Non, je ne regrette rien…

"O seu único erro foi crer que o destino era seu amigo."

Nada é precipitado, ela sabe disso. Tudo parece piscar de olhos, apenas acontece e a gente nem percebe mais. Só que ela, mais do que ninguém, sabia que morrer era abrir mão, deixar de lado tudo o que construiu, toda a felicidade de que ela nem se lembrava mais, todo o ódio que ela trancou dentro do coração. Lá ninguém entra, é âmago, o interior do oco, o vazio doloroso que ela dizia ser coração só porque ele fazia palpitar as veias do pescoço de vez em quando.

Eu acho que o problema dela era falta paladar. O gosto salgado das lágrimas era tão presente que qualquer doce, qualquer meio sorriso ou bolo de chocolate tinha gosto de remédio. E ela adorava chocolate.

Depois de viver sobrevivendo, a única coisa que tinha feito era acordar todos os dias, abrir os olhos e fechá-los, repetidamente. Aquela rotina a cansava. Toda vez que piscava era como se o mundo parasse e ela entrasse em uma realidade mórbida, criada por ela, aonde o escuro era só um pano de fundo pra uma mistura de dor e cheiro de éter. Cada balançar de pálpebras era um fim de festa. Dor de cabeça e vastidão negra.

Chegou em um momento em que só lhe restava medo. Medo e piscar de olhos. Ela tinha medo até de respirar. Mas o medo não era pela dor, era pela falta dela. A falta de tudo fazia dela um trapo, pedaço amaçado de papel carbono, um vazio acinzentado que manchava os dedos de quem a tocasse. A abstinência dela mesmo, de sentir qualquer coisa e, mesmo assim, estar ali, ouvindo o som dos passos e dos sussurros daquela gente apática.

Só lhe restava olhos. Vitrines verde-oliva que ela usava pra cortar o quarto, fitar qualquer grão de poeira, qualquer coisa mais interessante do que o sem-fim que residia atrás das pupilas. Olhos que ela tanto gostava, que eram o alvo dos elogios que ouvira quando era criança e agora serviam como sangria, uma válvula de escape pra toda a repulsa estática que consumia seu corpo muito mais estático ainda.

Ela precisava de veneno, mas não havia veneno no mundo que chegaria até ela. Pensou em dormir, dormir pra sempre, mas o sono é uma virtude de poucos. E dormir não é fim pra ninguém, muito menos paliativo. Só lhe restava uma opção: desligar o ar mecânico, o aparelho vital que segurava a vida dela pela ponta dos dedos e levava agonia em forma de ondas.

Porém não havia como gritar, ela apenas olhava e piscava, o grito entalado na garganta, o fim escondido dentro do escalpo. Ela pediu ao destino, era o que lhe restava. E ele respondeu. Respondeu até bem rápido.

Fez-se breu. Toda claro que ela usava como escudo desapareceu. Ela sentiu um calafrio e sorriu por sentir alguma coisa. Ela via tudo aquilo como presente, um presente resoluto, enquanto os outros viam apenas um blecaute total. A energia havia faltado, assim como o ar no seu peito.

As pupilas dilataram-se, esforçando-se pra ver algo dentro do enegrecido. A escuridão que tinha sido seu delírio vinha como um último aviso, um epitáfio lapidado em sua testa. Ela soltou o que lhe restava de qualquer coisa no último suspiro. Morreu no escuro.

Fernando Cesar
Enviado por Fernando Cesar em 08/10/2012
Reeditado em 16/03/2013
Código do texto: T3922804
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