A DOR

Sentia a vida, e sabia assim que sentir a vida era como sentir uma dor aguda e continua. Um som insistente e compungido de um violino.

Uma goiaba, entre tantas na árvore de copa baixa, caíra sem ao menor sina de vento. E olhou à janela o quintal, da onde fora a goiabeira só havia no canto junto ao muro uma roseira vermelha.

O crepúsculo dava sinal roxo no céu e na atmosfera que o envolvia.

Eduardo sentia a vida. Aos trinta anos ainda não havia a sentido assim. E até o silêncio era alto demais; o tique-taque de um relógio de parede, atrás de si, que não tinha tique-taque. E Eduardo ouvia atento e desatento porque a dor lhe era continua e severa.Nunca antes tivera tempo de sentir a vida:trabalho,farras de finais de semana,a família...

E agora?

Os pais estavam visitando a irmã que já casara há um mês e fora morar em Ramos. E a casa era sua, e a vida que ainda mais sentia sua. A vida que penetrava os sentidos todos, aguçando-os, e fazendo-os doer.

Pensou que estaria feliz só. Desejou tantas vezes um pedaço de dia só para si. No íntimo não sabia bem para que, e desejava hesitante da certeza disto.

Na véspera ficou tão ansioso com a idéia da solidão que planejou tantas coisas: ouvir som, ver filmes pornôs até masturbar-se com facilidade e demora; gritar, gritar alto até ouvir o ridículo do seu próprio eco.

Agora no fatídico desperdício de só olhar para a janela, ele ria de tudo que planejara afinal. E assim até o silêncio era alto demais,e a vida que ele sentia então era dor,era dor demais.

Guardou as mãos no bolso da bermuda quando deu às costas à janela, e pegou a andar pela casa. O assoalho não era assoalho,era piso duro e frio;e Eduardo resignou-se a paz de andar como se respeitasse o mundo tão cheio de surpresas em que vivia.

Olhou o telefone na mesinha ao espaço dos dois sofás: mudo; mas como se aguardasse o fim da picante cirurgia à que tudo era submetido.

Não havia, propriamente, ninguém a quem Eduardo pudesse pensar. Estava só com sua dor de sentir a vida.

E quando começou a escurecer modorramente acendeu a luz da sala para enxergar os objetos reais e duros que o próprio o homem construía sem saber por quê.

Tudo era para aplacar a dor do nada, embora fosse tão mais amena que a dor de sentir a vida.

Estar sobre as flutuantes de um imaginário: era o não-viver. O não-viver de fato nada doía,custava menos para alma,e era preciso que se procurasse muito.

Mas achara aquele dia, acreditando num esgar de “felicidade”, a dor do estar-vivo, do sentir a vida no bico que se leva ao outro bico.

E sentado, Eduardo pegou-se a um ritual que era desde olhar para os próprios pés em chinelos de dedos a balançar estes até tomar conta de cada coisa aparecendo à luz da sala acesa. É cada coisa aparecia, brilhava, e ele é que era o centro de tudo mesmo. Só ele sentia a dor de estar vivo,e no silêncio interior aquilo o tomava.

Na verdade ele adiava, olhando a vida doer no ser sentida. Porque era preciso que ela doesse para que ele a sentisse enfim;já que nunca tivera tempo de sentir a vida então.

Era terrível senti-la.

E só parara para senti-la porque sabia que havia um risco; havia um risco, embora a dor de tê-la fosse insuportável, de a vida então escapar-lhe com aviso prévio.

Se os pais voltassem de repente, arrependidos de ausentarem mais de um dia poderia estar salvo de tudo.

Deteve-se junto à geladeira, no que ia abandona-la, e abriu a porta encontrando o que se pudesse comer frio e cru. Assim esqueceu-se da dor como quem ouve uma palavra de conforto ao meio.

O pior não era o pior do que pensava ser fatalmente tão certo o pior; o pior era o esclarecimento certo de tudo que manteve oculto até então e tão obviamente impossível de ser mantido oculto por tanto tempo.

Adiava-se na verdade a sutil fatalidade que se seguiria outras fatalidades ainda maiores nesta sofrível dor de sentir a vida ao núcleo do seu amargo âmago.

Rompeu o silêncio de dentro e de fora com um bocejo monótono e forçado: fez um ruído de um hipopótamo ao longe...

E todos os cômodos que escurecia com a chegada da noite precisava que se acendesse as luzes ao alcança-los.

Eduardo sentiu a vida e a vida era viva entre as quatro paredes que o cercavam; e as quatro paredes onde estava nunca fora tão real, embora achasse inútil toca-las. Olha-las dava uma comoção pungida como se devesse muito...

Lá fora não havia paredes e nada encardia à sua sombra; e era só luz do sol, luz da lua, chuva ou sol; o vento era o que corria para os lados acariciando...

Estava diante da janela e lá fora aonde sua vista alcançava não acontecia... era como a dor dentro dele sentindo a dor de estar sentindo-se vivo.

Ficou exausto do que lhe acontecia, e era preciso dar um fim a sua dúvida... e quem sabe tudo se acomodaria como a tarde que estia à chuva que nem veio.

Pensou...

Aconteceu segundos e tudo voltou de repente ao vazio infantil de imaginar. Aos bocadinhos a sensação de sentir a vida tornava-se amena,embora sujeita a uma pontada aguda tão de repente:sou vivo mais do que eu imaginava!-era isto dentro dele, bárbaro.

Viu-se marchando a passos largos dentro da casa que lhe pareceu, à solidão, bem maior do que sempre imaginara.

Atrás da escada que dava para um terraço, então era... O seu quarto. A porta estava fechada,fechada como se não quisesse à sua entrada;e era ele próprio que proibira a sua própria entrada.Mas ele olhava com a triste vontade de entrar,sendo que o aplacava o temor,a repugnação...e o que havia ali era simplesmente as suas coisas habituais;o seu pedaço mais íntimo de cotidiano;todavia havia um”algo mais” que era o responsável sério e central da vida a ser sentida.Além da dor,já com costume,ele sentia o imaginário tato com uma coisa mole:estava dentro de si consigo mesmo.Era o terrivelmente viver,viver... na consciência dúbia do perigo que estava prestes a explodir em suas mãos.

Sofreria um atentado e sabia que ninguém poderia ajuda-lo. Não era o pior disto o pior,era o secreto dentro deste pior.Havia tantos piores neste pior máximo que tudo já era tempestade.E ele conseguia sorrir entre as paredes que conseguiam o revelar.Ele não podia fazer mais nada,a não ser sorrir.Por mais terrível era preciso olhar de frente.Ser feio dentro de uma loja de espelhos.

Já se viu com a mão na maçaneta redonda e... abrir ou não abrir? Perguntava, porém sabia claramente que iria abrir mesmo a porta. E mais tarde teria que estar lá...mas a casa hoje era só sua e uma tentativa era refugiar-se no sofá da sala,onde havia a acalentadora e vazia companhia da televisão;e tudo continuativa incerteza,incerteza...

Para que a certeza? A certeza significava vinte ou mais novos perigos e uma terrível revelação até para si mesmo que faz consigo, mesmo tão consciente dos seus atos, que não sabe ao certo o que lhe acontece. Quem é. Às vezes ele é quem é tão natural que ao final que foi nem percebera que ficou sendo;e faz-se sempre de ignorado.

Só que diante do que acreditava se via vivendo quem era,e por obrigação.

Acendeu a luz. Agora tinha a certeza que não se demoveria da sinistra pretensão...com tudo claro,os objetivos estavam acesos como objetivos e quase visíveis como os móveis da casa.

Estava grávido,e a gravidez evoluía a cada passo seu dentro do próprio moquifo cheirando a si mesmo.Era a gravidez de um futuro.Pariria um futuro para si que teria que cuida-lo como um filho para que não o desse desgostos,sabendo inevitável os desgostos.Eduardo sentia ,ao céu da boca, o gosto do desgosto:amargo como o âmago de sentir a vida sendo tocada como ele quase a tocava pela primeira vez.

Pensou tão rápido em fuga.Da onde?Do óbvio?é dar de cara com a verdade.O medo dos fatos era a certeza absoluta do pior.Da fatalidade.

E ele,que ingênuo,pensara tantas outras possibilidades de contentar-se em estar só e só consigo mesmo. Viu-se invadido de muitos e era como se todos soubessem já sem nem ao menos ele saber ainda.Veio todos à cabeça ao mesmo tempo.E como havia gente;e ele que nunca sentira a vida tão no clímax da vida.E a sentia no medo do aviso prévio de um fim próximo.

No basculante aberto viu até um mundo a correr lá fora com um tímido romper do silêncio.

Tudo o doeu dentro da dor que já o cortava como uma música compungida de melancolia.

Tinha a certeza dolorida de quem febrilmente sabe que vai parar de amar alguém que ama tanto.

E sentado na cama alisou o colchão, e a mão foi ganhando o travesseiro branco e macio...e debaixo dele...Eduardo fechou os olhos para crer que seria capaz.Era capaz,que ali estava,e era sem ter nem não ter:era o acontecer.Era uma mãe com o medo de parir por causa da dor mas sabendo a necessidade de parir.

Já estava em suas mãos porém não diante dos seus olhos,e ele tentava sentir o tato do “perigo”,e já sabia que pela luz o branco do envelope revelaria tudo sem mesmo ele ter que abrir.

Sim era um envelope.Um envelope sem essas simples quatro silabas que definem o que é um envelope. Estava a parir o seu futuro com toda a dor que o parto poderia oferecer.

Eduardo fechou os olhos e colocou o envelope à frente das suas vistas cerradas;sabia que no momento que abrisse seus olhos então já teria dado à luz e aquela dor era intensa e ele...segurando com medo do que se ia parir.E então...O som do seu coração foi como um tique-taque de um relógio no silêncio endoidecido da calamidade.

O envelope revelava à luz sem ser aberto.Revelou o que ele nem negara antes.E por que termia e chorava então? Porque bem no fundo acreditou numa outra possibilidade,mas...a verdade tinha aparecer,e a verdade aparecia a custo maior do que a dor de paralisar-se e perceber a vida.

Chorou um chorar de quem pede licença para isto,e por um instante parado acreditou na possibilidade de se voltar atrás.Atrás em quê?Nem seus pensamentos faziam mais sentidos ou não eram propriamente pensamentos.Desligava-se tendo que a mente não cessava.

Exprimiu as lágrimas que caíram dos olhos cortando a face em caretas.Era a dor maior entre o pior do pior do que viria.

Abriu o envelope com uma fúria de quem já tinha a certeza do que dizia,e leu num ofegar angustiante,aliviando a dor do parto,mas o desassossego nascera já pungente...

E era preciso encarar:um farol aceso na sua em face de escuridão em que se guardava.

Não seria o mesmo; tinha um futuro a pensar e sua vida seria escancarada e exibida ao que sempre incrível fora tão oculta.

E ao sair daquele quarto, agora, era a selva a encarar.

À força o homem ganha a maturidade, depois que luta tanto contra ela.

12 DE SETEMBRO DE 04