A PAIXÃO SEGUNDO KURT COBAIN

Aquela chuvinha fina que começara ontem a noite persistia agora pela manhã, e por isto ele suspendera assim o capuz do casaco preto e vinha pelo meio fio, com as botas iradas, pretas, molhando-as nas pontas com a agua acumulada da chuva, que embora fina, era continua e alagava pontos nas calçadas onde corria o asfalto imperfeito. James levou as duas mãos aos bolsos do casaco. Estava mesmo frio. A galera ficara por lá. Bebeu pouco, passou por baixo da roleta, disse ao cobrador que não tinha dinheiro para passagem, argumentou que tinha sido assaltado, mas nada, passara despercebido, nem provocando muito com seu piercing no lábio inferior, nem inchara, só ficara doendo um pouquinho no começo. A bailarina negra, suspirou, mas estava tão frio, tão frio, falou dela para Danilo, ele estava lá, chegado à lona, acabara a banda phoda que levava um cover maneiro do Iron Maiden, parece que tinha Los Hermanos ao vivo, mas este cara estranho sou eu, sou eu, e chegou perto de Danilo, de jaqueta preta, mãos nos bolsos da calça jeans, ele conversava com Vinicius e outros, falavam, falavam, e tinha muitas vírgulas que era assim phoda, phoda... e chegou, participou da conversa, um que estava ao meio dos amigos de Danilo o ofereceu cerveja, ele aceitou, Danilo tocou o braço deste, Ugor, qual é o pirralho é menor de idade, e James fez um muxoxo, observou o Ugor, assim barbudo, cabelos arruivados e longos, totalmente bruto. Por que ninguém tinha aquela perfeição de Danilo, perguntou-se chutando uma pedrinha e levantando agua com ela, que espargiu em seu rosto também, mas pouco estava se importando. Mas como chegou a Danilo com o assunto da bailarina negra? Agora não se lembrava, estava passando a certa tontura que trouxe os goles de cerveja que o tal Ugor o dera, assim duas ou três latinhas, foi o bastante, não bebia além disso, e causava horror quando passava com seu visual entre punk-gotico-dark-metal, mas era de chegar em casa, trancar-se em seu quarto, dormir, dormir, acordar já para o almoço, olhar desconfiado e assustado para o padrasto, mas a mãe estava em casa, podia ficar tranquilo, comendo miojo, bebendo refrigerante, mas queria comer uma barrinha de chocolate, e foi se deitar novamente, a mãe não tinha ouvido ele perguntando onde estava o chocolate em barra, tinha visto outro dia aqui no armário.

_Oque Germano – perguntou evasiva, confortada no sofá, assistindo televisão Laila, quando o marido aproximou-se, falando engrelado, assim se coçando entre a virilha.

_Você não ouviu o James perguntando pelo chocolate, hem, levamos para o quarto ontem. Vou ao quarto dele levar tá – foi de dizer.

_Ah, Gê você mima demais este menino – protestou a mulher com controle remoto na mão – leva vai, tou querendo descansar assistir Faustão, hoje tem a dança dos famosos com aquela do Big Brother que venceu – e deitou-se no sofá, puxando uma manta sobre as pernas.

A porta do quarto do rapazinho estava aberta, bastou ele girar a maçaneta, o homem forte meio que gordo, respirou tenso vendo o rapazinho deitado de bruços, mesmo que com camisa, mas de short exibia as pernas um pouco magricelas de fora. A revista que estivera lendo estava jogada aberta ao chão quase junto ao braço dele que pendia para fora da cama. Germano aproximou-se, ajoelhou-se ao chão, ao lado da cama, alisou as pernas do garoto, e este despertou um pouco assustado, logo recuando, mas o homem sentou-se na cama, aproximou-se, mostrou-lhe a barra de chocolate, Hem, eu escutei você perguntando, não me esqueci de você, meu menininho bonitinho. James abaixou os olhos, sentiu a mão peluda e áspera do homem em seu rosto, dizendo em tom sussurrante e rouco, Não fique assim, assustadinho, meu menino, tá tão bonitinho com este piercing, hem, e alisava o queixo dele, as orelhas, James ia sentindo o rosto em brasa, o homem inclinou-se, colocou a barra de chocolate aos pés dele, abaixou-se, beijou os pés de James, Que pezinhos lindos, meu garotinho, e subia os lábios pelas coxas, James ficava aturdido, confuso, com aquela sensualidade ensebada.

_Minha mãe está ai, por favor... – gemeu, mas a mão do homem se insinuava pela barra do short, numa caricia pegajosa que acuava o jovem, inclinando-se para beijar-lhe as orelhas, dizendo, Ela está distraída lá com o programa dela, e já se deitava por cima do garoto, procurando os lábios dele, arfante, excitado, as mãos se insinuando pelo corpo do adolescente, então a porta rangeu se abrindo.

James encolheu-se na cama, os joelhos juntos, o rosto afogado ali, chorando, ouvindo os gritos da mãe expulsando Germano da sua casa, e ele pedindo, Sem escândalo, Laila, por favor, eu vou numa boa, mas por favor, não faça escândalo.

_Com meu próprio filho, seu filho da puta – esbravejou Laila, descabelada, jogando uma mala aberta com as roupas dele porta afora, e o cachorro da casa ao lado começou a latir, e Germano saiu desembestado debaixo da garoa, levando apenas a carteira no bolso, o celular e a roupa do corpo.

Laila bateu a porta, encostou-se sobre ela, desabando no chão, em prantos, amarfanhando o vestido em seu corpo, desabando sobre o chão, dando murros, gritando desesperada, enquanto James, encolhido em seu quarto, em sua cama, chorava baixinho, os lábios tremendo, não, não podia acreditar que a mãe descobrira tudo, ele sofreria represálias, o que a mãe pensaria de si, um homem já com quase quinze anos. Levantou os olhos assustados dos joelhos, mas encolheu-se mais vendo a mãe no umbral da porta, assim descabelada, o rosto desfigurado e transtornado pelo pranto, a roupa amarfanhada.

_Como pode ter coragem James – disse Laila num tom opresso, arfando – ele era meu homem, tem idade para ser seu pai.

James balbuciou ininteligivelmente, encolheu-se ainda mais de cócoras na cama, mas viu a mãe crescendo furiosa para cima dele, sacudindo-o pelos ombros, gritando, Como pode ter coragem, por que, por que, ele era meu, meu. Chorou confuso sem saber, sem conseguir articular qualquer palavra, transtornado. Ela saiu do quarto, batendo a porta, gritando, Eu te odeio por isso James, te odeio, vou te odiar para sempre por isso. Repinicou como dobre de sino em sua mente, deitou-se de bruços, o rosto mergulhado no travesseiro, sacudiu as espaduas, chorou convulsivamente até que adormecesse, e dormiu sem sonhos, e quando despertou o quarto estava escuro, levantou-se assim meio trôpego, sentindo-se em ressaca, então acendendo a luz, chegando junto a porta distinguiu o som do choro da mãe, mas junto a ela havia uma voz consoladora.

_James, não saia sem seu café – gritou da cozinha quando ele pretendia sair sorrateiro, com a mochila nos ombros, para a escola.

_Estou sem fome, mãe – disse sem se voltar, e prosseguiu andando, fechando a porta, levando sua chave no bolso junto a correntinha sempre presa na cintura. O céu se abria em estio, as lojas se abriam timidamente, percebeu quando chegava próximo á escola, e lá estava a galera toda no portão esperando o toque do sinal, na algaravia de risos e vozes, mas enfiou-se tímido ao meio de todos, procurando um canto junto a entrada, com fones do seu ipod nos ouvidos, esquecido, de que, perguntava-se, mas sabia bem, a mãe ia odiar ele para sempre , mas quando ele voltasse da escola ela já teria ido para o trabalho, não era dia de ela ir pela noite, e ele jogaria novamente Soldiers of Fortune, ou The Walking Dead, e pronto, estaria esquecido, absorto em seus games. Até que a escola era bem vinda hoje. Muito bem vinda. Seu melhor amigo era do sétimo ano, estava repetindo há dois anos, era para estar junto com ele. Estavam amigos assim por acaso não tão acaso, ali na cantina a hora da merenda, reparou James que no pulsinho fino daquele loirinho magricela, que parecia ter mais cabelo que corpo, tinha uma munhequeira preta com o nome da banda Slipknot, e então puxou assunto, Pow, gosto para cara’io dessa banda, véi, Pode crer, respondeu o outro o olhando, sem deixar de mastigar o arroz com carne moída do prato de plástico. Então criaram laços de amizade. Tenho ódio desta escola, dizia James, Pode crer, respondia o loirinho, calça jeans rasgada, rota, tênis velhos, logo avisou, Sou grunge, sabia, Não, como é ser grunge, quis saber James, ambos encostados numa parede olhando o movimento do recreio no pátio, uns jogando bola, outros correndo à toa, meninas rindo, mexendo com os garotos mais exibidos, assim como Dioniso, vaidoso com seus cabelos lisos e longos, outros negros, morenos, em roupa de educação física.

_Já ouviu Nirvana – perguntou o loirinho, que cujo nome já sabia James, era Enzo.

_Já ouvi falar, é antigão né, pode crer – disse, e acrescentou que gostava de Slipknot, gostou da munhequeira dele, Enzo olhou-a, disse que tinha uma blusa também dos mascarados, e James falou de Korn, Marylin Manson.

_Ah, sim, ah sim, mas nada se compara a Nirvana. Kurt Cobain. Quando eu tiver vinte sete anos vou me matar – disse num tom romântico e sorrindo.

_Legal – admirou-se James – mas você ainda tem quinze né, falta muito.

_Pode crer – disse admirando sua munhequeira de novo – enquanto isto vou ouvindo muito Nirvana, Alice in Chains – tocou James no ombro – neste seu Mp3 tem o que?

James olhou o objeto em sua mão, titubeou, e disse que tinha de tudo um pouco, mas não tinha Nirvana.

_Não quer ir lá em casa, eu coloco musica do Nirvana ai do meu PC – disse Enzo.

E novamente foi a casa de Enzo aquele dia ao saírem da escola. Era uma casa numa rua estreita, de parede geminada com outra que ele já dissera ser sua tia que morava ali. Enzo vivia com a mãe, sabia onde o pai estava, o irmão mais velho vivia com o pai, e James confessara que nunca vira seu pai.

_Minha mãe nunca me falou dele – confessou sem inibição, James.

_ Pode crer – respondeu apenas num tom evasivo Enzo, já voltando sua concentração para o computador, os arquivos de musica que baixava pela internet. Tinha a discografia toda do Suicidal Tendencies, estudou pelo Wikipédia um pouco da historia da banda, os caras são phodas, exclamou sem alterar a voz, os cabelos loiros e desgrenhados cobrindo os olhos, mantinha-os assim. James sentia um cheiro de manteiga rançosa emanando de Enzo. Acreditava que ele não tomava banho todos os dias. Em seu quarto, as paredes eram repletas de pôsteres do Nirvana, e se destacava mais Kurt Cobain. Na porta do guarda roupa pequeno tinha um pôster colado com o rosto de Cobain assim com os olhos arregalados num sorriso de louco, ficava de frente para cama de Enzo, com revistas jogadas por cima, papeis rabiscados, restos de biscoitos, até mesmo casca de banana daquela vez; roupas amarfanhadas pelo chão, mais dois pares de tênis imundos e rotos, a janela sem cortina, ao invés tinha uma espécie de banner preto com os três integrantes do Nirvana fotografado, Kurt Cobain ao centro com o cabelo vermelho, os olhos de um azul muito arregalados, impressionados, como que dizendo “Sei as coisas feias que tu faz sozinho mané”.

James considerava sobre a vida de Enzo. Os dois tinham pontos em comum, mas Enzo tinha o pai, embora raramente o visse, a mãe não tinha nem tivera outro homem, não que ele contasse. A mãe trabalhava fora, e Enzo ficava sozinho o que a James antes ficava com o padrasto, agora vinha a avó, e ele passara a comer macarrão com carne moída ao invés de Miojo, mas na maioria das vezes comia na escola, o que consistia num cardápio similar ao que tinha agora. Enzo curtia mais Grunge que Scream, e tinha desejo infundamentado de suicídio, enquanto James nem pensava em suicídio, chegara mesmo a acreditar que nunca morreria. Os dois tinham aquela amizade, sem grandes revelações, trocaram MSN, criaram laços também pela rede social, mas isto não implicava que vinham a se conhecer profundamente, embora James começasse a considerar o Enzo que se apresentava no perfil do Facebook, o que ele se declarava, as coisas que postava, os links que compartilhava e curtia. E aos poucos, poder-se-ia dizer que Enzo se parecia cada vez mais com Kurt Cobain.

_Na verdade eu quase não saio muito de casa – declarou num ímpeto de revelação, deitando-se na sua cama de lençol amarfanhado, ao amigo James que passava os novos arquivos em mp3 para seu ipod, sentado em frente ao computador – sabe, curto ficar aqui, ouvindo minha musica, olhando meus pôsteres, jogando meus games. Pode crer. Mas às vezes saio, gosto de ficar lá na praça, comprar uma garrafa de vinho – cruzou as pernas, as meias encardidas nos pés balançando – dispara o som ai do Nirvana, já que tu esta ai perto do PC.

James considerou a hipótese do convite de Enzo, hem, queria conhecer o Maicon e o Brian, os dois grunges amigos dele do final da rua, hem, todos tinham um pacto com Cobain, matar-se-iam aos vinte sete anos. Brian estava com dezoito anos, estava o mais perto, acontece que ele vivia fugindo de casa, toda vez que a coisa complica cara, arregalou os olhos, afastando um pouco o emaranhado loiro dos cabelos ensebados, é que sabe, foi acrescentando, andando de gatinhas, ao estilo do som do Nirvana que rolava, o pai dele encrenca, é foda, foda, mano, pow, a gente não é aceito sabe, ser assim, grunge, nem os outros roqueiros gosta da gente, sabe, você ver, postou-se de cócoras, os cabelos resvalaram pelos olhos, todos – mas não especificou - dizem para minha mãe que sou drogado, mas cara eu nunca usei drogas, pois nem sei onde comprar, compreende, prefiro ficar aqui na minha, o meu ‘barato’ é o Nirvana, o Alice in Chains, as bandas punks também, tu já ouviu Bush, coloca ai, levantou o dedinho entre luva preta furada, ai, tá do lado do Nevermind que tá tocando, isto, então, sente, que viagem, e vergou para trás, caiu deitado, braços jogados para cada lado, a blusa listrada encardida virada do avesso, as pernas se contorcendo, nos joelhos a calça rasgada, nas coxas puídas, as meias encardidas nos pés. James virou-se, reprimindo o riso, a olhar para tela fixa do windons media player.

Chegando a sua casa, a avó estava lá, ora assistindo televisão ora mexendo alguma coisa a cozinha, e sorriu quando o viu, meiga, aflita nos olhos assustados, impressionados. Ela também deve pensar que sou “desses”, mesmo o chamando para lanchar, tinha feito um bolo hem, comeu bem na escola, andou por onde, mas James trancou-se em seu quarto, sabendo que ela sabia do Germano, como explicar, mas explicar o que, a mãe não o olhava nos olhos, fungando como se tentasse reprimir o choro,” ele era meu homem” dissera ela aos berros, ligando o som do ipod, deitado, barriga para cima, depois de despir a camisa da escola, o peito liso, ah, tentou pensar na bailarina negra no corpete rosado de saiote diáfano, mas, mas ouvindo Nirvana, pensou em Danilo, a franja nos olhos, cabelos loiros ensebados, não isto era Enzo, Danilo tinha os cabelos perfumados, e a franja deslizava elegantemente, sacudiu os ombros, mas que parecia revolto seus pensamentos, rolando na cama, vontade doida de rir de repente, aqueles cabelos bagunçados de Enzo, mas aqueles olhos azuis estrangulados de espanto era Cobain, estendendo o corpo a se entortar pelo chão, era Enzo, assim como aquela musica entrando em seus ouvidos dá vontade.

Não se entendia assim como aquela musica boa de ouvir assim mesmo, assim como a Gramática e Matemática nas aulas vazias e a Educação Física que se esquivava, tanto como não sabia nem entendia o que se passava dentro de si neste momento e antes, que tanto Danilo, tanto a bailarina, mesmo o namorado da mãe causava em si a mesma sensação frenética na pele e nos nervos que a musica do Linkin Park e esta agora do Nirvana.

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Rodney Aragão