesse se esquecido disso, o despertador que berrava ao seu lado e que ela desligou com um solavanco, sem sequer olhar que horas eram (mas ela sabia, era sempre a mesma hora) não a deixaria esquecer.

Virou de lado e esticou seu braço, encontrando apenas o travesseiro para abraçar. Riu sozinha, um riso tímido, curto, triste, quase uma caricatura de um sorriso, mais para uma careta. Não sabia exatamente que horas eram, mas o pequeno e brilhante feixe de luz que se insinuava pela fresta da janela anunciava que ela já deveria estar em pé.

Fechou os olhos e desejou que o tempo voltasse, não precisava ser muito, mas só um pouco, só o suficiente para que ela pudesse refazer algumas escolhas. Sentia-se presa, como um pássaro que sabe que suas asas lhes foram dadas para que alçasse grandes voos, mas que foi preso, engaiolado e não pode mais fazer o que nasceu para fazer.

Abriu os olhos e notou que o tempo havia mesmo se mexido, mas ido para frente, encurtando mais ainda seu dia. Levantou-se, foi até o banheiro e se deteve em frente ao espelho. Ali uma moça linda, com olhos verdes um pouco apagados a encarava e nesses olhos ela via, bem lá no fundo, quase que totalmente esquecidos, sonhos e desejos que a vida foi forçando-a a deixar para trás.

Abaixou seu rosto e começou a lavá-lo, esperando que a água fria que escorria pela pia pudesse levar consigo esses pensamentos que a entristeciam tanto ou que pelo menos a frieza da água pudesse amortecer um pouco a dor que ameaçava tomar seu coração.

Ela ficou um tempo ali, de cabeça baixa, sentindo a água fria em sua pele, envergonhada sem saber ao certo com o que e aproveitando as gotas que escorriam de seu rosto para deixar que umas poucas lágrimas pudessem escapar de seus olhos, disfarçadas entre outras tantas gotas.

E foi ali, no mesmo banheiro onde todas as suas manhãs começavam, tão iguais umas as outras que ela fez o mesmo de sempre, mas alheia ao fato de que algo externo a ela começava a acontecer, um movimento invisível que agora que havia começado não poderia mais parar e, sinceramente, se ela soubesse da existência dele, não pediria que parasse.

Já pronta voltou ao quarto e se vestiu com um vestido casual e foi até a janela. Ao abri-la, a luz do dia ofuscou um pouco seus olhos claros que logo se acostumaram e viram o movimento da rua em frente ao prédio onde morava.

Alguma coisa estava diferente, ela não sabia dizer o que era, mas sua intuição dizia que havia algo diferente. Não sabia se era o voo de um grupo de gaivotas indo em direção ao mar e as evoluções que elas faziam no ar, um ruído diferente ou uma estranha ausência de som ou o movimento formado pelas pessoas indo e vindo pelos seus caminhos, mas algo estava... diferente. Tomada por uma vontade súbita, resolveu que deixaria seu filho na escola e sairia fotografar. Era como se sentisse que algo teria que ser registrado, algo iria acontecer e precisava dela para registrar e dar testemunho disso, ou melhor, precisava dela para ser parte do que iria acontecer...

PARTE 2

O despertador dele ficava longe do alcance de suas mãos (isso era intencional já que várias vezes ele havia desligado sem notar e perdido hora), mas perto o suficiente para que o som o acordasse. Deixando longe, ele era obrigado a levantar para desligar, uma tática que ele havia desenvolvido para evitar aqueles cinco minutos a mais que várias vezes se transformaram em 15, 20, 30 minutos a mais...

Seu humor na parte da manhã tinha a tendência de ser terrível e ele já havia se habituado a isso e ao pessimismo que já fazia parte de sua rotina.

Levantou da cama e praguejou quando a luz da manhã bateu em seus olhos com força, ofuscando eles e fazendo com que tropeçasse no fio do ventilador e quase caísse. Não caiu, mas o ventilador não teve tanta sorte... Arrastou-se até o banheiro preparado para a eterna briga entre ele e o ajuste ideal da torneira, quando a água estaria suficientemente quente e o chuveiro não desligaria. Olhou no espelho e viu as olheiras que denunciavam as noites mal dormidas, fossem elas causadas por insônia, filmes, desejos ou qualquer outra coisa que o mantivesse acordado.

Entrou no chuveiro e sentiu seu corpo se retesar quando a água bateu em seu corpo, a princípio queimando a pele, mas logo depois a envolvendo em um torpor confortável e relaxante. Bocejou profundamente e deixou que a água escorresse por seu rosto, esquecendo por uns instantes do mundo a sua volta, o trabalho que o esperava cheio de pessoas frustradas que descarregavam nele suas frustrações e revoltas sem sequer pensar que ele precisava muito de alguém que escutasse as deles. Pessoas egoístas... Era assim que ele via as pessoas, egoístas e centradas apenas em seus próprios umbigos.

Saiu do chuveiro enrolado na toalha, tentando segurar o calor da água junto ao seu corpo e foi até o quarto. Lá no canto, em cima de uma cadeira estava seu uniforme, todo jogado sem jeito e um pouco amassado. Ele não se importava muito com frivolidades como passar roupa ou outras coisas que não eram importantes. Vestiu seu uniforme e sentou na cama para calçar seus tênis.

Sentou na cama e fechou os olhos, torcendo para que o tempo avançasse o mais rápido possível, ficou um tempo assim e teve a impressão de que realmente o tempo havia avançado muito, mas quando abriu os olhos, nem dois minutos haviam ido embora.

Terminou de se vestir e foi até a janela da sua sala para olhar a rua. Ele gostava de ver a rua, o movimento e o contraste da cidade com o mar, isso lhe dava um pouco de ânimo. Foi até a porta e quando estava saindo se deteve. Algo mexeu com ele, uma voz? Uma sensação? Ele voltou, olhou pela janela novamente e não viu nada de novo. Olhou para o apartamento que parecia o mesmo de sempre e não entendeu o que havia acontecido. Então reparou na sua máquina fotográfica que estava em cima de uma cadeira e não sabe dizer o porquê, mas sentiu que deveria leva-la junto.

Assim que a pegou, caminhou novamente em direção à porta e sentiu uma sensação boa, o tipo de pressentimento que se tem quando algo muito bom está para acontecer. Que bom seria se realmente algo diferente e bom acontecesse hoje, pensou ele e, sorrindo, fechou a porta e seguiu rumo ao seu trabalho.

PARTE 3

Assim que deixou seu filho na escola, ela resolveu ir à praia com sua máquina. Não sabia aonde ir exatamente, então resolveu andar sem rumo, apenas andando. Lembrou-se de uma frase que dizia “que para quem não sabe aonde vai, qualquer caminho serve”, uma frase que ela se lembrou de ter lido no livro Alice no País das Maravilhas e que julgou caber muito bem no momento.

Andou pela orla da praia vez ou outra tirando uma foto de uma paisagem ou cena que achou interessante, como um jovem casal de namorados que despertou em seu peito uma saudade dos tempos em que era desejada, vista e admirada. Não que ela tivesse ficado feia com o passar do tempo, pelo contrário, o tempo foi generoso com ela. Possuía uma jovialidade cativante, um sorriso que era capaz de desarmar a pessoa mais endurecida pela vida que pusesse os olhos nele. E seus olhos, seus olhos eram lindos, duas pequenas esferas brancas cuja íris de uma azul vivo, mais lindo e precioso do que o brilho de qualquer joia. Era inteligente e simpática. Era, tinha sido, ainda era... Mas talvez tivesse se esquecido disso.

Caminhou até chegar a uma fonte onde havia vários pais com seus filhos e outros jovens, idosos, cães e uma infinidade de tipos de pessoas sentadas, circulando, chegando, partindo. Sentou-se em um banco e ficou com sua máquina preparada, sem muito cuidado, mas sentia uma ansiedade crescente em seu peito, o tipo de ansiedade que se sente antes do primeiro beijo ou quando está para ganhar aquele presente que tanto se quis. Ela estava inquieta e as fotos que fazia eram mais uma tentativa de se distrair do que de conseguir alguma foto boa.

Lá ficou um tempo sentada, tentando se distrair com os pensamentos e sentimentos que as cenas lhe suscitavam e esperar, sem saber ao certo pelo que, mas apenas esperando por alguma surpresa que a vida poderia lhe ter reservado.

Se alguém, se mesmo ela, estivesse ciente dos acontecimentos que se iniciariam ali, com certeza pensaria estar vivendo um roteiro escrito para um filme. O vento quente vindo do mar soprou, fazendo uma espiral que conduziu algumas folhas por uma dança sem música, algumas gaivotas voaram sobre a praça e uma nuvem escondeu o Sol, deixando apenas uma fenda, por onde um feixe dourado vinha do céu até tocar a fonte, fazendo com que as gostas que espirravam dos chafarizes brilhassem como se fossem gostas de prata líquida.

Era uma cena mágica e por um instante ela se esqueceu de tudo, até mesmo dela e foi absorvida por essas imagens, essas sensações que a deixaram suspensa no tempo por um instante. A única coisa que ela conseguiu fazer, meio que por instinto, foi levantar a máquina para registrar o momento. Mas esse instante terminou com uma voz grossa e um sotaque carregado que disse: Se tirar a tampa da lente, a foto vai sair bem melhor.

Continua...

PARTE 4:

Ele saiu de casa para ir ao trabalho e apesar de sentir que devia estar com a máquina naquela manhã, seu pessimismo habitual lhe dizia que ia carregar peso a toa ou acabaria sendo assaltado e perdendo sua preciosa máquina.

Seguiu pelo calçadão da praia sem pressa, havia saído de casa mais cedo do que de costume hoje e tinha um tempo livre maior antes de entrar no trabalho.

Apesar de não ter entrado sequer um dia no mar, desde o tempo em que ele havia se mudado para lá, gostava muito do clima praiano. Moças correndo em calças que ele se perguntava como elas haviam conseguido vestir algo tão aperto, rapazes correndo de bermuda e exibindo seus músculos esculpidos a base de muita bomba e talvez uma ou outra sessão de academia e (o que houve com os homens de hoje em dia ele se perguntava) com seus peitos mais lisos do que de uma mulher. Casais de idosos caminhando de mãos dadas e ele, numa diversão meio maldosa, se perguntava se eles estavam assim porque ainda se lembravam dos tempos em que eram namorados ou se era para um não deixar o outro cair. Ele não gostava muito de pessoas velhas, não sabia ao certo porque, mas sabia e tinha convivido com esse público o suficiente (e visto coisas suficientes feitas por eles) para criar uma certa aversão. Mas ele não era uma pessoa má, meio ranzinza sim, mas não maldosa. Sempre foi aquele tipo de amigo que falava o que queria, mesmo quando não devia, mas que nunca deixou ninguém na mão. Havia se tornado um solitário e assim ia levando sua vida, dependendo de si mesmo, mas secretamente (tão secretamente que talvez nem ele se desse conta disso) deseja encontrar um amor. Crescera vendo filmes demais provavelmente, acreditando que histórias que acabam com finais felizes pudessem ser tão reais em sua vida quanto o eram nas telas do cinema e isso, invariavelmente o levou a ser enganado, machucado, ferido e a se isolar cada vez mais.

Não era feio, até que era bem apessoado, inteligente e bom de conversa. Era alto e estava um pouco acima do peso, mas nada que um pouco de exercícios (que ele adiava constantemente) não pudesse resolver. Vivia com a cabeça raspada, sempre fez isso desde criança, primeiro porque não gostava dos seus cabelos cacheados e grossos e agora, por conta da calvície que ia se anunciando em sua cabeça. Seus olhos castanhos- escuros eram brilhantes e vivos, curiosos, mas tristes. Vivia distribuindo sorriso às pessoas que estavam a sua volta, gostava de ver as pessoas alegres e felizes, talvez porque ele mesmo não conseguia ser tão alegre ou feliz.

E assim ele ia caminhando como um paradoxo ambulante que vivia do pessimismo, mas cheio de esperança de dias melhores não só para ele, mas para todos. Continuou em seu caminho e foi se aproximando da fonte que existia na orla da praia e ao longe pode notar que estava do mesmo jeito de sempre, cheia de crianças, velhos, famílias, casais, cães e toda sorte de coisas que poderia por um motivo ou outro, ter vontade de estar lá.

Quando estava mais próximo dela, viu um grupo de gaivotas paradas um pouco atrás da fonte, mais próximas da praia. Resolveu apertar o passo para tentar pegar uma foto das aves, mas quando chegou próximo à fonte, um vento vindo do mar soprou e alguma coisa fez com que elas voassem e ele, praguejasse frustrado. Praticamente ao mesmo tempo uma nuvem passou em frente ao Sol, tapando ele quase todo, mas um teimoso feixe de luz se recusou a ser ofuscado e incidiu diretamente sobre a fonte, acendendo as gotas que o chafariz borrifava. Aproximou-se mais enquanto ia pegando sua máquina quando viu uma moça sentada com um ar meio distraído e erguendo sua máquina para fotografar (ele imaginou) a fonte.

Ela era linda, ele teria procurado outro adjetivo mais rebuscado para descrevê-la, mas sempre achou que o simples é o melhor. O vento que soprava parecia brincar com os cabelos dela, desarrumando uma mecha que caia sobre seu rosto. Ele não pode ver ao certo que cor eram seus olhos, verdes ou azuis não sabia, mas também não se importou nem um pouco em ter certeza. Eles brilhavam tanto com aquela luz que pareciam estrelas emolduradas por delicadas armações vermelhas dos óculos que ela usava.

Ele se perdeu ali, aquela visão o deixou meio suspenso no tempo, sem saber o que falar, sem saber o que dizer, mas ele sabia que alguma coisa ele tinha que fazer. Mas como? E foi então que ela deu a chance quando distraída, ela ergueu a máquina com a tampa da lente ainda colocada.

Ele se aproximou, com seu peito cheio de uma mistura de ansiedade, coragem e timidez e disse:

- Se tirar a tampa da lente, a foto vai sair bem melhor.

PARTE 5

Ela não sabia se estava mais assustada com aquele grandalhão que apareceu do nada ou envergonhada por causa da lente e por alguns segundos ficou sem saber ao certo o que fazer.

- Desculpe, o que disse? – foi o máximo que ela conseguiu responder.

- Sua lente. Está tampada. – disse ele apontando para a máquina.

Ela riu um sorriso envergonhado e agradeceu a dica, tirando a tampa logo em seguida. Ele também ficou sem jeito, olhou para sua bolsa e começou a brincar com a máquina para disfarçar.

- Você é fotógrafo –

- Eu? Não não, mas quem sabe um dia? Sou bem amador ainda. E você é profissional?

- Pelo furo com a tampa da lente acho que você deve ter notado que estou longe de ser – e riu, um sorriso sincero que deixou o clima menos pesado.

O sorriso dela era lindo, sincero, vivo e seus lábios estavam vermelhos, mas não daquele vermelho escandaloso, mas um vermelho atraente e por um instante ele se imaginou beijando aqueles lábios.

Tomado por uma coragem súbita, perguntou se podia sentar no banco ao lado dela e ela, também tomada por uma certeza de que deveria dizer sim, concordou.

Falaram um pouco de fotografia, mas levou pouco tempo para a conversa fluir como se fossem amigos de longa data, como se se conhecessem há tempos e sem que pudessem perceber isso conscientemente, ambos sentiam que se conheciam e mais, que podiam confiar um no outro. Falaram sobre tudo que foi possível antes do relógio lembra-lo que ele não teria todo o tempo que gostaria de ter para falar com ela. Falaram sobre suas cidades e descobriram que ambos eram forasteiros, vindos do interior por motivos diferentes, falaram sobre sonhos a serem realizados e sonhos que foram abandonados, sobre que tipos de filmes ou livros gostavam ou não e entre risadas, ela falou sobre seu filho e ele sobre sua solteirice, foram se aproximando de uma forma que não esperavam. Mas o toque estridente do alarme do celular se intrometeu entre eles, parecendo uma piada de mau gosto da vida que não podia deixar as coisas irem tão bem assim.

- Bom, preciso ir, tenho que trabalhar ainda...

- Tudo bem, eu vou ficar por aqui um tempo ainda...

- Foi um prazer – disse ele estendendo a mão

- Foi mesmo... – disse ela passando a máquina para a mão esquerda e estendendo a direita para ele. E quando ele pensou em pedir o telefone dela ou algo assim foi que ele viu um brilho dourado em torna do dedo anelar da mão esquerda dela. Por um breve instante pensou que era um anel ou algo assim, mas logo depois teve certeza que era uma aliança.

Ela notou o olhar dele mudar quando se dirigiu para aliança e percebeu o sorriso dele enfraquecer. E compartilhou dessa frustração, desejou secretamente quase sem que ela mesma pudesse notar, não ter aquela aliança no dedo...

Ele disfarçou a decepção e torceu para que ela não tivesse notado. Ela também disfarçou a sua frustração e fingiu não ter notado a dele. Se despediram educadamente sem saber o que dizer ou fazer. Ele seguiu seu caminho, rumo ao trabalho, sem saber se estava mais triste ou mais feliz e ela ficou ali sentada pensando nisso que aconteceu. Mas o que havia acontecido? Lembrou-se de ter ouvido falar uma vez sobre “encontro de almas” e mesmo não lembrando o que isso significava, acreditou que havia acontecido entre eles. Havia, passado, um passado recente, mas que já estava desvanecendo na esteira do tempo que corria sem dó, sem esperar por eles ou sequer dar uma chance de voltarem e tentarem fazer algo diferente. E será que fariam se pudessem?

Talvez nunca saibam...

Ele seguiu seu caminho, alegre e triste ao mesmo tempo, sem saber na verdade definir o que sentia, mas tinha certeza de uma coisa: Isso não tinha sido por acaso. Não podia ser, aliás, seria uma tremenda de uma sacanagem isso, mas por outro lado a vida sempre havia lhe sacaneado. Chutou uma pedrinha que viu em seu caminho, enfiou as mãos nos bolsos do casaco e seguiu carrancudo, perdido entre pensamentos de coisas que ele pensou que pudessem vir a acontecer, mas que agora provavelmente não iriam mais ter chance alguma. Ralhou consigo mesmo, deveria ter pedido um telefone, um email, sei lá, qualquer coisa que o deixasse encontra-la novamente, mas... de que adiantaria? Ela era casada...

Abaixou mais a cabeça e seguiu seu caminho, recitando baixinho, só para ele ouvir “isso não foi por acaso, isso não foi por acaso...”.

PARTE 6

Havia passado mais ou menos dois meses desde aquele encontro e ele ainda se lembrava de tudo. Do dia, do clima, da fonte, daqueles olhos verdes e aqueles lábios que ele tanto queria provar com um beijo seu.

O que será que ela pensava? O que será que ela estava fazendo? Será que ela ainda se lembrava dele? Ou melhor, será que ela também pensava nele?

Estava parado em seu posto de trabalho (uma espécie de lojinha com produtos de fabricação própria), viajando em seus pensamentos que o tempo já deixava um pouco mais fracos. Mas ela sempre estava presente em seus pensamentos e esquecera-se de quantas vezes sonhou estar em um lugar escuro e só ver aqueles olhos verdes, que apareciam de repente e iluminavam seu caminho, o faziam companhia.

Respirou fundo, balançou a cabeça e disse para si mesmo que isso era besteira. Era besteira pensar tanto em alguém que ele sequer sabia ao certo quem era e muito menos que dificilmente ele veria novamente.

Não pode ter sido por acaso, mas... – ele parou como se cada palavra meio que o ferisse - e se foi?

Resolveu deixar os pensamentos para trás e voltar ao trabalho. Precisava arrumar uns livros e talvez o trabalho maçante e repetitivo o deixasse em piloto automático, sem pensar nela, ai poderia descansar a cabeça um pouco.

Abaixou-se e começou a olhar os livros que tinha que por em ordem. Tantos títulos que ele particularmente achava sem graça e o faziam se perguntar se a pessoa que escreveu realmente achava que faria sucesso ou era apenas para satisfazer uma ambição pessoal. Talvez fosse um pouco de inveja dele já que sempre disse que ia escrever um livro e nada até agora.

De qualquer forma, era o que ele tinha que fazer e de que adiantava teorizar ou reclamar? Suspirou e quando ia começar a encaixar o primeiro livro no lugar onde deveria estar, alguém chegou ao balcão e o chamou.

Até agora ele estava à toa, sem nada para fazer e quando resolve fazer algo, aparece alguém para atrapalhar. Parou por uns segundos, respirou fundo, e levantou com o seu sorriso mais fingido possível e então quando se virou para o balcão ele não acreditou no que viu.

E abriu seu sorriso mais sincero e feliz...

Fazia dois meses que ela andava pela praia, sem destino, como que procurando por algo que ela não sabia ao certo o que era, mas que a levava invariavelmente a aquela mesma fonte de um tempo atrás.

Ela sempre sentava no mesmo banco, sentia uma sensação boa e vez ou outra se pegava olhando por sobre seu ombro, como que esperando que alguém chegasse, como que esperando que ele chegasse novamente...

Mas ele não chegava. Vez ou outra ela percebia algum bravo jovem cheio de si (e cheio de hormônios) vir em sua direção exibindo seu sorriso sedutor por debaixo da aba reta do boné que usava e, rapidamente, exibia sua aliança alguém ia em sua direção. E uma simples olhada para ela era o suficiente para acabar com qualquer rastro de coragem que poderia ter existido. Uma vez ou outra ouviu alguém falar com ela vindo de trás e olhou com expectativa para logo depois se ver frustrada. Um senhor idoso querendo falar sobre o tempo ou alguma fofoqueira querendo alguém para ouvir suas histórias. Fosse como fosse, não era o que ela queria que fosse.

Mas o que ela queria realmente? Uma conversa sem pé nem cabeça, que acabou tão de repente quanto começou, um sorriso frustrado ante a visão de uma aliança que sacramentava uma situação que ela vivia e que não poderia mudar, ou poderia se quisesse, mas ela queria? Nem ela era capaz de dizer, tinha o costume de se perder entre os tantos “ e se...” que a vida lhe apresentava que acabava deixando tantas oportunidades passarem por ficar pensando se elas valiam a pena.

Ria de si mesma, pensando que estava fazendo papel de boba enquanto se perdia entre devaneios juvenis, desejos que ela nem achava mais ser capaz de sentir. Era bonita, mas há muito tempo não se sentia desejada, e imaginar que alguém a visse com desejo novamente, como mulher, lhe fazia bem.

Resolveu levantar e visitar um clube que havia próximo de sua casa onde costumava às vezes passar as tardes lendo ou participando de alguma oficina de artesanato. Adorava tarefas manuais, costura, pintura, fotografia e coisas do tipo e se sentia muito bem fazendo isso, mesmo quando algumas pessoas de quem ela mais esperava apoio, diziam que isso era besteira.

Foi até lá e ao chegar olhou a programação na porta. O mesmo de sempre, apenas com outra descrição. Oficinas disso visando aquilo com a finalidade tal, músicas que revelavam sonoridades novas e experimentais, apresentações de teatros e por ai vai. Nada que ela não conhecesse o suficiente a ponto de poder até ensinar como fazer melhor.

Resolveu entrar assim mesmo e foi até um pequeno box armado ali dentro que funcionava como uma espécie de loja que vendia vários produtos de fabricação própria. Sabia que não iria achar nada que a interessasse ali, mas pelo menos folhear os livros que nunca iria ler, olhar os cds que jamais iria ouvir, isso tudo poderia distrai-la um pouco e ajudar o tempo a passar mais rápido.

Quando chegou próxima às prateleiras, viu um livro de fotografia que não conhecia. Era bonito e o tema eram paisagens diversas que o fotógrafo capturou durante uma viagem de bicicleta que ele fez pelo mundo. Ela sentiu uma pontada de inveja dele, inveja de ser livre e poder fazer tudo o que sempre quis e acabou abandonando para fazer uma coisa da qual ela não tinha total certeza. Pegou o livro e resolveu ir até o balcão para ver o preço dele e lá viu o atendente abaixado, arrumando alguns outros livros. Pensou em pigarrear ou dizer “moço”, mas no final resolveu apenas dar uma batidinha no balcão, o que parece ter funcionado já que ele parou o que estava fazendo e se levantou.

Ela abaixou os olhos para ver o nome do livro e quando se voltou ao vendedor para perguntar o preço, ela ficou sem palavras.

- Você? – Perguntou ela sorrindo e sentindo seu rosto esquentar e corar.

Ele sorria feito bobo, apenas olhando para ela sem dizer nada, sem acreditar que aquilo estava acontecendo depois de tanto tempo, justamente quando suas esperanças estavam se esgotando.

- É... eu... é... você? – Ele balbuciou essas poucas palavras e o sorriso dela se abriu mais ainda.

Como naquele dia na praia, o tempo ficou suspenso e não parecia existir nada além deles ali, apenas olhando um para o outro, sem falar nada. Mas seus olhos diziam tanto deles, e tanto um ao outro. Vontade, alegria, surpresa, desejo, medo, indecisão, uma mistura incrível de sentimentos ditos em segundos, sem a necessidade de uma palavra sequer.

- Eu... não sei o que dizer sinceramente – ela disse, corando mais ainda e desviando o olhar.

- Mas eu sei – disse ele com segurança.

Ela voltou a olhar para ele, seu rosto vermelho emoldurando aqueles lindos olhos verdes que agora brilhavam.

- Diz então – disse ela, mais um pedido que uma ordem.

- Não foi por acaso!.