A moça da cadeira 43

Sempre amei o que eu faço, adorava assistir quando criança e agora adulto amo cada segundo de meu trabalho. Vejo milhares de histórias onde falam desta tristeza imensurável na alma dos palhaços, mas, comigo nunca foi assim. Sou apaixonado pelo picadeiro, não sei como seria a minha vida, se o olhar da plateia não me iluminasse diariamente. Não existem refletores melhores do que seus sorrisos, nem preço mais justo do que eu pago para arranca-los de suas bocas. Eu pulo sabendo que vou cair, eu caio sabendo que serei pago em risos, meu verdadeiro salário. De terça a domingo, eu ensaio, eu me transformo, eu me apresento, me destransformo e durmo sonhando com o ensaio do dia seguinte. Não é uma vida fácil, mas, vale cada segundo. Cada dia tem uma plateia diferente, nas terças e quartas as escolas nos enchem com seus alunos, ah como é bom ouvir os risos das crianças. Nas quartas e quintas, temos muitos casais de namorados, é difícil chamar a atenção deles, estão sempre tão entretidos, mas, nunca medi esforços para que eles aproveitem um pouco o espetáculo, e no fim, a palhaçada sempre acaba vencendo os beijinhos. Nas sextas são os adolescentes, é uma plateia difícil e exigente, que segura o riso ao máximo possível. As vezes levo quase 10 minutos para causar uma gargalhada, mas, depois da primeira não tem mais remédio, eles lembram que ainda são crianças, e riem sem se preocupar em parecer tão sérios. O melhor dia é o sábado, é o dia dos mafagafos. É o dia onde sempre faço algo diferente, sem quase ninguém perceber eu falo de mafagafos, sempre uma coisa diferente.

Todo tipo de publico vem ao circo no sábado, eles riem cada um em um tempo diferente, mas, o publico de sábado é o melhor sem duvida, mas, não só isso. Tem uma moça também! Um moça muito bonita, que todos os sábados vem ao circo, sempre senta no mesmo lugar, a cadeira 43. Ela já assistiu meu show um milhão de vezes, e continua rindo, olhando para mim como se me assistisse pela primeira vez. Um dia, eu errei minha fala e, só ela percebeu, eu improvisei e falei sobre mafagafos a primeira vez para consertar o estrago. Ela gostou, soltou uma gargalhada solitária, que me permitiu pela primeira vez, ouvir a sua voz. Nunca ninguém contou a história sobre o palhaço que se apaixonou por uma risada, mas, que risada gostosa de ouvir, eu já a espionava secretamente durante o meu show, mas, ao ouvir o seu riso solitário me apaixonei perdidamente. Após isso, tomei o cuidado de todos os sábados dizer algo diferente do que ela já havia ouvido sobre os misteriosos mafagafos, as vezes, eu planejava uma piada, que só ela poderia entender, por que só ela esteve prestando atenção nas diferenças do sábado anterior. Um dia eu fingi gaguejar tentando dizer mafagafos, “Desculpe querido público, mas eu não consigo dizer mafagagafafos, consigo sim, dizer mafagafinho, dizer mafagafão, mas mafagafos não, por favor entendam!”, na outra semana, gaguejei de novo, e fiquei bravo “Eu ensaiei 43 vezes só hoje! Foram 43 mafagafinhos, 43 mafagafões, e na hora de mafagafizar desmafagafiza tudo e eu não consigo dizer mafagafos”. Sempre que eu precisa dizer um número, era o número da cadeira dela. Não é fácil fazer isso sem o dono do circo perceber, mas, valia a pena por que eu era recompensado com aquela risada maravilhosa, que sozinha, preenchia o circo inteiro com alegria.

Claro que eu sei que eu sou só um palhaço. Um homem com roupas ridículas e que nem mesmo seria reconhecido na rua sem a maquiagem. Eu sei que uma mulher tão bela nunca olharia para mim. Ok, eu admito, existe alguma tristeza em ser um palhaço apaixonado. Tenho mil ideias de como aborda-la, oferecer-lhe flores que saem da manga, ou então molha-la com o jato de água que sai do meu chapéu. Nunca o fiz por que sei que sou apenas um pobre palhaço, pelo qual ela nunca irá se interessar. Se eu falar com ela, arrisco de assustá-la e fazer com que ela nunca mais me visite no circo, e isto faria ser verdade todas aqueles textos horríveis sobre o palhaço que chora durante a noite.

Dia após dia, pensando em uma forma de ser notado, tive uma ideia brilhante, mudar completamente o fim do meu número, queria muito chegar perto dela, e com uma velha mágica de arremesso de facas, completamente segura para quem executa, porém, muito assustadora para quem assiste, eu teria o pretexto perfeito! Corri para contar ao meu chefe minha ideia: “Eu escolho uma pessoa da plateia, a coloco imóvel, amarrada em uma parede, uma assistente venda meus olhos, e me da facas para atirar. A assistente me gira até eu ficar bem tonto, eu finjo que vou atirar a faca na plateia. O publico fica assustado, então eu levanto rapidamente a venda para dar uma espiadinha, me assusto com o que iria fazer e com o dedo na boca peço para a plateia não contar a ninguém que eu estou trapaceando e que quase fiz uma besteira. Finjo que irei arremessar na assistente, ela foge e me gira para o ângulo certo. Atiro as facas uma a uma, das maneiras mais impossíveis, sem errar nenhuma, afinal é tudo um truque com facas retráteis que saem da madeira. A ultima, eu finjo ter derrubado no meu pé, para quebrar a tensão, e encerro pulando num pé só com a faca fincada no outro pé esguichando confetes!”. Meu chefe adorou! Nem sabia ele que tudo isso era apenas para poder chegar perto da mulher que todos os sábados me encantava um pouco mais. Claro que eu não iria escolhe-la para ser minha vitima, seguramente amarrar e fingir atirar facas na mulher dos meus sonhos não é uma boa ideia, mesmo que ela fosse louca de gostar de alguém como eu, mas, eu poderia vê-la de perto todos os sábados. Escolheria sempre alguém sentado ao lado, alguém sentado muito próximo, até que um dia, e nada no mundo me impedirá de sonhar com este dia, por mais impossível que seja, ela me peça para escolhe-la. Ao invés de facas, talvez eu tenha coragem de dar-lhe uma flor, de perguntar seu nome, talvez até de roubar um beijo diretamente em sua testa. Em vez de facas, atirarei os mafagafos de pelúcia que tenho escondidos em baixo da roupa desde o sábado que tive a ideia, ela sabe como meu número deveria ser, e rirá sozinha, em minha frente, da piada que fiz apenas para ela, e que não consigo pronunciar...

=NuNuNO== em 10/12/2012

(Que lhe deseja um feliz dia do palhaço!)

PS: Conto em resposta ao "Eu e o Palhaço" de Aline de Melo.

http://www.recantodasletras.com.br/contos/3762084