AMOR EM QUATRO ESTAÇÕES


Primavera

          Na pequena cidade de Sonho Real, no interior de um estado qualquer do país, as flores desabrochavam vivas, coloridas e frondosas, anunciando a chegada da primavera. O aroma vindo do campo, exalado das rosas, margaridas, jasmins, bromélias e orquídeas cultivadas perfumava e dava magia ao lugar. Existia uma sintonia perfeita entre a paisagem e o povo, uma verdadeira simbiose transbordando felicidade. Esse era o cenário inspirador para dois corações apaixonados viverem um grande amor, até que a morte os separasse.

          Mabel era linda, doce, meiga e encantadora; fazia jus ao seu nome, que significava minha bela. Sua pele morena, cabelos negros e encaracolados, olhos castanho-claros e sorriso largo adornavam seu corpo de 1,60 m e 50 kg, geralmente coberto com vestidinhos coloridos, sapatilhas da moda e pequenas argolas de ouro nas orelhas. Ela era apaixonante e estava cheia de pretendentes na cidade; enlouquecia os jovens que a admiravam ao passear na praça no crepúsculo do fim de tarde. Acabara de completar 15 anos, era virgem, nunca foi beijada, era intocada, menina imaculada que ganhara corpo de mulher.

          Saulo era um jovem forte e robusto - com seus 70 kg distribuídos em 1,75 m - transpirava virilidade e determinação, embora tivesse apenas 18 anos. Não era dos garotos mais bonitos da cidade, mas também não o consideravam feio; estava dentro da normalidade: moreno, altura mediana, cabelos curtos e ondulados, olhos negros e sempre atentos, emitiam o fogo da inteligência. Ajudava o pai na mercearia em frente à Igreja, era o mais velho, e mais sisudo, de três irmãos, sentia-se na obrigação de trabalhar durante todo o dia e contribuir no sustento da família; à noite, cursava o último ano do ensino médio, queria entrar na faculdade de administração de empresas; sonhava em ser um grande comerciante local, corria atrás dos seus objetivos, todos possíveis.

          Na festa da padroeira da cidade, um parque foi montado na praça central. Via-se: roda gigante, carro bate-bate, carrossel, tiro ao alvo, vendedores de pipocas, churros, algodões doces e maçãs do amor. Todos passariam por lá, Saulo e Mabel não seriam diferentes; nesse dia festivo, o destino os uniria para sempre. O rapaz chegou acompanhado de dois amigos (Bruno e Rodrigo), a menina, com suas primas Isadora e Camila. Um tropeço atrapalhado na calçada fez Saulo cair aos pés de Mabel, em frente ao vendedor de balões; a troca de olhares fez seus jovens corações acelerarem, naquele instante fogos de artifício enfeitavam o céu; o garoto levantou-se para se desculpar, tentou balbuciar alguma coisa, mas a voz lhe faltou. Sem graça - com as bochechas vermelhas - ela apenas perguntou: “Você está bem?”.

          O Cupido havia atuado com êxito; para sua alegria, lançou uma flecha que atravessou os corações de Saulo e Mabel. Uma grande paixão nasceu entre eles, um amor - de forma inesperada e inexplicável - tomou conta de suas almas, entrelaçando-as para a eternidade. Eram conhecidos de vista, os pais da menina tinham uma loja de roupas e calçados próximo à mercearia, mas nunca haviam se falado, nunca haviam se notado; não imaginavam o que o destino havia traçado para eles, que o amor nasceria em meio a um tombo no parque. Dias depois trocavam mensagens, estavam namorando e loucamente apaixonados.

          Entre doces beijos e ternos abraços na porta da casa de Mabel, sob os olhares eventuais do ciumento pai, bem como do único, e mais velho, irmão da garota, trocavam juras de amor e promessas de fidelidade para toda a vida. Olhavam fixamente o lindo céu - iluminado pela lua e estrelas -, diziam que quando morressem formariam uma constelação, sonhavam em viajar, em ter muitos filhos, montar uma floricultura e ser felizes para sempre. Viram uma estrela cair e desejaram, em sintonia, que seus sonhos se tornassem reais. Cinco anos depois, com uma bela e grande festa na cidade, celebraram a união de um puro e verdadeiro amor; aguardaram ansiosamente - como se fosse o último minuto de suas vidas - o padre dizer: “Eu os declaro marido e mulher”.

Verão


          A lua-de-mel do casal, passada numa paradisíaca praia do litoral do estado, foi o momento mais esperado de suas vidas. O presente dos padrinhos do noivo não poderia ser melhor, aproveitariam até o último minuto para namorar e se amar. Nunca tinham sentido o corpo um do outro; dormirem juntos antes do casamento era moralmente impensável naquela cidade, matariam de desgosto os pais da garota se isso acontecesse. A primeira vez do casal foi tensa, mas tornou-se mágica, inesquecível, um sonho real. Saulo já havia perdido a virgindade com uma prostituta paga por seu tio há alguns anos, mas ainda era inexperiente na arte do amor. Mabel era intocada, pura e inocente; de fato virgem. Os dois se amaram sem jeito – tudo aquilo era novo - mas sentiram a paixão tocar suas peles, acelerar seus corações, estremecer seus corpos, revirar seus olhos e gerar sussurros de prazer. Consumaram o casamento, a partir daquele momento seriam um só corpo, até que a morte os separasse; formariam caras-metades, completariam um ao outro. Gostaram de se amar e experimentaram peripécias por sete dias ininterruptos.

          Os raios do sol, as ondas do mar, os coqueiros, a branca e fina areia da praia, os filhotes de siri saindo dos seus esconderijos, o vento, o cheiro de maresia e as jangadas no horizonte montavam o cenário daquela estação que se prolongaria por muitos anos da vida de Mabel e Saulo; o amor e a paixão os acompanhariam. Nove meses depois da primeira noite de amor - para a desconfiança das línguas ferinas da cidade e a consolidação do amor - nasceria o primogênito do casal: Gabriel.

          Quando Gabriel nasceu, Saulo já havia se formado em administração de empresas, e Mabel interrompera a faculdade de biologia para cuidar do filho recém nascido. O jovem casal estava, agora, com 24 e 21 anos, respectivamente; moravam numa pequena, mas confortável casa, doada pelos pais da moça. Com o dinheiro junto em mais de dez anos de trabalho - e a generosa ajuda de seu pai - Saulo arrendou um pedaço de terra para plantar flores, plantas ornamentais e montara uma floricultura ao lado da mercearia. Em pouco tempo, com sua determinação, dedicação e esforço habitual, bem como as técnicas aprendidas na faculdade, ampliara o negócio, faria a diferença nessa cidade dominada pelo comércio das flores. Em dois anos já estava com 3 funcionários; neste período, Mabel concluíra a faculdade e viria trabalhar com ele, exercitando a função de botânica na plantação do casal, dando um toque de feminilidade à loja, e aumentando a clientela com a nova estética do lugar.

          Em pouco mais de 5 anos de casados, o casal havia progredido: reformaram a casa, compraram um novo carro (trocaram a pampa 1990 que Saulo comprara para carregar suas flores e plantas), compraram o pedaço de terra arrendado e abriram uma filial da loja na cidade vizinha. Viviam felizes, com uma linda e amorosa família. Mabel esperava seu segundo filho, na verdade, uma linda e saudável menina abriria seus olhos para o mundo e seria batizada de Amanda.

          Ainda jovens, Saulo e Mabel aproveitaram bastante a infância dos filhos. Eram pais presentes, acompanhavam as crias na escola, nas festinhas de amigos, ajudavam nas tarefas de casa, os levavam a cinemas, a parques, brincavam e sorriam com eles, os presenteavam com bons brinquedos, os corrigiam quando necessário e os ensinavam ser humildes, humanos e solidários com seus amiguinhos. Deixaram de legado aos filhos a oração em agradecimento a Deus, todos os dias, por terem saúde, alimentos, um lar e uma família, pois muitos não tinham a mesma sorte. O engatinhar das crianças, as primeiras palavras, suas festinhas de aniversário, o primeiro dia na escola, a troca de dentes, as gracinhas, nada fugiria das lentes fotográficas dos pais-corujas. O amor existente entre o casal foi transmitido e refletido para o seio familiar, a confiança, o respeito e admiração recíprocas serviram de alicerce na construção de uma bela família e de um próspero negócio. Os raios de sol do verão invadiram diariamente aquela casa e trouxeram calor às suas vidas. Passaram-se os anos, as crianças cresceram e se formaram (Gabriel em Direito e Amanda em Medicina); mudou a estação, o amor entre Paulo e Mabel permaneceu inviolável.

Outono


          Os galhos das árvores estavam secos, suas folhas caíram com a chegada do outono, preparavam-se para a mudança, para o nascimento de novas folhas, flores e frutos. Um vento suave invadia a porta e entrava pelas janelas da casa, o sol havia se acalmado, mas ainda emitia raios que enchiam de calor - e afastavam o mofo deixado pelo tempo - do interior daquela residência.

          Saulo completara 53 anos, Mabel estava com 50; na varanda da casa, em suas cadeiras de balanço, após a novela das 7, enquanto esperavam um casal de amigos para jogar bilhar, cruzaram olhares e constataram que o lar estava vazio, incompleto. Os filhos crescerem, formaram-se, casaram-se e saíram de casa. Há tempos não chegavam do trabalho e ouviam o barulho rotineiro das brigas entre os irmãos, do som ligado - no volume máximo – vindo do quarto de Gabriel, de Amanda ao telefone marcando encontro com as amigas para paquerar. Os meninos partiram para estudar e fizeram suas vidas na capital. Seus pais sentiam saudades, mas a alegria do dever cumprido enchia seus peitos de orgulho. As boas lembranças da pequena família em número, mas grande em sentimentos ficaram em suas memórias. Agora, Mabel e Saulo aguardavam ansiosamente a chegada dos netinhos, os encheriam de mimos e paparicos.

          Compraram um cachorrinho buldogue francês, de cor tigrada, o batizaram de José Nino. O brincalhão e engraçado animal, com suas orelhas em pé, olhos grandes, boca larga, e espreguiçadas após o cochilo, trouxe de volta a alegria para aquela casa. Não substituiria os filhos do casal, mas diminuiria o vazio deixado e conquistaria seu espaço no coração dos seus donos, que, involuntariamente, o tratariam como um filhinho caçula; o carinho que ele retribuía - e suas peripécias – gerava quase sempre um largo e gostoso sorriso para o rosto casal.

          Saulo e Mabel, agora maduros e vividos, sabiam que existia um tempo para tudo na vida, e o padre local não se cansava de repetir essa reflexão nas missas de domingo. Eram felizes porque reconheciam seu tempo, encaravam com naturalidade o envelhecimento, incentivavam os vôos dos filhos pelo mundo, visualizavam sua prosperidade, porém mantinham uma humildade presente em pouquíssimos lares abastados; criam em Deus. Há algum tempo, sonharam em constituir uma família, em ter filhos, viajar e montar uma floricultura; a estrela que caiu naquela noite do início do namoro se encarregou de concretizar seus desejos, e ainda os agraciou com muito amor.

          O fogo da paixão de outrora havia diminuído, mas o amor entre eles crescia proporcionalmente ao tempo compartilhado. Nunca desejaram outras pessoas, foram fiéis, cúmplices e companheiros, um ao outro, por toda a vida; esta raridade em tempos modernos os fazia mitos na cidade. Numa noite de outono, inspirados pelo romance Cidade dos Anjos - que acabaram de assistir na TV - se amaram como há muito tempo não se permitiam, recordaram dos tempos áureos da juventude, sentiram-se vivos e novamente apaixonados, a música Oceano de Djavam embalava a trilha sonora de sua noite. Passaram a dormir abraçados todas as noites, se preparavam para quando o inverno chegasse. Viram pela janela as primeiras gotas de chuva caírem naquele outono; imaginaram que as árvores ficariam lindas e frondosas novamente.

Inverno


          Pouco após sua aposentadoria, o inverno chegou à vida do casal; veio junto à velhice. Ainda conseguiram aproveitar o início dela viajando com os filhos, netos (carinhosamente bajulados) e amigos; montaram em sua casa um belo jardim com estufa; descansaram após anos de trabalho duro. Mas o passar da estação trouxe sofrimento e dores inimagináveis. O amor entre eles nunca foi abalado, e aumentava em meio às adversidades trazidas pelo tempo. Com 70 anos, Mabel viu um estranho invadir e acabar com sua vida. O assassino respondia pelo nome de Parkinson. Aos poucos, a doença degenerativa golpeava a idosa, destruía sua coordenação motora, seus reflexos, movimentos, sua memória. Um simples beber água tornou-se um tormento, as mãos tremidas não permitiam que um copo se acomodasse entre os dedos. Em pouco tempo, mal conseguiria comer e deglutir os alimentos. Saulo cuidava da esposa com a paciência de Jó, dedicado, atencioso e sempre amoroso; nunca a deixou perceber que sofria calado e impotente com aquele mal. Após 5 anos de massacre, o invasor deu seu golpe fatal e nocauteou a doce mulher com a morte. Numa tarde chuvosa de domingo, ao lado do marido, dos 2 filhos e 3 netos, deu um tímido sorriso, um forte suspiro e fechou seus olhos lânguidos para o mundo.

          Pela janela de vidro da casa, onde o corpo de Mabel estava sendo velado, avistava-se a forte chuva caindo do lado de fora, o cheiro do barro molhado invadia a casa. Os relâmpagos e trovões que rasgavam as nuvens no céu - e anunciavam um violento inverno - pareciam expressar o estado de espírito de Saulo. Sua esposa estava deitada no caixão com uma mortalha branca, coberta das flores que cultivara e vendera por toda a vida, rodeada pela família, amigos, velas e curiosos da cidade. A frieza causada pelo temporal não era nada comparada com a polar alma do idoso; os estragos causados pela chuva, noticiados na TV, não se comparavam com o desmoronamento de sua vida, com a separação após 60 anos de tanto amor.

          Saulo sentiu seu coração destroçado, tinha a impressão que a alma havia abandonado seu velho corpo, mas antes causara destruição. Parecia sozinho em meio a tanta gente naquela sala; o olhar vazio denunciava a imensa dor de sua perda. Nunca mais apreciaria o belo e expressivo sorriso de Mabel; nunca mais ouviria reclamações sobre sua desorganização, por não levantar o assento do sanitário, por deixar a TV ligada, por não limpar o xixi do cachorro; nunca mais sentaria em sua poltrona na sala para ler o jornal do dia e esperaria ela trazer um café quentinho, como antes da doença. Lembrara-se da formosura da juventude de Mabel, do cuidado dela com os filhos, de sua voz no caraoquê; recordou-se de sua delicadeza habitual com o crochê, com o podar das plantas e flores do jardim. Involuntariamente, a tristeza o dominou, seus olhos vivos de outrora perderam o brilho e encheram-se de lágrimas, seriam enterrados com sua amada. Enquanto alisava o gélido e maquiado rosto da esposa, dizia baixinho, como se quisesse conformar e confortar seu próprio espírito:

--- Durma minha querida, descanse em paz; vá e embeleze o céu, cultive amor entre os anjos. Lá do alto cuide de mim, dos nossos filhos e netos. Alegre a Deus com tua presença e prepare minha chegada, pois logo mais estaremos juntos e seremos felizes para sempre. Leve contigo o meu coração.


          Num ritual de despedida, Saulo colocou uma rosa vermelha e as duas alianças entre as mãos de Mabel, beijou longamente a testa da mulher, olhou para a chuva, baixou o rosto e saiu desolado para o recolhimento em seu solitário quarto; a angústia habitou seu peito. Não acompanharia o cortejo e o enterro, preferiu ficar com o cheiro, os objetos, as roupas e as lembranças dos felizes momentos compartilhados com o único e grande amor de sua vida. Com os lábios trêmulos, balbuciou: “Até breve, Mabel, minha bela”.

          O encontro prometido ao lado do caixão não demorou a acontecer. Dois anos após a morte de Mabel, a depressão - pela falta da companheira de toda a vida – bem como um aneurisma cerebral, se encarregaram de debilitar Saulo e levá-lo ao encontro de sua amada no assento etéreo de Deus e dos anjos.

          A cidade de Sonho Real assistiu ao fim do belo romance, porém nunca mais presenciou um amor tão lindo quanto aquele, um amor que sobreviveu às quatro estações da vida: nasceu na primavera da juventude, percorreu duros caminhos no verão da fase adulta, se estabilizou no outono da maturidade e foi separado no inverno da velhice. O movimento de translação do sol se completou em mais de 60 anos, criando as quatro estações do conto de amor de Saulo e Mabel. Aquele amor frutífero foi agraciado pelo tempo, abençoado pelo Pai e protegido pelos anjos por toda a eternidade... E eles foram testemunhas do transcendental e aguardado reencontro.

Fim!



(Imagem: Internet)

 
Robson Alves Costa
Enviado por Robson Alves Costa em 24/04/2013
Reeditado em 10/05/2013
Código do texto: T4257051
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