UM ANJO

Mais tranquilo, dirigi-me ao snack-bar. Tomei lugar numa das mesas mais distantes da porta. Ela chegou passados alguns minutos, de gabardine vermelha, saia verde escura e camisola de lã preta, calçada com botas altas castanhas escuras... Colocou o chapéu de chuva num dos dois chapeleiros de latão à entrada e depois de me reconhecer entre os presentes, dirigiu-se sorridente até à minha mesa. Cumprimentou-me com um beijo na face e sentou-se.
- Estou toda encharcada, começou à pouco a chover com intensidade. Que chatice!
- Desculpa-me, o dia foi mal escolhido.
- Que ideia, como ias adivinhar que o tempo estaria assim? Não tens culpa. Além disso, a chuva não é impedimento para irmos trabalhar, não é verdade?
Sorri para ela e então perguntei-lhe o que queria tomar.
- Pode ser um capuccino, ainda não tomei café hoje. - Eu encomendei dois e passados alguns minutos estávamos  a saboreá-los.
Conversámos um pouco, confidenciou-me que o ideal para ela seria ter casa independente dos pais, mas tinha que esperar pelo epílogo do divórcio, então receberia dinheiro e poderia orientar a vida de outro modo.
- Mas aquele maldito tem-me feito a vida negra. Só espero que não volte atrás com a palavra. O meu advogado disse que em menos de um mês fica tudo resolvido.
Pousei a mão na sua - Tudo vai resolver-se a contento, Madalena.
- Esperemos que sim. - E também acariciou a minha mão, deitando-me um olhar pleno de ternura.
Entretanto eram horas do cinema, paguei a despesa e fomos andando, apesar da chuva e do vento, que tornavam desagradável todo e qualquer passeio.
Entrámos e ela ficou mesmo na coxia, o que lhe permitia ver melhor o ecrã, já que a sala era pouco inclinada.
O filme, "As Asas do Desejo", pese embora o tom triste e melancólico dado pelo preto e branco da película era belíssimo, tanto esteticamente como em termos de atores e realização. Ela também o comentou, à saída.
- Gostei muito!
- Eu também! Sabes? Dizem os místicos que todos temos um anjo a cuidar de nós! Infelizmente, tive um há muitos anos, mas não me sobreviveu... E agora estou sem proteção.
Olhámo-nos, notei a imensa ternura da sua expressão, então aproximei-me do seu rosto e beijei-lhe delicadamente os lábios, com toda a ternura que no meu coração agora ameaçava explodir. Abraçou-me e ficámos assim mais de um minuto. A roupa fina permitia-me sentir os seus seios encostados ao meu peito, os dois corações batendo aceleradamente mas em sintonia, como se fossem um só.

"MEMÓRIAS DE UM PINGA-AMOR" - Excerto do livro, em fase de conclusão.


Ferreira Estêvão