DOCE MEIO-AMARGO

Enxergou os sapatos embaçados dele sob os pés da estante. Estava do outro lado. Queria falar com ele, então James, o que você fez não foi nada bonito, por que desrespeitou assim seu professor? Vamos ter que lhe dar uma suspensão, hum, mas não, nada disto, ele estava na biblioteca da escola, e à mesa junto à porta estava a Dona Janete , séria, mãos cruzadas sobre a mesa, olhando o ambiente vazio, a ordem, tesa, empertigada, sentinela. Deu a volta pela muralha de livros, e então o viu, estava com um livro aberto sobre as duas mãos, e levantou os olhos, Malthus quando sentiu que James estava próximo. Olhou-o com certo receio, mas sabia que a professora Janete estava ali, contou mais menos a Margarida o que tinha acontecido, ela disse que tinha que ser punido o aluno, oras, mas Malthus pediu que ela não falasse nada, ia conversar com ele primeiro, mas que ela ficasse sabendo, alguém tinha que o proteger. Por que estava tremendo de medo do garoto. Que Haroldo nunca soubesse de um vexame desses, foi fechando o livro, devolvendo-o a prateleira entre outros abandonados, suspirando, firmando a mão no cinto de fivela grossa presa ao cós da calça com vinco. Ele disfarçava um sorriso de lábios salivados, os olhos míopes e espertos atrás das lentes, a blusa colegial um pouco amarfanhada e suja de tinta de caneta.

_James, quero que saiba que não estou com raiva de você – começou dizendo.

_Eu queria pedir desculpas para o senhor – disse de súbito, segurando as alças da mochila presa as costas – eu não queria fazer aquilo, verdade, fui um besta – e sacudiu os ombros, ruborizado, vendo um sorriso nascendo nos lábios do professor.

_Mas por que fez uma coisa daquela, me feriu, me agrediu – gaguejou o professor com a voz embargada – eu procuro ser um bom professor...

_O senhor é acredite – disse, sorrindo satisfeito por vê-lo animado, confiante – o senhor vai me denunciar para o diretor?

Suspirou o professor, sorriu, dizendo que não, pois sim, vamos esquecer isto, não falemos mais nisto, mas que isto não se repita. Aproximou-se, tocou sua mão macia e transparente no rosto imberbe do rapazinho.

_Eu quero apenas respeito. É só o que peço – disse – e quero que estude, dedique seu tempo mais a estudar.

_Me desculpa, professor, mas nesta escola não se aprende nada – disse num tom risonho, constrangendo Malthus.

_Como assim – gaguejou tremulo o professor – você acha que eu não sirvo, que minhas aulas, as aulas da professora Margarida, do Egeu, do Franz, você acha que não servem para nada?

_Não, não – disse olhando-o fixamente nos olhos – não é o senhor, não são os professores. É a escola entende – e foi se desviando escorregadio, deixando Malthus a tremer o queixo, ainda procurando palavras que pudesse falar e fazer efeito, mas lhe escapavam, fugiam tão escorregadias e lépidas quanto o menino.

Passou na sala desocupada que os meninos andavam treinando banda, que era o “grande” incentivo do professor de História Egeu, e viu apenas Dioniso, dedilhando a guitarra ligada ao amplificador, sentado a uma cadeira. Bateu a porta timidamente, enrubescendo, sentira o ardor do sol outonal ainda pouco, suspendeu o cinto firme como se precisasse, e o garoto apenas levantou os olhos conferindo quem entrava, voltando apressadamente aos seus dedos na guitarra, os cabelos resvalando nos olhos, caindo pelos ombros.

_ Oi – foi dizendo, agora estalando os dedos Malthus – cadê o resto dos meninos?

Dioniso levantou os olhos num franzir de cenho enfarado, respirou fundo, voltou à atenção no que fazia, sem responder-lhe.

_Está tocando muito bem – foi tentando Malthus, num riso atrapalhado, rodeando o rapaz, observando sua vaidade no trabalhar com aquele instrumento – parece que eu conheço está musica que você esta levando – suspirou, cruzou as mãos sob o queixo, os olhos virados para cima.

Dioniso interrompeu-se, inclinado sobre o instrumento, rindo foi de dizer num tom antipático de voz:

_Ah, por favor, cara, nem é dia de sua aula hoje, dá um tempo, poxa, não amola – e baixou os olhos ignorando a cara estupefata de Malthus neste momento, o queixo tremendo assim como a boca entreaberta, o susto no peito. Virou-se e saiu arfante, segurando a vontade de chorar, mas os olhos ficaram então marejados de lagrimas. Por que está hostilidade, meu Deus, era o que se perguntava em prantos por dentro já.

Haroldo ligou o chuveiro, abraçou Malthus, pegando-o seu rosto entre as mãos fortes, encostando seus lábios nos dele.

_Hmm, adoro esta hora, a melhor hora do dia – gemeu, enquanto apertava o corpo delicado do parceiro junto ao seu, beijava-o no pescoço, Malthus deixava-se levar apaixonado, e foi na cama, um pouco mais tarde, quando então já tinham decidido dormir, Haroldo virando para o outro lado, apagando a luz quadrilátera do abajur na cabeceira, que Malthus abraçou-se ao corpo de Haroldo, encostando seu rosto junto ao peito forte dele, e chorando.

_Que houve amor – perguntou surpreso e assustado, Haroldo, com aquele desespero inopinado do companheiro – que tristeza é essa minha paixão – e afagava lhe os cabelos.

_Ah, Haroldo, eu não sei – resmungou em lastima, o queixo fincado no peitoral do amado.

_Se for por causa da minha mãe, olha, não precisamos, poxa – o afagava – eu trabalho, você trabalha, e depois sua mãe nos apoia não é. Ela gosta da gente, hem.

_É, mas é por que ela está longe – resmungou ele, logo se deitando sobre o namorado, beijando-o nos lábios, sentindo os braços dele o envolvendo – é por que um aluno me destratou hoje em sala de aula.

_Te destratou – perguntou intrigado Haroldo – como?

_Ah, não precisa fazer está cara, amor – falou Malthus num tom melancólico – foi coisinha à toa, sabe, assim, aqueles meninos que ensaiam musica na escola, estava um deles tocando guitarra lá, eu entrei, tentando ser simpático... e bom, ele me deu um fora.

_Já te falei que você não deve dar confiança a esses adolescentes, e seja duro com eles, só assim eles vão te respeitar – beijou-o nos lábios – e você devia responder a ele, mostrar quanto ele é idiota.

_Credo, não, Haroldo, não gosto de grosserias – abraçou-o mais, deixou-se ficar assim por cima dele, a noite silenciosa, um pequeno pé de pinhas ali junto a janela.

Era sábado, e acordou cedo mesmo assim, deixando Haroldo dormir um pouco mais, levantou-se para comprar pão, as mãos nos bolsos da bermuda, de boné, cumprimentando a senhoria que morava a casa a frente, estava a janela, sorriu-lhe quando o viu sair pelo portão lateral, mesmo cumprimentou alguns vizinhos ao portão já aquela hora da manhã, e quando voltava, trazendo o embrulho de pão nas mãos, jornal debaixo do braço, respirando o ar fresco da manhã nublada, cinza, então reparou que aquele menino que vinha andando tortuoso pela calçada na sua contra mão... não, seria possível, assim de camisa preta com uma estampa monstruosa, cabelos longos, mas estavam meio desgrenhados. Era Dioniso, seu aluno. Não estava frio, frio, mas carecia de um casaquinho, assim como ele vestiu de gola longa e apertadinho no torso para ir a padaria. Viu que o garoto tinha o andar dos embriagados, e por fim caiu na calçada mais adiante, em frente a um portão de madeira, assim sentado, se contorcendo, os cabelos resvalando, começou a vomitar sofregamente. Malthus reparou que a janela a frente, no instante em que se abriu para ver curiosa, fechou-se. Acudiu até o garoto, reconheceu-o, sim era mesmo Dioniso, e ele tinha o semblante torturado, arfava com os lábios babando.

_Ah, que horror – gemeu Malthus, mas colocou o pacote de pão e o jornal em cima do muro, tentou suspender o rapaz pelos braços, pedindo que ele se apoiasse em seu ombro, mas Dioniso vacilava nas pernas trôpegas, os tênis quase saindo dos pés, e desabou sentado na calçada, arquejando, inclinando o rosto para o chão, vomitando grosso novamente. Malthus acudiu para sua casa, acordando Haroldo, desesperado, jogando os embrulhos que trouxe da padaria em cima da cama. Haroldo vestiu um short apressadamente e correu com ele até onde Dioniso já estava com a cara afundada no próprio vomito, suspendeu-o pelos braços sem muito esforço, tendo que Dioniso é magricela, apesar de boa altura, e o levou para dentro da sua casa, com Malthus o seguindo atônito.

_Coloque ele na nossa cama, amor – disse Malthus, e Haroldo protestou hesitante, com o rapaz nos braços assim arquejante de todo mole, Na nossa cama amor, poxa, melhor no sofá.

_Amor, não, coitado do menino – protestou Malthus, e Haroldo acabou por aceder, mas jogando o rapaz com certo asco, assim como uma trouxa, mesmo Dioniso arquejou, gemeu, contorceu-se na cama, os cabelos em desalinho no rosto afogueado. Malthus sentou-se na cama ao lado do rapaz semi-inconsciente, pegou o pulso dele, sentiu que estavam fracas as batidas.

_Claro, esta porra tá de porre brabo, deve ter enchido a cara de vodca – disse Haroldo num riso irônico, Malthus o olhou com admoestação, e voltou-se para o rapaz que arquejava, gemia, babava, os braços jogados ao longo do corpo.

_É melhor darmos um banho frio nele – disse Malthus – amor, levante ele, você que é mais forte, jogue ele debaixo do chuveiro, eu vou fazer o nosso café e um chá para ele.

Os broders assim tudo junto, show hardcore, nada, nada deste vinho quente, não, não, a galera se embola, todo mundo de preto, mas tem aqueles carecas marrentos nos chamando de playboys cabeludos, metal man, mas não tem briga qual é, foi Charles tocando ao meu ombro, jaqueta jeans irada bordada com os corvos gêmeos em portal, poha, isto ai sim pode crer, olha ali é o pirralho do James, pulando, vindo para cá, querendo o Black Label que o Lucas trouxe, esconde não, deixa ele ver, não vai ter nada, Olha lá porra, caralho, não acredito, minhas mãos desesperadas na mente, sacudindo os cabelos, desgrenhando eles ainda mais, lol, lol, é Sepultura no palco, quando, quando outra vez, mas girou, girou, cadê nosso Black Label, Lucas, poha, cadê caralho, e que isto aqui, liquido vermelho sangue em garrafa pet, quente, doce, mais, mais, escorre como sangue pelos cantos da minha boca, piso no pé de um careca enfezado, mas toca aqui mano, e ele já se desiquilibrava, cadê os manos, cadê os manos, os broders.

O corpo fatigado recusava-se a pequeno movimento, por isso foi abrindo os olhos mortiços, cansados, respirou mais forte, buscou ar, sentia no peito nu fundo a dor ainda nas entranhas, e sentia a textura cálida do cobertor cor de pêssego, já estranhando aquelas paredes cor de salmão, uma cômoda branca com vidros de perfumes em cima, abajur na cabeceira, uma tapeçaria em rosas num fundo esverdeado a sua frente. Onde estava, perguntava-se, mas nem tinhas forças para se erguer, mal conseguia abrir os olhos, sentindo aquela lassidão dolorida, a janela ao lado da cômoda fechada, as cortinas cerradas, a atmosfera de uma penumbra cinza, um cheiro adocicado de flores, seria da tapeçaria, perguntou-se franzindo o cenho, com os dedos longos e trêmulos suspendendo a coberta que o cobria até o abdômen, vendo que estava nu. Seria a casa do Charles, ou do Alex, ou quem sabe de alguma das meninas, Jessica, Tamise, Sabrina, qual delas?, tentando buscar forças, apoiando-se pelos cotovelos, assim olhou o ambiente pequeno, uma televisão de LCD pequena presa a parede junto a tapeçaria, desligada; a porta cerrada, atrás dela ouvia sons, quase cochichos, mas uma tosse sobressaiu seca, súbita.

_Jéssica, Tamise... Sabrina – gemeu baixinho, sem força, doía-lhe os rins, como daquela vez que fora parar no hospital – Charles, Lucas, Alex. Algum de vocês – mas não tinha resposta, e não estava com forças para se erguer, antes desabou, a cabeça no travesseiro, reparando outro travesseiro ao seu lado, espaço na cama. Cama de casal, pensou num sorriso débil, pálido, os lábios finos, sem cor – que loucura é esta – murmurou baixinho, virando-se, debaixo da coberta, enrodilhando-se, contorcendo-se de dor, e sentiu a porta se abrindo atrás de si, e respirou tenso, sentindo um perfume, que perfume era aquele, e virou-se, contraiu o rosto com ânsia de vomito, enquanto Malthus estava bem junto ao umbral da porta, os braços cruzados, de repente ficando aflito ao vê-lo arquejando em ânsia de vomito, e de verdade vomitou no chão junto a cama em um jato liquido, demorou-se arquejando, babando entre os lábios, enquanto Malthus acudiu a trazer uma caneca com chá, aproximando-se dele, com cuidado, ajudando-o a se erguer, ficar sentado na cama.

Dioniso pegou a caneca com as duas mãos tremulas, os cabelos desgrenhados pelo rosto, olhando desconfiado para... o professor?, sim , é ele, e levou a caneca junto aos lábios, mas a repeliu contraindo o rosto com enjoo, mas Malthus pegou-o pelas mãos e forçou-o, carinhosamente, a levar a caneca a boca, Toma, é preciso, vai te fazer melhorar.

_Oque eu faço aqui – perguntou arfante depois de ter bebido fazendo careta por parte da bebida morna – como vim parar na sua casa?

_Eu te encontrei na rua, há algumas horas, logo cedo, caído, vomitando – disse gaguejando. Haroldo apareceu no umbral da porta, de short, camiseta, braços cruzados, perguntando risonho, O pinguço já esta se sentindo melhor.

Dioniso levou a caneca a boca novamente, num olhar desconfiado para Haroldo.

_Não fale assim, Haroldo, quem nunca tomou um porre assim quando adolescente – disse Malthus, e Haroldo riu, circulou pelo quarto, e abaixando a caneca, com os olhos languidos e a respiração cansada, Dioniso foi observando o quarto, a mobília, a cama de casal em que estava deitado, os dois, o professor Malthus, e contraiu os lábios perguntando, Vocês dois são casados. Malthus enrubesceu, tornando-se atônito, enquanto Haroldo disse muito decidido em tom firme que sim, vivemos juntos, casados, e Dioniso inclinou-se para fora da cama, arquejando violentamente em ânsia, vomitando pequenos líquidos de biles, deixando Malthus aflito, afagando lhe os cabelos com preocupação, enquanto Haroldo fazia uma careta de nojo.

_ Espere ai – resmungou ofegante, passando o dorso da mão nos lábios úmidos da baba do vomito – vocês não se aproveitaram de mim, não, ne...

Haroldo gargalhou, enquanto Malthus se espantava, querendo se desculpar.

_Qual é a sua moleque, a gente ajudou você; você vomita no nosso chão, vamos ter que limpar está porra do seu vomito e você ainda vem com essa... tá pensando o que – foi estufando o peito Haroldo, mas Malthus levantou-se, pediu que o namorado tivesse calma, então, Dioniso abaixou os olhos, franziu os lábios, murmurou desculpas, sim, eu não tive a intenção de ofender, mas que não entendo este negocio de gay, e foi tentando se erguer, falando que ia limpar sua sujeira, onde estava a sua roupa, hem, Haroldo mostrando que estava dobrada em cima da cômoda, inclusive sua cueca imunda. Enrubesceu o garoto, enrolando-se no cobertor, mas tonto caiu para trás na cama, então Malthus disse que se vestisse, hem, estava preparando o almoço já, já, comeria com eles, depois podia ir.

_Tudo bem – disse deitado Dioniso, o cobertor enrolado no corpo – mas eu limpo a sujeira. Mas quando se vestiu e saiu do quarto, assim sentindo-se mal, fraco, apoiando-se nas paredes, encontrou Haroldo a frente do fogão, uma musica eletrônica tocando no ambiente, mesmo ficou rindo, constrangido, reparando que o cara requebrava o bumbum, mexendo a panela, sem saber que ele estava ali no umbral de entrada a olha-lo, mas foi um hum-hum que Malthus fez passando junto à porta, com balde e esfregão na mão, que fez Haroldo virar-se e reparar que o garoto estava o ali olhando se requebrar, contudo não perdeu o “rebolado”, mesmo parando de rebolar, olhou-o de semblante sério, ruborizando um pouco, no entanto.

Dioniso sentou a mesa com eles, aceitando a salada e o purê, mesmo a agua de coco, que Malthus recomendou como bom para hidratar, Você precisa, disse ainda, vomitou muito, perdeu muito liquido.

_Foi mal, cara, sabe – foi dizendo, cabeça baixa, os cabelos resvalando pelo rosto – fiz sujeira na sua casa, e desculpe... eu não queria falar mal de... bom...

_Relaxa – falou Malthus – isto não vai virar manchete da semana.

_O diretor sabe que você é gay – perguntou de súbito, Dioniso, falando de boca cheia, mastigando.

Haroldo suspirou indignado, mas Malthus olhando-o pediu num sorriso que se acalmasse, e voltando-se para o garoto respondeu:

_Creio que sim, Dioniso, não vivo escondido; estou ciente dos meus direitos. Agimos todos com respeito, profissionalismo.

_O senhor não tem vontade de falar coisas de gays para os alunos – perguntou num tom sarcástico, e Malthus reparou que Haroldo estava cerrando o punho de uma das mãos, mastigando com o maxilar trincado.

_Que necessidade há numa coisa dessa, rapaz – falou muito docilmente Malthus – eu sou professor de português e Literatura... e depois a orientação sexual de cada um deve ser uma coisa para ser respeitada e não ensinada ou exposta.

_Certo, certo – foi o garoto já comendo com mais vontade – desculpe, tenho muita curiosidade sobre vocês sabe.

_É mesmo – aproveitou Haroldo em tom irônico – isto mostra sinal em interesse de quem é encubado.

Dioniso levantou-se da mesa com o rosto enfezado, resmungando, Qual é cara, sem ofensa, valeu, eu sou macho, gosto de mulher, sabe qual é.

Haroldo riu, Malthus enrubescia, e Dioniso ainda de pé, perguntou com as mãos em punho cerrado do que ele estava rindo.

_Como sabe se gosta de mulher mesmo – disse rindo Haroldo – deve ser virgem, com esta carinha angelical, este corpinho franzino.

_Calado ai cara – respondeu em tom aborrecido, dedo em riste, Dioniso – como pode deduzir o que faço da minha vida. Eu já tive muitas namoradas, ok.

_Claro, claro – foi Haroldo rindo, mexendo a comida com o garfo – aquelas que postam nuas nas redes sociais as madrugadas.

Antes que o clima pesasse de verdade, Malthus pediu que Haroldo parasse de provocar o garoto, e pediu a Dioniso que não esquentasse com tão pequena bobagem, hem, sentasse, comesse a comida, estava bom, não estava, e sentando-se, mas encarando Haroldo com semblante fechado foi dizendo que sim, e pensando, bom veados sempre cozinham bem. Aceitou a sobremesa com um pouco de gulodice, pois estava se sentindo melhor, mesmo as forças nos membros do corpo como as pernas e os braços. Malthus disse pegando a compota em uma tigela de vidro:

_Bom, Dioniso, o almoço foi o Haroldo que fez, mas a sobremesa é minha especialidade – depositou ao meio da mesa a tigela com o doce amarelo esverdeado em calda – doce de laranja da terra, aprendi com a minha avó em Rio Dourado – pegou um potinho grande, serviu-o sobre o olhar esfomeado dele.

_ Parece bom – disse o menino suspirando, afastando o cabelo dos olhos, com a colher em ação, já levando o doce a boca, sob o olhar em expectativa de reação de Malthus, sorriu, aprovou – sim, é bom, gostoso – e foi provando mais, suspirando, enquanto Malthus servia Haroldo, com um sorriso que se podia perceber materno, sim, Haroldo estava vendo seu companheiro agindo num sorriso materno, mesmo aquilo de servir a ele era como a complementação, ele o marido, aquele menino cabeludo e magrelo o filho, e ele mesmo a mãe e esposa. Deixou-o, encostando-se a vontade na cadeira, observando-os, o parceiro e o garoto, cruzando os braços, esquecido da sua porção de doce. Malthus colocava mais no pote as mãos do garoto, que agradecia suspirando – poxa é bom mesmo, professor – exclamou Dioniso – tem um certo amargo no final, assim, certo travinho – acrescentou levando mais a boca.

_Pois é, mas assim que é bom, Dioniso, tudo que é doce de verdade é um pouquinho amargo, assim como a vida da gente – piscou-lhe – você não acha.

Concordou com meneio de cabeça, mastigando, agradeceu ao terminar, bebeu da agua de coco, arrotou, pediu desculpas, enrubescendo, mas Malthus disse sorrindo, Tudo bem, e queria ter acrescentado que estava em casa, mas não, não, nem o conhecia direito, era apenas seu aluno, mas nesses instantes chegou a acreditar que formassem uma família completa: dois pais e um filho. Sim, um filho, desejava um filho, era Malthus emocionado olhando o rapaz, que logo foi se erguendo da mesa, agradecendo mais uma vez, mas era preciso se mandar, sua mãe devia estar preocupada. Malthus queria que ele ficasse mais um pouco, mas sabia que não podia pedir, a “confiança” poderia voltar a ser desconfiada, e todo amor filial que sentia podia ser entendido pelo rapaz com outro sentido, e o melhor seria deixa-lo ir, por isso chegou perto de Haroldo, tocou a mão do parceiro, e este lhe apertou firme a mão dele na sua. Os olhos de Dioniso foram ali, mas suspirou, disfarçou o sorriso para que não parecesse debochado, cruzou os braços, e bom, eu tenho que ir, estendeu a mão para um aperto, foi firme no aperto de mão com Haroldo.

_Foi mau cara, não queria ofender você – disse ainda num tom meio sem jeito, meio sem graça.

_Tudo bem – disse Haroldo num tom firme abraçando Malthus pela cintura – espero que você não beba muito da próxima vez que sair.

_Pois é, e o show do Sepultura, mas eu sou um caso perdido, sempre bebo muito – disse num tom meio vaidoso – espero que a gente possa um dia ir juntos ao show – sacudiu os ombros – bem se vocês gostarem de rock.

_Haroldo adora Bullet for My Valentine – comentou Malthus, e Haroldo enrubesceu apertando-o mais junto a ele.

O garoto se foi, segunda feira o veria na escola, mas procuraria nem olhá-lo, mas talvez ele não se importasse mais que ele perguntasse pela banda, que comentasse que conhecia aquele musica, talvez, talvez, mas por um momento amou tê-lo assim aos seus cuidados como um filho que voltou da farra e passou mal, e enquanto Haroldo se sentava para ler os jornais, ele foi dar um jeito na cozinha, e reparou o potinho que o menino havia comido doce, sim, ele havia deixado os cravos no cantinho. Um pouco amargo, mas não o suficiente para azedar o gosto todo.

***

Rodney Aragão