A Cigana

Depois de Soninha, passei dois ou três meses me abstendo de contato íntimo com mulheres. Gostava de pensar de pensar que guardava luto por uma esposa morta. Hoje me rio dessa ideia. Mantinha-me fixo a uma rotina de trabalho-casa, casa-trabalho. Embriagava-me sozinho quando a amargura era demais. Não atendia telefonemas, não ligava a televisão. Estava tentando suicidar-me de tédio. Lia bastante, apesar disso, de Bukowski a Nelson Rodrigues. Cansei-me por fim. Saí à noite, sozinho para um bar sabidamente mal frequentado. Três ou quatro cervejas depois que cheguei, encontrei uma amiga que não via há certo tempo. Chamava-se Beatriz. Falamos pouco, mas chamou-me para seu aniversario. Insistiu, até. Constrangido em dizer-lhe não, aceitei o convite e prometi-lhe que iria. Não lembro como fui para casa, nem me lembro do nome da mulher com quem me deitei aquela noite. Acordei às dez da manhã. Minha cama cheirava ainda ao perfume da moça. Pergunto-me o motivo pelo qual ela foi embora sem me avisar. No entanto, achei bom. Poupou-me a situação constrangedora de ter que mentir dizendo que lhe ligaria outro dia. Beatriz me ligou logo depois. Disse-me que era só para me lembrar da festa. Achei engraçado... Aquela garota realmente me tinha alguma estima... Nunca soube o que fiz para merecer. Passei o dia refletindo sobre isso.

Às 10 da noite eu estava pronto e segui para a casa de minha amiga. Lá, encontrei poucos conhecidos. Apenas três ou quatro dignos de atenção. Era maio, portanto fazia um certo frio. Eu bebia vodka e me fingia interessado no assunto de uma garota qualquer, quando ela passou. Nunca a havia visto. Não era esbelta, não do tipo mulherão que para o trânsito. Era sim, bonita. Mas de uma beleza exótica. Como uma cigana, ou andaluza. Tinha sangue mouro aquela pequena, foi o que pensei logo que a vi. Perdi a fala por alguns segundos. Custou-me a voltar a ter assunto com a loura com quem conversava. Deixei-a acompanhada de um amigo que parecia mais interessado do que eu e fui andar sozinho pela festa. Não eram tantas pessoas, mas fazia-se algum barulho, o que me incomodava. Sentia-me entediado e não tinha paciência para contato social. Assim, procurei me afastar de onde as pessoas se concentravam. Andei até a beira duma piscina e encontrei a cigana, por acaso, fumando um cigarro, com os pés dentro d’água. Ela ria sozinha. Pelo jeito, de uma piada muito boa.

Aproximei-me. Ela, percebendo, pareceu constrangida e fez menção de se levantar, mas me adiantei e sentei ao seu lado. Não dissemos nada um ao outro por um minuto ou dois. Perguntei-lhe, então, sobre o que ria. Ela não me disse, disfarçou o quanto pode, mas mantivemo-nos ali, numa conversa fácil por quase uma hora. Seu telefone tocou. Ela atendeu, e pela conversa, percebi que tratava-se de um homem... Seu namorado, imaginei. Pensei em me levantar para dar-lhe privacidade, mas percebendo minha intenção ela segurou-me o braço. Desligou aborrecida e voltou a me olhar. Olhava-me nos olhos, parecia avaliar todas as possibilidades que aquela noite ainda reservava. E ali, intimidado, seduzido e encantado por aquele olhar invasivo, tive vontade de beijá-la. Aproximei meu rosto de seu rosto, poucos centímetros separavam meus lábios de seus lábios. Não a beijei, no entanto. Mantivemo-nos assim por algum tempo. Ela não se afastava, mas relutava em se aproximar. Por fim, falou-me.

O caso é que era comprometida e por convicção era fiel. Não negava o interesse, mas não poderia ir mais adiante. Assenti com a cabeça e beijei-lhe o rosto. Disse-lhe que entendia. Levantamo-nos, e ela se despediu. Fui sozinho para casa. Nesta noite, sonhei diversas vezes com aquela jovem cigana em meus braços.

Os dias passaram-se não a tirava de minha cabeça. Quando não pensava de dia, sonhava durante a noite. Escrevi-lhe versos e cartas falando-lhe de minha afeição. Nunca os entreguei. Deixei o tempo amenizar aqueles sentimentos e algumas semanas depois, parecia que estava finalmente retornando a minha vida rotineira. Passava um dia por uma loja de artesanato e vi uma cigana de barro, com um laço de fita vermelho e dourado no pescoço. Comprei a peça, simplesmente pelo laço de fita. Guardei-o comigo junto com as cartas e os versos. Passaram-se meses antes que voltasse a ver aquela jovem. Foi num bar, próximo a minha casa. Ela estava com algumas amigas, nenhum sinal do rapaz que lhe ligara quando nos conhecemos. Retornei a minha casa e escrevi uma breve missiva. Dentro de um envelope branco, depositei-a, junto com o laço, e retornei ao bar. Cumprimentei-a e beijei seu rosto. Conversamos amigavelmente por algum tempo. Eu procurava tomar coragem para fazer o que me propusera em casa. Por fim, entreguei-lhe o envelope e despedi-me antes que dissesse alguma coisa. Saí de lá e desde então, não voltamos a nos ver. A carta, entre outras coisas, dizia que a fita era para o dia em que ela estivesse livre para continuar nosso diálogo à beira da piscina, livre de impedimentos. Pedia que a amarrasse no cabelo, para que assim eu soubesse que estava pronta.

Espero esse dia até hoje.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 02/10/2012
Código do texto: T3911506
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