A vida em tempo de amor
 
Ele atingiu-a em cheio com o olhar. Insistente e penetrante olhar. Ela sentiu-se incomodada, olhou também.
 
Sempre no mesmo ambiente e nos mesmos dias da semana. Horário certo. Na companhia do marido uma vez. Só uma.
 
Inevitável desviar os olhos. Ela, curiosa ou lisonjeada, talvez não devesse, mas permitia olhos nos olhos vez ou outra. Depois baixava, ou olhava para outro lado, procurando evitar encorajá-lo a um pensamento mau ou uma investida até. Ele a media dos pés à cabeça e imaginava quão bela ela teria sido. Alta, magrinha, nada de barriga, apesar da idade de tê-la, ainda que fosse uma hipótese. Uma hipótese de barriguinha bem possível que tivesse, olhando melhor.
 
Em cada ruga um passeio. Ele fantasiava a beleza dela na flor da idade. Quão bela teria sido! Alta o bastante, porém sem excesso. Imaginava como fora lindo o seu corpo. Enxergava-a nua, inteiramente nua. Bela e nua.
 
Passou a desejá-la. Surpreso. Querendo uma mulher velha? No bar debochariam dele, certamente. Confuso a cada dia. Não estava convicto se de fato a queria, ou se desejava, na realidade, o passado da sombra do presente. A mulher bonita e sedutora com que ele vestia aquele corpo em cada olhar. Quem sabe a desejasse assim mesmo, com as rugas, a bunda pouco perceptível, os peitos meio caídos. Teria sido loura? Morena ou castanha? Agora nem uma coisa nem outra. Cabelos cor de caixinha, daquelas que as mulheres compram e vão trocando até nem elas mesmas lembrarem-se da tonalidade original. A julgar pelo azulado dos olhos e pelo tom das sobrancelhas, castanha, arriscava. Nem muito clara nem tão escura.
 
Um dia, mais perto, sentiu fino perfume. Viajou com ela décadas atrás e dançaram no melhor salão da cidade. Perdido no devaneio fora de hora, quando deu por si teve a impressão de que ela acordava do mesmo transe.
 
- Gosta de dançar?
 
Ela parou para refazer-se do susto, pensando se devia responder ou não. O desconhecido que a devorava com os olhos havia meses, falava. Ousado. Topetudo. Pergunta de chofre. Sem um oi nem boa-tarde. Uma simples apresentação sequer!
 
- Já gostei – ela surpreendeu-se ao responder, pois preferia ter dito alguma coisa que afastasse o insolente de vez.
 
- Por que não mais?
 
- Marido não aprecia. E já não existem os bailes de antigamente – ela respondeu, achando que estava indo longe demais, dando trela a um estranho.
 
Foi bom colocar o marido no meio, concluiu. Assim o intruso perceberia de imediato que estava dialogando com uma senhora de respeito e a conversa não avançaria.
 
- Pena – disse ele, afastando-se.
 
Funcionou, ela comemora. Não voltará a me importunar.
 
Achando que havia se livrado dele definitivamente, continuou empurrando e enchendo o carrinho entre as gôndolas do hipermercado.
 
Passou pelo caixa e seguiu para a esteira rolante. Um arrepio lhe percorreu a espinha quando avistou o homem lá embaixo, ao pé da esteira, com as mãos para trás.
 
- Para a moça linda que dançava nos bailes de outrora – ele atacou, estendendo a mão direita com um buquezinho de três botões de rosas vermelhas, envolto e adornado em rígido plástico transparente.
 
Ela sentiu os joelhos bambos, mas encontrou forças usando o carrinho como apoio. Sem saber o que fazer, aceitou o buquê, jogou-o com raiva sobre as compras e, desviando-se dele, apertou o passo rumo ao estacionamento.
 
Ele permaneceu alguns segundos plantado no mesmo lugar, estático. Decidiu não segui-la e vazou pelo outro lado.
 
Naquela semana não se voltaram a ver. Quiçá por obra do acaso, ou por um estar fugindo do outro inconscientemente. Ou ainda por medo ou pudor próprio da mulher.
 
Contudo, na semana seguinte deram-se de frente.
 
- Oi – ele sorriu.
 
- Obrigada pelas flores. Fiquei muito surpresa, não consegui agradecer naquele dia. Desculpe.
 
- Pouco do muito que posso lhe dar.
 
Amanheceu o dia combinado. Ele pegou-se nervoso, apreensivo com o que estava acontecendo. Apaixonado por uma idosa igual a ele! Gastou a manhã arrumando papéis e livros no pequeno escritório do sobrado, depois da caminhada diária. Todo momento pensava se ela realmente iria ou desistiria. Na véspera, havia passado na farmácia e comprado comprimido azul para se garantir. Nessa altura da vida e principalmente pelo seu estado de ansiedade, nunca experimentado antes, melhor se prevenir. Não devia fazer feio, ela poderia estar esperando demais. Tinha de ser melhor do que o marido, para ela validar o encontro e não se arrepender. Prometeu a si mesmo não cair no velho e desgastado chavão de afirmar e perguntar, depois do ato: foi bom pra mim, foi bom pra você também?
 
Ela confessou que jamais estivera num motel. Tremia um pouco. Ele entrou na suíte mais cara com o pinto endurecendo. Efeito do comprimido, pensou.
 
Despiu-a sem notar a flacidez da pele e dos seios, e do interior dos braços. Beijou cada ruga como se beijasse um naco da beleza escondida. Deixou-a úmida e arfante, pronta para a viagem. Admirou-se com a gruta ainda firme e gozou. Sem tirar, conseguiu a segunda como um adolescente. Gozaram e depois riram alto como crianças felizes voltando ao parque de diversões após longo recesso. Nenhum dos dois acreditando como ainda podia gozar tão intensamente.
 
- Gosta de praia? – ele perguntou nu, deitado de costas debaixo do sobre lençol delicadamente floreado; ela, nua, aninhada no seu peito de grisalhos pelos ralos.
 
- Adoro.
 
- Tenho apartamento. Vamos mudar pra lá. Minha mala está no carro.
 
- Agora?
 
- Não, daqui a pouco. Logo que acabarmos de afundar este colchão com a força das nossas treze décadas somadas. Metade minha, metade sua.
 
Riram e fundiram-se de corpo e alma para mais uma viagem de amor e libido renovada, como se fizessem aquilo juntos desde que nasceram ou em outras vidas que viveram. Celebraram a vitória gratificante do fogo que brotava das cinzas e que ela, até então, achava impossível recuperar.
 
Ele dirigiu para a casa dela. Estacionou rente ao meio-fio e pediu não demora! Ela entrou depressa. Num instante surgiu na porta com uma mala enorme. Ele desceu e foi encontrá-la no portão. Tomou-lhe a bagagem das mãos e acomodou no porta-malas ao lado da sua.
 
Ao reentrar no carro, percebeu na varanda da casa um homem boquiaberto. O mesmo que tinha visto ao lado dela uma única vez no hipermercado. Ela, antes de entrar, acenou para o marido um adeus gritando se cuide, na geladeira ainda tem leite e frutas.
 
Ele deu a partida e o veículo arrancou preguiçosamente, como se tentasse dizer não tenham pressa, uma nova vida está só começando. É tempo de amor.

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N. do A. 1 – Na ilustração, A dança em Bougival de Pierre-Auguste Renoir (França, 1841-1919).

N. do A. 2 – Este texto faz fazer parte do livro Botões de Hibisco Branco e Outras Histórias publicado pela Amazon:

http://www.amazon.com.br/Bot%C3%B5es-Hibisco-Branco-Outras-Hist%C3%B3rias-ebook/dp/B00OBFQJLY/ref=sr_1_1?s=books&ie=UTF8&qid=1412864449&sr=1-1&keywords=Bot%C3%B5es+de+hibisco+branco
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 31/05/2013
Reeditado em 21/08/2021
Código do texto: T4318158
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