SOBREVIDA

SOBREVIDA

Canetinhas coloridas. Escolheu uma e pintou a copa da arvore que ele mesmo desenhou no papel. Sozinho dentro da sala de aula vazia, a hora do recreio, na ala do ensino fundamental. De vez em quando suas orelhas atentavam alertas para o som das crianças e jovens brincando lá fora, mesmo correndo para a cantina.

Pintou o caule magro, torto que desenhou, com a canetinha marrom. Apreciou o trabalho com um sorriso ingênuo como se fosse outra pessoa olhando, mas cansou.

E se arriscasse? E assim levantou-se de sua carteira, desviando os olhos vesgos para o papel branco no caderno sobre a mesa. Nota dez na redação, disse-lhe ainda pouco a professora Raquel, orgulhosa, Renato você é o melhor aluno em Língua Portuguesa!, abaixou os olhos estrábicos num sorriso constrangido. Ninguém lhe tirava isto, esta felicidade! Caprichar na redação. E saiu para o recreio. O pátio dos ginasiais o assustava. Gostava de ir lá, lá... para a outra base. Gostava mesmo era daquele canto baldio, quase saindo das dependências dos edifícios, mas que ainda era cercado pelos muros do estabelecimento. Ali tinha uma grama verde, um pouco macia, e se não estava molhada, sentava-se sobre ela, e sozinho lia revistinhas, ou seus livros de escola (havia historinhas nele). Imaginava historias. Um dia imaginou que era outra pessoa, mas não sabia que pessoa era esta. Era uma pessoa alta, muito falante, andava empertigado, sabia deslizar num skate e então foi que o gordinho, Felipe, tinha lhe tomado o dinheiro do lanche. Gostava de pastel de banana, mas resignou-se com sua desdita, contudo deslizando num skate mesmo, aquele garoto de cabelos pretos, longos e desgrenhados passou perto do seu agressor, Por que você tomou o dinheiro do moleque?, Porque ele é otário, respondeu apenas, e tomou um safanão na cabeça, na ideia, Devolve o dinheiro do pirralho! Recebeu o dinheiro de volta, agradeceu (a quem?), o Felipe o encarou zangado. Quer um pastel de banana também, perguntou ao seu herói, em seu fio de voz tão tímido, com aquelas notas sujas e rotas amassadas nas mãos em garranchos, escondendo os olhos tortos no semblante baixo, e seu herói riu, Garoto tu é feio para caralho!, e voltou de onde veio, deslizando no skate pelo corredor. Hum, hum, ele pegara seu dinheiro de volta, desejava retribuí-lo, “Quer um pastel de banana?”, “Garoto, tu é feio para caralho”. Comeu o pastel, embora descesse tão dolorido, sentado junto ao balcão da cantina, equilibrado no banco alto. Procurou seu herói outro dia, outro dia, talvez não esquecesse o rosto dele, mesmo que a palavra-murro ainda doesse. Agora comia seu pastel de banana sempre sossegado. Era arriscado!, encolhia-se entre os ombros, a cabeça como um tatu se escondendo na carapaça. Bom era ficar ali a sala desenhando. A biblioteca tinha internet enchia-se nos intervalos, entre cochichos e sussurros festivos .

A frente da sua casa, abria o portão de lata enferrujada que rangia, Ele saía do portão a calçada a frente, empertigado, louro, cabelos compridos, todo de preto, e nem o percebia.

A quadra. Foi onde ele arriscou porque já sabia. Aula de educação física do ensino médio, e no intervalo o jogo de vôlei. Parou junto à grade protetora, e ficou observando tolhidamente. Ele estava de short e camiseta azul e branca, os cabelos dourados, avulsos atirando-se no ar a cada lance jogado e pegado; parava assim num gesto preciso de quem está atento, tenaz, alerta, às vezes deixava escapar e fazia um gesto com os punhos fechados de irritação, um moreno tirou a camisa, Charles, meu baum, tu é muito ruim!, e Charles sentou-se junto à grade rindo, ofegante. Renato sentiu os cabelos dele bem próximo, recuou. A emanação suada que vinha dele. Charles, Charles, dizia seu coração acelerado, assustado, Ele se chama Charles, que nome lindo!, e levou as mãos aos lábios com medo que as palavras escapassem da mente e ganhassem som. Ele enterrava o rosto nas mãos abertas, os cotovelos fincados nas coxas, sacudia as espáduas rindo, rindo, os cabelos dourados resvalando. Renato recuou vendo que Ele se levantava, dava a volta, deixava a quadra, mesmo passou rente a ele ali parado, nem o percebeu. Pode sentir-lhe a emanação forte de suor, o calor da respiração excitada, e nem o percebeu ali parado olhando-o. Seguiu-o, distante, com as pernas tremulas, viu-o entrar no vestiário de educação física. Não podia entrar!, foi Renato parando junto à porta. Não era seu dia de educação física,e outros garotos passaram por ele, esbarrando-lhe apressados, para dentro do vestiário masculino.

Charles, escreveu ao lado da arvore desenhada. Fez uma flor. Simples. O sinal tocou, a turma entrava de volta. Aula de matemática. Continuou desenhando flores junto a arvore de caule comprido pintada de marrom com copa frondosa pintada de amarelo. Amarelo! CHARLES, escreveu em forma de arco em cima de CHARLES, escrito em letra forma. O professor entrando na sala, alto, sério, usando óculos de aro preto, camisa xadrez, pedindo silencio com voz firme e autoritária. O burburinho crescente que se formava no ambiente foi murchando aos poucos até ficar apenas o som das pás dos ventiladores girando no teto. Renato guardou a folha com o desenho dentro do seu caderno e procurou atenção no professor.

Ao sinal de saída, afinal, levantaram-se todos num tropel, e o professor muito casmurro pediu calma, e Renato ficou atrasado lá no final da fileira que o carrancudo professor de matemática organizava. Lembrou-se, olhando para aqueles olhos empapuçados atrás daquelas lentes grossas, o dia em que chegou triste a aula contando que atropelara um cachorro, mas o enterrara, e na semana seguinte contara o porquê o enterrara. Sim, ele abandonara um cão uma vez, quando teve que deixar sua casa para morar em um apartamento. Em apartamento, prédio, não toleravam cães. Ele era moço, novo, novíssimo, despreocupado, e o remorso pelo cão abandonado só veio depois, bem mais tarde, talvez batesse no siso quando aquele dia atropelara e matara aquele cão vira-latas, acidentalmente, embora. E se atrasara para a aula. Renato imaginava a solidão do cão no quintal da casa, abandonado pelo homem que jurara amá-lo. Latindo, latindo, uivando de noite. Imaginava na solidão de seu quarto. Contou para sua Mãezinha, disse com sua vozinha frágil, fanha, embargada pela tristeza, O cão não deve ter deixado à vizinhança dormir, e alguém apareceu lá com um arma e pam! Na cabeça do pobre cachorrinho abandonado. Ficou pensando, cismando com isto vários dias. Imaginou-se mesmo um cão solitário errando pelas ruas, sarjetas, procurando o dono que o deixara.

Com o pensamento povoando sua imaginação de historias, ele sendo agora um jogador de vôlei, Charles agarra esta!, era assim, Ah, Charles agarrou, passou para ele, lançou, chocaram as mãos num cumprimento no ar, e ele alto assim como Charles. A folha resvalou do caderno que ele se esquecera de botar na mochila. Distraído, distante. Charles, Charles dizia sua mente.

Um dia saiu de guarda-chuva aberto, Mãezinha deixa que eu vou comprar pão. A camisa branca, enorme demais para seu corpo franzino, com a estampa enorme de São Sebastião no seu martírio se destacando vermelha. Seguia pelo meio-fio, atravessando a praça. À padaria viu-o sair. O coração acelerou. Ele sobraçado com um embrulho de pão, vinha empertigado, camisa preta de mangas compridas; os cabelos compridos e louros amarrados para traz, bem sério (enfezado?). A chuva que caía era mínima, dessas chuvas quase sereno, e Renato só usava guarda-chuva porque Mãezinha recomendava, “não vá pegar sereno nem chuva, não pode”. Charles vinha sem guarda-chuva. Renato parou dando-lhe passagem na calçada – como se precisasse – tentou se encolher mais para um canto, e acabou se atrapalhando na calçada, e acho que o guarda-chuva bateu no ombro de Charles; sentiu os olhos dele se inclinando, num semblante enfezado, tentando descobrir quem estava debaixo daquele guarda-chuva, e Renato se sentiu tão fraco que deixou o guarda-chuva cair, e o vento foi o arrastando, enquanto se encolheu mais contra a parede do muro, e Charles rindo correu para resgatar o guarda-chuva e o entregou assim aberto, sorrindo, embora o cenho parecesse carregado. Desculpe, pediu Renato tolhido, encabulado, com medo, mas Charles prosseguiu seu caminho sem nada dizer, bem empertigado. E Renato ficou ali, acuado, junto a um muro, encostado nele, segurando fragilmente tremulo aquele guarda-chuva, sentindo as pernas tremerem, as entranhas revolverem, os lábios lívidos tremiam também. Largou o guarda-chuva aberto, acocorou-se e esperou passar, esperou por que lhe doía tudo. Era uma dor nova, magna, de proporções estranhas, não se cabendo dentro do existir. Sentia-se tão ínfimo com sua dor inédita, que existia grande e dominadora como um todo universo. Sentia as veias pulsantes na pele seca agarrada aos ossos. A palidez já existente tornara-se tão evidente que se podia dizê-lo transparente.

A folha com a arvore loura desenhada ficou lá voando ao vento, pelo pátio, antes que as vassouras dos serventes a alcançassem ela veio planando baixa, tímida pelas pernas da garotada, que se alvoroçavam num alarido como de pardais na alvorada.

Charles. Era ele em cima do telhado de noite? Acocorado. Sim, devia ser. Talvez foi um sonho, mas ele usava um sobretudo negro sobre a roupa também preta, luvas de pano negro com os dedos branquíssimos ficando de fora; coturnos; os cabelos louros desgrenhados. Selvagem!, subindo no telhado para admirar a lua cheia. Ou podia ser lua nova ou crescente. Apenas os cabelos dourados brilhavam na escuridão. O rosto em sombra gris. Charles, Charles, dizia as pás dos ventiladores de teto no silencio das horas dos deveres. A redação, a compreensão dos textos. A guitarra, ele tocava, ouvia de quando em vez se arriscava a chegar ao portão, à calçada. Acontecia de ser o som muito alto, dali dava para ouvir. Confusão, não entendia, mas devia ser como ele lá no telhado, todo de preto, apenas os cabelos brilhando dourados na escuridão.

Rodney Aragão.

Dedicado a Franz Kafka.