Amor e panelas

A ideia surgiu e me pegou em um mau momento. Como registrar agora a história que me veio à cabeça, em meio à preparação do almoço? Panelas, cebola, frango, legumes e verduras... e essa história que teima em aparecer no meio de toda essa confusão.

Bloco de papel e lápis. Computador?... Nem pensar...lápis e papel são mais flexíveis e funcionam melhor em meio ao caos doméstico.

Montar a história é o que tento fazer agora. Uma história de amor, como tantas outras, mas em meio à minha cozinha. Uma história de amor insólita, mas de um amor verdadeiro e maduro. Por que não?

Tudo começara em um cemitério... isso mesmo! Num velório de um amigo querido. Entre tantas pessoas, seus olhares se cruzaram. Não houve reconhecimento imediato, pois o tempo, esse, tinha se encarregado de disfarçá-los. Havia mais de vinte anos que não se viam. Muito tempo! Mas, os olhos logo desvendaram aos dois suas identidades: fora alguma coisa familiar, um gesto, um modo de sorrir... não importa. O importante foi o reconhecimento e a luz que se acendeu dentro de cada um deles...

Meu Deus, minhas batatas! Quase queimaram... quase um desastre! Ainda bem que deu tempo de socorrê-las... Ufa!

Mas, voltando aos nossos heróis, lá estavam eles... Ela tomou a iniciativa. Aproximou-se dele e lhe perguntou, baixinho, se ele não era quem ela pensava que fosse.

Que cenário estranho para olhares quentes como os que se sucederam, ou seria melhor dizer, que olhares estranhos para aquele cenário tão triste?... não sei dizer. Só sei que a emoção entre os dois foi grande, enorme.

Ele a admirara com olhos gentis e pensara que a passagem do tempo não havia sido cruel para ela. Era ainda desejável.

Ela o olhara com admiração... bem posto e de um sorriso cativante...

Interrompo novamente, pois meu frango precisa de cuidados... Virá-lo, regá-lo com o caldo que se formou...

...Passaram a ignorar o lugar, e quem ali estava. Alguma coisa era maior que tudo

Acabado o funeral, em meio às despedidas, perderam-se.

Encontraram-se dias depois pela internet, num desses sites de relacionamento. Grandes papos, longas conversas, palavras de amor. Puseram em dia os fatos ocorridos nesse intervalo de vinte anos... Ela chorara, em alguns momentos... como choro agora por causa desta cebola que pico... Lágrimas em abundância... as minhas vertidas por uma condição fisiológica, e as dela por pura emoção e fragilidade da alma.

Combinaram um café, e mais outro. Amor maduro que não tem pressa, apesar da premência do tempo.

Estão assim até hoje, entre cafés e conversas, mas sabem que o sentimento e o desejo entre eles só têm feito crescer.

Assim como meu almoço, que se repete todos os dias, a história dos dois também continuará e esse amor sobreviverá entre as panelas do tempo.