O BONECO ROBÔ

Tem um vento soprando lá fora, frio, úmido, mas nem tem chuva, apenas sacode o vidro frouxo da janela. Esta noite daria um bom tema para um filme de terror, e deitado na cama, com o notebook no colo ele jogava guitar hero. Perdera um pouco o gosto pelos jogos intrincados em RPG que eram em formatos de mídia no PS3.

_James, James, seu moleque você está ai – era voz hesitante, rude, áspera lá fora, junto à porta do seu quarto. James largou o notebook em cima da cama, apagou a luz – eu já vi, rapaz, sei que você não está dormindo. Vamos abre a porta – força um pouco a maçaneta, a voz dengosa, mas sedutora – vamos aproveitar, enquanto Laila não vem – ele sabia que ela chegava às duas da manhã do trabalho aquele dia, carinhosa, querendo atenção do maridão, carinho, aqueles braços fortes, morenos, os cabelos num elegante grisalho.

_Vamos, James, eu sei que você gosta; você gostou da ultima vez, você já não é mais criança, já é um homem – insistia a voz, forçando a maçaneta, o barulho gemia aos ouvidos do garoto, que fechou o computador, colocou-o sobre a cabeceira da cama, e observou a penumbra do quarto o boneco robô ali junto, de pé, mas já não era mais menino para acreditar nesses heróis, mas queria tanto, mas virou-se, sem camisa, o peito magro, liso, as pernas nem tão magricelas, expostas pelo short curto e fino, mas levantou a coberta até junto ao queixo, ouvindo a tosse, o riso do homem, seu padrasto, querendo-o, desejando-o. Fechou os olhos, virando-se de bruços, acreditando na possibilidade que ele arrombasse a porta, mas e a mãe?, sim, ele não faria isto, bastava ficar ali quietinho, bem quietinho, mas ele insistia, batendo na porta, pedindo num tom de voz meloso, que abrisse, hem, seria gostoso, muito gostoso, ele não tinha visto a semana passada quanto era gostoso, hem, Abre James, abre esta porta, vou te aquecer um pouquinho, a noite está tão fria.

Sim, a noite estava fria, o vidro da janela batia, mesmo trancada, arregalou seus olhos miúdos, um pouco míopes, acostumados já à penumbra, mas sem encontrar a paz no sono, pois a cantilena daquela voz sedutora implorava a permissão para entrar, então agarrou o boneco robô e como se voltasse a ser criança ficou com ele abraçado, assustado, confessando coisas em tom de voz sussurrante como o vento lá fora pareceu conspirar ou comungar.

Estava em sala de aula pela manhã. Sentava-se nas ultimas carteiras, procurava ficar sozinho, os cabelos um pouco enroladinhos e quase loiros, usando óculos de aros pretos, parecia um tanto infantil para seus catorze anos, e por sob a mesa, enquanto os colegas se agitavam formando duplas para o trabalho do professor de português, ele mexia nas configurações do seu celular. O professor Malthus aproximou-se, meio atônito, encurvado, mesmo gaguejou quando se aproximou de James.

_Cadê o seu parceiro de trabalho – perguntou no tom de voz amedrontado o professor, e a sala inteira gargalhou, e uma menina manifestou, Ele é incorrigível professor.

_Incorrigível, mas como por que – foi se voltando atônito o professor sobre os calcanhares para garota moreninha de cabelos frisados que falara. Ora, ela já sabia bem, manifestou num gesto amplo com as mãos, é que ouvira isto da professora de Matemática, incorrigível , hem, sacudiu o queixo.

Seguindo pelo pátio repleto de colegas a tagarelar em grupos, James parecia solitário, a mochila jeans nas costas, tênis All Star preto cano longo, bermuda preta, com corrente na cintura, vindo até o fim dos joelhos. Olhou o grupinho sentado ao espaldar de um banco de madeira, entre eles, Dioniso, assim como Danilo, os cabelos longos, vaidosos mexendo neles, mas conversava com um de cabeça raspada, olhos meio rasgados e outro mulato, alto para os quinze anos que devia ter. Falavam do projeto da banda da escola. Aproximou-se.

_E ai broders – disse se aproximando, sorrindo, e aqueles voltaram os olhares espantados e risonhos para aquele que chegava e os cumprimentava.

_Ele está querendo participar da banda – disse Dioniso jogando os cabelos para trás, e os outros riram, e James pôs-se sério, segurando as alças da mochila, firmando-se, embora lhe tremesse as pernas.

_Sabe tocar algum instrumento – perguntou de supetão o mulato, Alex, não deixando o riso sarcástico.

_Posso ser o vocalista – disse sem nenhuma inibição, e gargalharam todos.

_Qual é, não vamos fazer vocal feminino – disse o de cabeça pelada, Lucas – se for assim procuramos uma menina.

Riram-se, riram-se, Dioniso ria, mas corava as bochechas, deixando os cabelos livres, mesmo murmurou, Não esquenta não cara, é zoação deles, vamos pensar no assunto. Retesou uma careta com os lábios, e embora ruborizado, mostrou-se firme, ajeitou os aros dos óculos no nariz, prosseguiu andando, rindo, sacudindo os ombros, sentindo o sol morno ora entre nuvens dourando um pouco seus cabelos de um castanho enroladinho. Danilo é mais velho, quase vinte anos, queria ver a cara desses manés se Danilo a aceitar em sua banda, poha, tem um cabeludo loiro que parece o Thor, é o Charles, tem um visual phoda, e encostou-se a uma pilastra, observando as meninas do sexto ano a pular corda, Mas qual é, esses caras são phodas demais para dar atenção a um pirralho como eu, e voltou-se assustado, na defensiva ao sentir uma mão, embora macia e suave, sobre seu ombro. Não abriu sorriso para o professor, nem tampouco o reconhecia fora do âmbito da sala de aula, tinha o cenho franzido, os lábios num crispar desconfiado.

_Quero te dar os parabéns, por ter feito sua produção textual sozinho – disse na sua voz tremula o professor, e o garoto abaixou a cabeça com o semblante sério.

_Eu sei que ficou uma merda – disse sem rancor, antes com um pouco de satisfação.

_ Não, não ficou ruim – disse Malthus, sorria lhe, hem – ficou bem desenvolvido.

_ Eu estava revoltado – falou num tom denso, meio soturno, desviando o rosto, movendo-se como avisando que ia escapulir, escorregadios como sempre, pensou Malthus oprimido, deixando-o ir, isolando-se.

Mostrou a seu parceiro Haroldo, quando ambos sentaram sobre o apertado sofá, Malthus assim acolhendo-se aos braços fortes do namorado, já depois de terem jantado, do banho junto, a vontade ambos, e Haroldo queria saber que papel era aquele em sua mão.

_A produção textual de um aluno do nono ano, olhe só, Haroldo – disse aconchegado ao corpo do parceiro.

_Que garrancho horrível – riu Haroldo, mas Malthus o admoestou docilmente, não falasse assim, afinal era uma criança – ah, criança, amor, pera lá, um garoto de catorze anos já tem frêmitos de um homem, cabelo no saco – e gargalhou, mas silenciou vendo que o parceiro levantou-lhe os olhos em reprimenda, então Haroldo beijou-lhe junto aos lábios, pelos cabelos, e Malthus foi abrindo um sorriso, embora não tirasse o papel de letras tortuosas e imprecisas de junto aos olhos, voltando a se aconchegar junto ao corpo do parceiro.

_Leia para mim – pediu Haroldo num tom de voz rouco junto ao ouvido de Malthus.

_ “O boneco robô” é o titulo do texto – foi dizendo Malthus – mas eu pedi que me falasse sobre a amizade, e ele escreveu sobre um brinquedo que não precisa mais dele “...pq naum tenho mais idade pra ele, sabe, por isso ele nem precisa de mim, e pensei que foi eu q naum precisava mais dele...” – respirou fundo, levantou os olhos percebendo que Haroldo deixava escapar risadinhas.

_Desculpe amor, mas isto está um lixo – disse rindo – e estou vendo aqui que ainda está escrito todo abreviado igual à conversa de bate-papo na internet.

_Haroldo você não serviria para professor – censurou sorrindo Malthus, sentiu um leve arrepio pelo beijo junto à orelha – o que achei bonito aqui é que ele manifestou seus sentimentos mais profundos, ele está triste por ter perdido a infância, Haroldo.

_Tadinho – manifestou Haroldo em tom de ironia, rindo, enquanto Malthus desvencilhou-se, levantando-se, seguindo até a mesa onde estava a pasta com os trabalhinhos dos alunos. Ficou observando mais um tempo o texto de James, e sorriu ao sentir os braços fortes do companheiro o enlaçando pela cintura – me perdoa, amor – pediu beijando-lhe a nuca, causando arrepios em Malthus que se derretia todo, abrasando-se, mas foi abrindo a pasta, guardando o trabalhinho de James junto com os outros, e virando-se para Haroldo, ainda preso a sua cintura, pegou-o pelo rosto com as mãos cheias, beijou-o nos lábios.

_Amor, olhe – foi dizendo Haroldo – você é professor de português, tem que corrigir esses erros ortográficos e gramaticais grosseiros dos alunos. Desculpe dizer, mas acho que você é meio “frouxo” com seus alunos...tem que ser mais duro com eles, ou eles nunca aprendem a ser homens, mulheres, cidadãos... por ai.

Malthus encostou a cabeça sobre o ombro do namorado, suspirou, sim realmente era dócil, amedrontado, frágil, e tinha dó de seus alunos, na verdade tinha dó de si mesmo, via-se inútil em sua função, os alunos não pareciam precisar dele, e cada vez mais se confortava aos braços de Haroldo à noite, temendo e ansiando pelo dia seguinte, sabendo do projeto da banda dos meninos do primeiro ano do ensino médio: Alex, Lucas e Dioniso, mesmo passara a sala para olhá-los, vendo-os no espaço agindo como se fossem músicos, e quem era aquele?, olhasse, grande palerma, que enchesse a paciência com sua sintaxe, não estamos nem ai, colamos um do outro, tentamos, tropeçamos, e acabamos passando mesmo, era como se dissessem.

O boneco robô estava sobre a cama, a cabeça quadrada sobre o travesseiro. James ajeitou o pôster do Linkin Park na parede, admirou a Amy Lee no pôster logo a cabeceira da cama, a frente dos demais, no seu vestido negro esvoaçante dentro de uma atmosfera violácea num clima gótico, mas com um sorriso sedutor. Minha gata, piscou para ela, atrás das lentes não muito. A mãe conversava com uma vizinha à sala, e ele fechou a porta para poder ligar o som. Estava suado ainda, por isso acabou tirando a blusa, embora com a luz do sol morrendo atrás dos morros do horizonte a atmosfera começasse a esfriar, é que pedalara a tarde inteira, ficara assim do outro lado da calçada, junto a caçamba de entulhos, olhando para o alto, a sacada da casa da velha bailarina, onde meninas dançavam na ponta dos pés, ele podia vê-las da cintura para cima, os corpos achatados nos corpetes de um rosa salmão, os cabelos presos em coques, pareciam todas iguais, leves borboletas sem asas, a musica compungida, insistente, e encostado sobre sua bike ele riu ao ver que aquela menina magra, bem mais alta que as outras, a pele negra, estendera-lhe a língua rosada, mas rindo. Ele gostava de saber que elas sabiam que ele as observava, e talvez mais ela, pois ela demorava mais, mais, quanto tempo ali ficava, sozinha, encantada, parecendo flutuar.

_Eu gosto de garotas – disse dentro do banheiro, despindo-se, reparando seu corpo um pouco franzino refletido no espelho do lavabo, os pelos pubianos muito crescidos, as axilas peludinhas, pelos longos. E sob a ducha morna sentia ereção, desejo, pensava na bailarina negra, diáfana, comprida em seu corpete salmão como uma borboleta sem asas – eu gosto de garotas – disse trincando os maxilares, segurando o seu membro ereto nas duas mãos, nervoso, arfante, mas fechava os olhos, sentia o beijo úmido, quente, o cavanhaque do padrasto em sua nuca, quando ele o sentou em seus joelhos, Você já esta um homem, James, um homem.

Pulou do banheiro para seu quarto, escorregadio, apenas de cueca, rindo, doido para ser flagrado pela visita –logo ali próximo – em trajes íntimos, mas se trancou no quarto, ligou o som em cima de uma cômoda, Slipknot, ama, sentiu um frêmito em bafo de calor, mas foi passando, vestiu um short, abriu o notebook em cima da cama, conectou-se ao Messenger, mas por um momento, seu cenho franziu se lembrando, queria um beijo de Danilo. Sonhou com ele, que estava nu ao lado dele, sentia sua pele junto a sua, podia acariciar os cabelos de Danilo, aquela franja, aquele sorriso largo de dentes alvos e perfeitos. Não, não podia desejar Danilo, se ele soubesse então que nunca seriam amigos como tanto desejava, rondava a casa dele em sua bicicleta, esperando vê-lo, ficando excitado vermelho, quando o via chegando em grande estrondo em sua moto, tirando o capacete já no portão, agitando os cabelos longos, escuros e lisos, a franja caindo a testa, cobrindo um pouco dos olhos; de vez era chegando de óculos escuros acompanhado de Charles, loiro, cabelos longos, mas era Danilo que fazia seu coração bater. E a bailarina? Sua mente tinha embaralhos, os olhos assustados do professor de português, ele segurava uma caneta ficava assim cismando com ela entre os dedos brancos, longos, às vezes aquelas mãos quase transparente tocavam o seu braço, ou cismava com o seu próprio cinto, era gago, tinha a voz desconsertada, tropeçava, causava risos nos alunos, que cochichavam, Ele é gay, ele é veado, e pensava, o que significavam bem estas coisas, sempre coisas feias, mas já não podia evitar, sentira os lábios do padrasto sobre os seus, a língua dele passeando pelo seu pescoço, as mãos fortes e peludas acariciando-o, apertando seu corpo adolescente, ali em sua cama apertada, pedia que não, mas ele dizia que era bom, homens podem se amar, daqui a cinco anos não vai fazer tanta diferença à idade entre nós dois. Mas e a mãe, acreditava agora, mas antes já tinha pensado, ele é marido da mãe, como ela vai ficar se souber, e sentia-se envergonhado, culpado, mas não teve como evitar, tinha pedido que não, mas ele é mais forte, sedutor, grande, dominava-o.

A sineta com o fim da aula tocou estridente, todos acudiram espavoridos para o intervalo, derrubando carteiras, e a voz vacilante, tremula do professor Malthus, pedindo que não corressem nem era ouvida, arrumando suas coisas devagar sobre sua mesa, num riso frágil, então James permaneceu lá em seu cantinho bem nas ultimas carteiras, e o eco da algaravia de risos e vozes dos estudantes lá fora fazia eco na sala já vazia, e Malthus levantou os olhos percebendo James ali, sentado, um pouco empertigado, observando-o insistentemente por trás das lentes, as mãos por sob a mesa.

_Não vai para o recreio – perguntou sorrindo Malthus, segurando suas pastas contra o peito, aproximando-se um pouco.

James ergueu-se, a mochila nas costas. Era mais alto que o professor um pouco, e reparava-o de cima abaixo, sorrindo sutilmente, mas de modo que foi deixando Malthus ressabiado, mesmo observou a si próprio.

_Gostou da nota que te dei – perguntou num tom atrapalhado de voz, Malthus, logo acrescentando – adorei sua composição. Você foi muito espontâneo e criativo.

_É – disse James num franzir de lábios – eu não consigo deixar meu boneco robô, mas ele me abandonou há muito tempo. Ele nem me quer mais – virou o rosto numa atitude como que petulante.

Malthus sorriu, tocou ao ombro dele, colocando as pastas debaixo de um braço, então James chegou mais perto dele, puxou-o pela cintura, as pastas desabaram no chão, mas antes que Malthus pensasse em abaixar para pegá-las, rindo atrapalhado, James segurou-o mais forte pela cintura, e disse o espetando de leve com uma caneta na barriga:

_Quero que me beije, seu veado. Agora, ou te furo com isto aqui.

_James, que isto, eu sou seu professor – disse tremulo, tenso, Malthus, arregalando os olhos assustados – eu não posso beijar você. Procure um garoto da sua idade – mas sentiu a ponta do lápis o apertando, Vou te furar baitola, quero que me beije agora.

_James, me respeita – gemeu Malthus sentindo a ponta do lápis começando a furá-lo – você não pode me machucar, sou seu professor.

_Que se dane, você é veado como eu – gritou no rosto do professor assustado, já o furando com o objeto, mesmo Malthus tremia sentindo que o garoto era mais forte que ele, aproximava os seus lábios do dele, mas o professor o empurrou com certa veemência o jogando contra uma carteira e desabalou em carreira, deixando as pastas ao chão. James abriu um sorriso malicioso nos lábios delgados, brilhava acima destes uma penugem dourada de bigodinho a luz do sol que coava pelas largas janelas abertas; olhou a ponta do lápis com um pingo do sangue que vertera da pele do professor, jogou-o no chão, abaixou-se a recolher as pastas, deixando-as por cima de uma carteira, e segurando a mochila pelas alças foi saindo da sala, atravessando o pátio repleto de estudantes a correr à toa pela hora do intervalo, cheio de si, mais espaçoso, empertigado, as pernas alcançando um passo mais largo que outro, decidido a ir para casa mais cedo, hem, encaixotar de vez aquele boneco robô e quem sabe ficar ele lá no armário das coisas emprestáveis na área de serviço junto ao tanque, que pela maquina de lavar, nem tinha uso.

***

Rodney Aragão