Feita Para Cuidar E Amar

Naquela noite, todo o apartamento mergulhara em um profundo e doloroso silêncio. Lorena se instalara em uma confortável poltrona e começara a folhear uma revista de moda feminina, entretanto, por mais que a examinasse, a mulher parecia alheia ao seu conteúdo.

Dois dias antes, o acanhado apartamento regurgitava de gente. Lorena dera uma recepção para comemorar o casamento de sua irmã caçula. Agora, recém-casada, Loreta estava em viagem de lua de mel.

Desde o trágico acidente automobilístico que ceifara a vida dos pais e acarretara na perda total da visão de Loreta, Lorena renunciara voluntariamente a seus mais íntimos desejos e projetos de constituir uma família, a fim de cuidar do bem-estar da irmã, e se possível, proporcionar-lhe felicidade.

“Minha missão está terminada, mas oh! Sinto-me terrivelmente só”, tal era o pensamento da enfermeira, que definitivamente nascera para cuidar dos outros e esquecer de si mesma. “Sim, minha irmã será feliz, ele a ama”, Lorena tinha certeza, mas quanto a ela própria, o que havia eram apenas incertezas.

Aos trinta e nove anos, os pretendentes estavam ficando escassos, e ela por sua vez se tornava mais exigente.

De repente seus pensamentos foram interrompidos pelo toque insistente da campainha. Consultou o relógio, já passavam das 22h30.

— Meu Deus! Quem será a estas horas?

O rostinho negro que surgiu à porta era bem conhecido de Lorena. A garota de uns oito anos parecia bastante assustada.

— Brenda, o que aconteceu?

— Vem comigo, tia, por favor! A minha mãe tá passando mal.

Sem perda de tempo a enfermeira acompanhou a garotinha até o modesto apartamento que ficava no segundo andar.

— Vamos, entre — pediu Brenda impaciente — eu a deixei na cozinha.

Ao entrarem no cômodo, as duas encontraram a mulher obesa imóvel e estendida no chão, próxima a um pé da pequena mesa de refeições.

Lorena se abaixou ao lado da mulher e verificou que ela estava sem pulso. Em vão, tentou ouvir os batimentos cardíacos e não havia nenhum sinal de respiração.

— Como ela estava quando você a deixou, Brenda?

— Ela estava sentada numa cadeira e reclamava que o peito doía muito.

— Acalme-se, querida, vou chamar um médico.

A enfermeira tentou tranquilizar a menina, no entanto, pela sua experiência hospitalar, sabia que o pior já acontecera.

Quando o socorro médico chegou, nada se pôde fazer, a não ser a triste constatação: Benedita, mãe de Brenda, sofrera um infarto fulminante.

Lorena retornou ao seu apartamento levando consigo a menina, tornada órfã de forma tão repentina. A enfermeira compreendia muito bem a dor da garota, por isso deixou que ela chorasse quanto quisesse.

No dia seguinte, todas as providências para o sepultamento de Benedita foram tomadas. A mulher, que ganhava a vida fazendo faxinas como diarista, era organizada e prevenida. A duras penas conseguia manter em dia os pagamentos de um seguro familiar para mãe e filha. Assim a funerária cuidou de todos os procedimentos necessários. Benedita Magda da Silva teria um funeral simples, mas digno.

A mãe da falecida, dona Berta, compareceu ao enterro meio a contragosto, pois ela e a filha tinham rompido relações já fazia alguns anos.

Brenda não desgrudava da enfermeira Lorena. A menina parecia se sentir segura e amparada ao lado daquela mulher alta, de rosto alongado, tez clara e cabelos ruivos, que não chegavam até a altura dos ombros.

Terminado o sepultamento da diarista, Lorena interpelou dona Berta, que parecia ainda mais gorda do que a filha morta, na saída do cemitério:

— A senhora vai pedir a guarda da Brenda?

A interlocutora respondeu com frieza:

— Olhe, moça, eu moro lá na favela Miséria, num barraco de dois cômodos com mais sete pessoas. Três filhos, dois netos, uma nora imprestável e mais o meu Nego. Não tenho condições de levar mais essa pobrezinha. Ao dizer essas últimas palavras, Berta acariciou a cabeça da garota com um ar de falsa piedade.

— Mas ela é sua neta — redarguiu a enfermeira — Brenda se encontra sozinha no mundo agora, e a senhora é a única parenta conhecida.

— Ora, escute aqui! Desde que Benedita saiu da favela, nunca mais voltou nem mesmo para nos visitar. Ela sempre teve vergonha da sua origem humilde. Não sou hipócrita, dona, não tenho nenhum vínculo com essa menina que, aliás, é filha de um traste lá da favela. Entregue-a para uma assistente social, ou então, fique com ela você mesma.

Diante de tão dura resposta, Lorena despertou para a cruel realidade. As privações de toda uma vida tinham endurecido o coração daquela triste figura feminina. Lorena se abraçou à Brenda, e beijando-lhe uma das faces disse com firmeza:

— Vamos para casa, querida. Ficaremos juntas custe o que custar, eu prometo!

Existem pessoas que conseguem ser felizes apenas quando estão cuidando de alguém. Com apenas dois dias da partida da irmã Loreta, Lorena encontrou um novo alguém pelo qual poderia se dedicar e amar.