A LÂMPADA APAGADA

Meus olhos boiavam como que sozinhos, livres do rosto macerado que eu tinha, numa alegria que se buscava dentro de uma noite já pelo meio. As ruas estavam acesas como os postes amarelos em cada canto, e um boteco ali e outro acolá, com gente sentada em mesas do lado de dentro e de fora, falando tudo ao mesmo tempo, muitas garrafas de cervejas chegando, tipos garçons atropelando um ao outro na confusão de atender imediato a tantos pedidos. Os rádios rouquenhos tentavam musica, e as pessoas faziam o possível para continuarem falando.Algumas lojas ainda estavam abertas, oferecendo de tudo um pouco, com mosquitos errando por suas lâmpadas fluorescentes.Dali se ouvia vozes baixinhas, veladas de um segredo confortador, e calavam-se logo um freguês ousava entrar.

Tentei uma aproximação, mas algo me repelia àquele bazar, o cheiro de plástico é que me entontecia, mas me veio um desejo como de febre que ardia e entrei. Segurei forte a mochila que trazia a ombro direito, e olhei as bonecas de plástico sorrindo, sentadas nas prateleiras, sorrindo abobadas, com as peruquinhas coloridas.Cheiravam a chiclete.No fundo da loja, havia um balcão de madeira com vitrines cheias de carretéis e bugigangas para costura, e um homem magro e de meia idade, com ar sério, atrás deste fingia ler um jornal que folheava e desfolhava assim de trás para frente e vice versa.Talvez esperasse que eu manifestasse alguma reação, mas estava eu perplexo diante das prateleiras com carrinhos.Modelos de carrinhos que sempre sonhara ter na infância: E kombis, ônibus, caminhões, carretas...Todo este luxo de uma infância agora bem mais módica.E naquele tempo em que era uma alegria ter um destes fusquinhas todo de plástico azul ou verde, em que não se abriam as portas, nem se via nada por dentro.Nem mais existiam brinquedos assim.Graças a Deus.

Manuseei um carrinho de bombeiro, perplexo com tanto luxo, até mesmo havia a escadinha, os bonequinhos minúsculos e bem talhados. Que tempos bons não corriam agora.E eu não tinha mas por que gastar com essas coisas.Não sei porque também me senti triste, como se houvesse perdido uma batalha.Apertando forte a mochila contra meu corpo, pensei, oras, estamos aqui só mesmo para perder, fadados ao esquecimento ao afinal de contas.Repus no lugar o carrinho com todo cuidado, nem mesmo notei que entrou um rapaz de olhos atarantados, de um branco pedindo moreno em sua pele, coçando-se muito entre as pernas pelo short, as vezes pelas entradas da camiseta.Parecia transtornado.Encolhi-me num canto, disfarçando meu temor dentro do ambiente suspeitamente confortador, pensando ou levando a crer que todos me assemelhavam criaturas transtornadas, feras em potencial, esperando o momento certo de derramar seu ódio, o único alimento de vidas vazias.Mas corria-me em mim também o mesmo vazio.Um oco carcomido de cupim? Seria assim. Os sonhos que perturbavam-me a noite de sono, eram sempre desvarios e não sonhos.E aquele rapaz, com olhos aflitos, cabelos enroladinhos tão quase no casco, olhando para as bonequinhas plácidas parecia-me um destes meus desvarios noturnos.Como lutava a noite, era quase toda noite, o sono querendo me puxar para um abismo e com que força eu tentando resistir, não querendo penetrar naquele mundo devasso de insanidade que eram meus sonhos.Em praias que viravam valões, em cidades atacadas por relâmpagos, em casas sem tetos e paredes lindas, em gente estranha e hostil, às vezes numa condução que parecia não me levar a lugar nenhum, apenas andar, andar e voltar para o mesmo lugar.

Fascinava-me com o mesmo lutar com o sono o meu olhar para aquele rapaz, mas disfarcei a quase pegar uma Kombi na prateleira quando ele pareceu se virar para mim e sorrir. Ou seria um riso, mas ele não se dirigiu a mim, embora me fitasse, falou ao homem do balcão:

_ Quanto custa esta bonequinha cheirando a morango?

A sua voz pareceu lépida, mas tremida de um riso sarcástico. Ao preço que o homem deu ele praguejou um sonoro palavrão dentro de uma boa risada.

_ É de talhe de porcelana o rosto dela – justificou o homem por causa do preço, com uma voz paciente de quem já está acostumado com grosserias.

Então ele pareceu se interessar por uma de vestidinho amarelo e peruca bege, com rostinho sorridente e que parecia mesmo de plástico. O preço era mais módico, mas ainda não chegava, e mesmo dissera que sua filhinha...Sim, ele descobrira que tinha quase o valor, mas o homem ria, explicava que ele não era camelô, não fazia negocio assim em pechincha, pois sim, isto aqui não é feira meu amigo – e se me pareceu um tanto grosseiro.O rapaz parecia teimar, segurando a bonequinha como se segurasse a própria filhinha, com um sorriso já vacilante, e o que eu fazia ali era apenas vigiar, com medo que ele furtasse.Já podia ver o maior dos incidentes acontecendo.A noite sangrando dentro da orgia; de longe pude ouvir o runca-funça de um porco do mato...Seria?

Ofereci tremulo para completar, afinal meu Deus era uma ninharia. Ele me olhou com seus olhos atarantados, sorrindo ou rindo como se procurasse me reconhecer de algum outro lugar.Pois sim, nunca me vira antes, nunca? Te conheço de algum lugar? Parecia querer saber, embora não fizesse a pergunta, mas eram seus olhos dançando, seu coçar aflito entre as virilhas que pareciam querem ditar esta indagação. E aceitou a oferta com um menear de ombros e um mesmo riso bobo errando pelos lábios.

Não sei por que, mas andamos juntos assim para fora dali, e o cheiro de plástico ainda não me deixara de todo. Aquela atmosfera! A noite ardia, e ele olhou para dentro da bolsinha de papel em que se encontrava dentro a bonequinha como que se conferindo afinal, e já na calçada, antes de agradecer ele me disse:

_ Você tem os olhos mais tristes que eu já vi em toda minha vida.

Sorri talvez como ele tivesse sorrido, e disse afinal ele não era tão velho isto ainda me dava uma chance, talvez muita chance, ele parecia ter meus mesmos vinte e poucos anos. Ele me sorriu descontraído, e assim o acompanhei, apertando a mão que ele me estendera, e seu nome revelado como assim revelei o meu.Ficou um segundo pingado de silêncio entre nós, até que ele me chamou para tomar uma cerveja, mesmo apontou ali o boteco em que eu já tinha até passado, mas que sabia eu que ele não tinha dinheiro, que se eu não me importasse...É lógico, por que não, a vida era tão pouco e tão difícil.E tudo havia parecido ao imprevisto como um vendedor batendo a porta certa.

Sentamo-nos um de frente ao outro numa mesa do lado de fora, ficando eu assim numa posição de defesa, tensa, enquanto ele relaxava na cadeira, mesmo já servindo ambos os copos logo a cerveja chegara. Tudo me parecia exagero, como se eu tivesse aberto a cortina e pelo vidro da janela tinha visto um carro estacionado no meu portão.Brindamos, assim os copos num encostar de barriga, pela noite inquieta de sexta-feira.Sim errava um cheiro de bebida choca ali, e eu busquei as sarjetas com o olhar.Ele começou a me falar de sua filhinha, com três anos, e alisava a sacolinha de papel sobre a mesa com a bonequinha dentro, falou-me também de sua esposa, pois sim, um tom de amargura brotou de sua voz então como se pudesse assim faze-la aparecer ali em minha frente tal como ele tentava me dizer, assim, que já estava meio relaxada, sabe, destas mulheres que ficam deitadas o dia inteiro assistindo televisão, esperando tudo do marido.Ele não tinha dinheiro para nem comprar roupas para si mesmo, olhasse bem como estava vestido numa noite de sexta-feira, os chinelos ordinários, de um pé balançando com uma perna cruzada sobre a outra. E depois assim, de supetão me perguntou de mim. Sim, e você, fale-me de você.Fiquei assustado com a pergunta tão em cima, assim, afinal o que dizer de mim mesmo? Sorri então me lembrando, se ele mesmo dissera, afinal sou eu este rapaz com olhos mais tristes que você viu até agora. Ele riu, afinal não foi tanto, não pretendia me magoar, logo avisei que não, não me magoou nem um pouco, mas me confessou que assim que bateu os olhos em mim dentro daquele bazar...então, achou-me mesmo triste, talvez não tão triste ao ser o mais triste do mundo, mas...Calou-se como que me respeitando.E veio mais uma cerveja, ele parecia bem descontraído, ria mesmo olhando eu rir, afinal eu já estava bêbado um pouquinho, já na quarta cerveja que tomávamos, eu o escutava e divagava para outros horizontes, para horizontes nunca acontecidos ou se passados tão vagos que eram quase desapercebidos.O rumor de vozes crescia ao nosso redor, a musica alternava-se, e suspiros de alegria enchiam a noite vã.De vez em quando, passava um automóvel, alguns buzinavam para quem estava dentro do boteco.Disputava-se o banheiro do boteco, na pressa usava-se o terreno ao lado que era baldio.

E ele não parecia desgrudar um minuto da sacolinha de papel que continha a boneca, mantendo-a como um ferrenho tesouro, e os cascos d cerveja se ajuntavam a nossa mesa, e conversa engrolava para um sem fim de qualquer coisa, desperdiçando tudo, notando detalhes mais ínfimos ao nosso redor ou no que fora do nosso dia a dia nunca conhecidos um pelo outro, talvez nos esbarrando sem muita convicção até aquele dia.

Eu mesmo me perguntava: Será outra vez?

Sim, veio outra vez, acho que fora duas, três vezes. Corremos intensos, densos e sem compreensão, talvez eu com tanta piedade e ele quase sem nenhuma.Eu o amava a cada dia, a cada hora.O meu viver era resto perto do que ele me oferecia dos seus dias.Sim, a filhinha amara a bonequinha, conversamos num dia claro junto a ponte.Ele trabalhava consertando cabos elétricos, era fácil acha-lo sem querer.O valão corria abaixo da ponte, e ele me falou que a menina sim gostara muito da bonequinha, e bem quisera ter coragem de perguntar se eu um dia podia conhece-la, mas nunca achava o oportuno, sempre ainda indevido.Mesmo ficava sem graça.

Não sei como ele desapareceu ou será que fui eu que desapareci? Sei que fora como se eu tivesse embarcado num trem e ele ficado na estação ou vice-versa.Sei lá...e me pergunto não cadê? Mas sim por que ele nada me disse quando fiz a estranha pergunta:

_ Você me perdoa?

Ele apenas riu, chocando uma mão com a outra espaçadamente, nós dois assim no meio fio de uma rua pouco movimentada, e eu nem esperei resposta, agradecendo aquela luz crepuscular aconchegando tudo.

Cabo Frio, 29 de agosto de 2007.

Rodney Aragão