O SOBRADO DA RUA QUINZE

Voltei passeando entre ruas e árvores para mim estranhas. Numa penumbra que o fim do dia fazia entrever, permitindo a cidade se tornar ainda mais melancólica, com ares de atmosfera pós-guerra, que em outros tempos me fariam soluçar.

Meus pensamentos vagueavam entre o lúcido e a insensatez. Um contorcionista frente ao tiroteio de indecisões que explodiam em minha mente.

Estavam lá, Vidal e Lúcia. O sobrado da Rua Quinze há tempos me denunciava. Eu não queria ver. Nem entender. Hoje, os seus corpos. Gestos. Beijos e carícias.

-Felizes os amigos, partilham o pão. Nas noites frias, sobrevivem com o cobertor do outro. Falou-me, certo dia, o Tobias, colega de faculdade. Não dei atenção a sua ironia. Lembro-me do riso sarcástico pontuando o final da afirmativa.

Hoje, os corpos. Gestos. Beijos e carícias.

Cheguei ao sobrado da Rua Quinze por volta das dezessete horas. Pela rapidez com que caminhara, gotas de suor desciam de minha testa. Transpirava cansaço e alegria. Enfim, a concretização do sonho. Sim, o emprego no jornal era meu. Lúcia também.

O portão verde escuro estava entreaberto. A ferrugem lhe cobria a lateral esquerda, embora ainda ostentasse a beleza necessária para garantir ao jardim o glamour das épocas distantes.

Subi os quatro degraus da porta principal e adentrei o sobrado. No bolso, a chave que os três anos de namoro me propiciaram ter.

Uma refrescante brisa me fez ondular ainda mais os cabelos. A janela lateral estava aberta. No silêncio da tarde, os meus passos ecoavam pela casa.

Pensei chamar-lhe o nome, mas hesitei. Surpreendê-la seria melhor.

Ao passar frente à biblioteca, vi silhuetas de serpentes abrasadoras. Enroscavam-se.

Flashes em minha mente. Vidal e sua cordialidade. A simpatia de Lúcia. Escobar saíra das páginas de Machado de Assis e surpreendera a minha vida.

Lembrei-me dos finais de semana no sítio da vovó. A infância e os sonhos azuis. Os amigos na Cachoeira de São Gonçalo. Vidal e eu sempre juntos. As férias. As aulas. Os desafios. A faculdade.

Lúcia e os meus projetos de vida. Aliança.

Regressei sem me denunciar. Por três vezes, encontrara Vidal naquelas proximidades. O sobrado da Rua Quinze há tempos me denunciava. Eu não queria ver. Nem entender. Serpentes abrasadoras se enroscavam.

Ao passar pelo portão, percebi mais uma vez a ferrugem sobre o verde. Tranquei-o pelo lado de fora, levando comigo a ferrugem na alma.

Tranquei-os no Sobrado da Rua Quinze. Do alto da rua, não consegui ver nada além de um sobrado em ruínas. Trancafiado pelo peso da desilusão. Entendi que havia trancado ali o meu passado.

Nonato Costa
Enviado por Nonato Costa em 06/12/2012
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