PAIXÃO NÃO TEM IDADE

O dia amanhecera lindo, convidando Laura para sua habitual caminhada. Conferindo as horas, ela viu que teria de se apressar, se quisesse caminhar e não faltar ao compromisso assumido com seu chefe. Sabia que necessitava do contato diário com a natureza, para ter a energia que correspondesse ao seu trabalho..

Absorvida pela beleza de seu local predileto, nem percebeu que vinha ao seu encontro, uma senhora já bem idosa, com dificuldade para se locomover, mas com um largo sorriso no rosto. O estaria aquela fazendo ali, aquela criatura sem uma companhia para ampará-la? Apressou seus passos e lhe deu a mão.

Antes que Laura pudesse expressar alguma palavra, a senhora antecipou-se e lhe falou: filha, não tenha medo, meu nome é Ester. Todos os dias, eu venho aqui para exercitar um pouco minhas pernas. Moro sozinha e minha casa fica aqui pertinho. Só tive um filho que reside em outro estado. Preferi ficar sozinha, porque não me dei bem com minha nora.”

D. Ester parecia ter uma imensa necessidade de ser ouvida. Falou que pedia sempre a Deus, para encontrar uma pessoa de bom coração, que tivesse a paciência de ouvir uma história, que ela não desejava levar para seu túmulo. Quando avistou Laura, teve a certeza de que Deus havia escutado suas preces e a convidou para ir até sua casa, mesmo porque tinha outras coisas para lhe mostrar. - Apesar de ficar com algum receio e ter um compromisso, Laura estendeu seu braço para apoiá-la e realizar seu antigo desejo.

A casa era pequenina, mas limpa e organizada. D. Ester, mesmo com as deficiências normais de seus oitenta e quatro anos, ainda era capaz de exercer as atividades domésticas. Sobre a pequena mesa da sala, legumes, verduras, queijo e ovos, já estavam preparados para seu almoço. - De olhos fixos no rosto de sua convidada, D. Ester falou que antes de sair para andar, sempre já deixava tudo pronto. Desde pequena, não gostava muito de comer carnes e depois que ficara só, abolira de vez esse hábito.

Após tomarem um chá de cidreira com biscoitos, a simpática senhora foi pegar uma sacola e colocou seu conteúdo sobre o pequeno sofá. Ali estavam duas taças, um corpete que já fora branco e uma calçinha rendada, da mesma cor, ambas amarelada pelo tempo. Carinhosamente, pediu para que Laura sentasse, avisando que sua história seria longa, até que pudesse explicar porque guardara aqueles objetos por tanto tempo.

Acomodada em sua antiga cadeira de balanço, começou sua história. Minha filha, já fui bonita e cheia de vida, assim como você. Perdi meu marido aos quarenta e sete anos. Passei a me dedicar somente ao meu filho, até que ele resolveu se casar. Trouxe sua esposa para minha casa e vivemos juntos por três anos. Mas ela implicava muito comigo e meu filho resolveu se mudar. Comprou uma casa ao lado da minha. Todos os dias, ao chegar do trabalho, ele vinha direto conversar comigo, até que sua esposa exigiu que ele parasse, porque eu não tinha nem chegado aos sessenta e não precisava de babá.

Fiquei muito triste e resolvi vender minha casa e comprar esta, para que ele pudesse ser feliz em seu casamento. No começo ele achou ruim, mas foi se acostumando. Um belo dia, veio me comunicar que havia sido transferido para um local distante e que eu devia ir com ele, para não ficar só. Ora minha filha, eu não podia aceitar. Brigamos durante dias, até que ele resolveu me deixar ficar por cá. Antes de viajar, conversou com meus vizinhos e lhes deu seu endereço. Queria ser comunicado de qualquer problema que eu tivesse.

Depois que ele foi embora, fiz muitos amigos, com os quais saía para me divertir. Já estava acostumada com minha liberdade e não ia mais abrir mão dela, por nada neste mundo. Dois anos mais tarde, conheci um senhor e me apaixonei perdidamente por ele. Seu nome era Airton e também morava só. Era separado e tinha três filhos - duas moças e um rapaz. Já tivera muitos casos, mas não deram certo, porque ele não queria se juntar com mais nenhuma mulher. Foi por isso que acertamos nossos passos, porque eu também não queria nenhum homem morando comigo.

Nosso romance foi a coisa mais linda e durou quase vinte anos. Como ainda tínhamos emprego, só nos encontrávamos nos finais de semana., no apartamento dele, ou nesta casa. Durante o dia, caminhávamos de mãos dadas pelo parque da cidade, fazíamos nosso almoço e à noite saíamos para jantar. Depois íamos dançar num clube até altas horas. Dormíamos juntinhos e no outro dia, ficava cada um em sua casa. Não havia ciúmes entre nós e por isso nunca havíamos brigado, até o dia em que ele me pediu para morar com ele. Não concordei e tivemos nosso primeiro desentendimento.

Durante um mês, ele ficou afastado. Um dia, quando eu estava saindo, para tentar afastar minha grande tristeza, dei de cara com ele. Tinha ido me procurar, para avisar que pedira sua aposentadoria e estava com passagem comprada para ir morar com seus irmãos, lá pras bandas do nordeste. Já que eu não queria morar com ele, havia decidido não ficar só, esperando a velhice chegar.

- Laura aproveitando um momento em que D. Ester baixara a cabeça, para que seus olhos cheios de lágrimas não pudessem ser vistos, perguntou por que ela não o impediu de viajar.

- Limpando os olhos com as mãos trêmulas, D. Ester respondeu que se fizesse isso, o amor deles não seria mais o mesmo. Vendo que Laura fizera um gesto de espanto, ela sorriu e contou que apesar de tudo, aceitara o convite dele para se despedirem em um motel. Seria uma despedida muito especial.

Foi a tarde mais bonita de minha vida, exclamou D. Ester, pronunciando essa frase com as mãos no coração. Era tanta sua emoção, que levantou e deu uma volta pela sala, para depois sentar-se mais próxima de sua ouvinte e continuar a contar os detalhes. Falou que o motel era lindo e que o Airton levara uma garrafa de vinho, que os dois beberam naquelas duas taças. Lembrou que havia um grande espelho e ela ficara a se olhar, vestida naquele corpete e calcinha. Suspirou ao recordar dos muitos carinhos que recebera e de como fora feliz!

Pediu um pouco de água para molhar sua garganta e prosseguiu com sua história. Disse que no outro dia, seu amor viajou e a deixou anos e anos esperando por suas notícias. Com os pensamentos no passado, tentando lembrar de todos os detalhes, a idosa senhora falou que, no dia em que completou seus setenta e sete anos, o Airton ligou para lhe dar os parabéns e saber como ela estava. Contaram de suas tristezas e ele lhe perguntou se gostaria de receber seu abraço pessoalmente. Que grande alegria ele me deu! Durante um mês, telefonava todos os dias, até poder viajar para me encontrar. Só fiquei triste, porque ele avisou que só poderia ficar por três dias.Tinha arranjado um emprego quebra-galho por lá.

Já demonstrando um certo cansaço, D. Ester comentou que os dois já haviam combinado tudo bem direitinho.Voltariam ao Motel em que haviam se despedido. Nada de encontro em sua casa, dizia ele! Aí minha filha, eu lavei este corpete e esta calcinha, até ficarem com cara de novos. Juntei com estas duas taças e esperei o dia de sua vinda. Como ele tinha que resolver alguns assuntos pendentes, que deixara sob a responsabilidade de seu melhor amigo, achou por bem ficar hospedado com esse amigo, mesmo para não corrermos o risco de matar nossas saudades aqui mesmo em casa. Combinamos nos encontrar no final do dia em que ele chegasse.

Assim foi feito. Ele veio todo bonito e perfumado, quando o sol já estava se pondo. Depois de muito me abraçar e beijar, pediu para sairmos logo. Entreguei a chave de meu carro para ele dirigir. Que grande susto tomei, ao vê-lo falar que vendera seu carro e nunca mais havia dirigido. Perguntei-lhe se ainda lembrava do caminho para o motel, mas ele já havia esquecido. Com muita tristeza, informei que eu só pegava no meu veículo, para fazer compras pertinho de casa. Ele ficou petrificado, principalmente ao me ouvir dizer que também esquecera do caminho. Naquele instante, eu vi o erro que nós dois cometemos – havíamos trazido o passado para o presente, esquecendo que a seqüência dos anos deixara suas seqüelas conosco.

Naquele momento, tive muita vontade de expressar este meu pensamento, mas fiquei com receio de ofendê-lo. Ficamos ali parados, a olhar um para o outro, sem saber o que fazer, até que ele me pediu para dirigir, prometendo que ficaria olhando as placas de sinalização. Se fôssemos devagar, haveríamos de acertar!

Apesar de meu nervosismo, estávamos indo bem. Eu dirigia sem pressa e bem atenta para não errar o caminho, já escurecido pelas horas. Como ele havia deixado de me informar o que via nas placas, e meu óculos não me ajudava em nada, olhei para ele e tomei outro susto. Ele estava dormindo!

Minha filha, a partir daí eu comecei a tremer da cabeça aos pés e a rezar pedindo ajuda a Deus. Juro que não sabia por onde andava. Foi quando consegui enxergar uma placa indicando o caminho de volta. Não me contive e bem alto agradeci ao meu Deus. Naquele momento o Airton acordou e perguntou se o motel ainda estava distante. Respondi que estava indo para casa, porque não encontrara o tão desejado local. Ele não deu mais uma palavra.

Achei que estava tudo bem e que poderíamos nos despedir mesmo em minha casa, mas quando chegamos, ele me deu um beijo e foi embora. Fiquei com os pés grudados no chão. Não conseguia entender a reação dele. Depois fui pegar esta sacola que havia deixado no carro, com todo o meu sonho dentro dela. Chorei durante toda a noite e por vários dias. Nunca mais ele deu notícias e nem eu procurei saber de nada. Lavei estas taças, estas peças de vestir e guardei nesta mesma sacola.

Com a voz entrecortada pela emoção, ela perguntou se Laura poderia lhe fazer o grande favor de levar todas aquelas tristes recordações, para um lugar onde ela nunca as visse. Não queria continuar a sangrar seu coração, todas as vezes em que as fitasse. Em seguida, abraçando a si mesma num gesto de consolação, D. Ester perguntou se Laura achava que o Airton ainda estaria vivo e se ainda lembrava ela. Ao ver a expressão de dúvidas estampada no rosto de Laura, deitou cabeça no seu colo e chorou copiosamente.

- Meu Deus, o que poderei dizer para consolar essa pobre criatura? Com esse pensamento, Laura concluiu que a emoção de D. Ester, terminara por contagiá-la. Na falta de palavras adequadas, acariciou aqueles cabelos brancos, separando-os em pequenas mechas, como se pretendesse com isso, abrir espaços para fazer sair daquela cabecinha sofrida, toda a desilusão ali demonstrada.

Após massagear aqueles ombros alquebrados, Laura levantou o rosto da infeliz velhinha e, olhando em seus olhos molhados pelo pranto, prometeu nunca mais deixá-la só. Deu-lhe mais chá e a colocou na cama para descansar. Saiu com a promessa de que voltaria todos os dias, para caminharem juntas.

Apressando os passos de regresso para casa, viu que já havia perdido seu compromisso, mas firmara outro bem mais relevante, perante Deus e seus próprios sentimentos. Entrara pobre naquela casinha, para dela sair rica de emoções e experiência. Aprendera que, para um amor verdadeiro, não existe tempo, distância e idade!

Ercy Fortes
Enviado por Ercy Fortes em 16/06/2013
Código do texto: T4344062
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