CONSTÂNCIA

TODO O AZUL DO MAR

Constância parada iluminava o salão com seus gestos que agora me parecem lentos e diluídos na maresia benvinda através das janelas amplas abertas para os mares do litoral sul. Ela dançava sem tirar os pés do chão ao lado de três amigas que eu ainda não conhecia, econômica no balançar os quadris não fora o corpo de estatura comum que prendera meu olhar na sua direção, a beleza não pede tais requintes quando seu propósito é nos prender a uma criatura por toda a vida, mas sim que seus olhos já tinham marcado um território largo ao meu redor, e quando notei sua presença já era demasiado tarde e nem ainda havia ouvido sua voz, nem ainda tínhamos saído do baile para as formações de basalto abaixo da calçada mergulhadas no azul cobalto, ou petróleo, daquela noite que não saiu de nós e ainda ecoa nas circunstâncias dissolutas que pretendo relatar.

Contudo nada do que falamos depois que tive a equivocada presença de espírito de convidá-la a sair para o silêncio da rua e depois à praia, nada do que me pareceu único na sua pessoa ou no modo como tocava os cabelos repetidamente no mesmo ponto, nem mesmo os olhos azuis confirmados da cor daquelas águas pela manhã, nada, nada fincou em minha alma mais profundo que a silhueta do corpo nu oferecido ao luar e aos meus olhos, e o equívoco naturalmente foi aceitá-la a espera, dada como se natural e não dotada de vontade seletiva. Banhada nessa atmosfera Constância contou-me da saudade permanente que corrói seus dias, da tristeza de pensar no irmão assassinado a dez anos e que tortura a todos da família por não ter uma razão o crime ainda não esclarecido, contou-me de seu interesse quase místico pela literatura citando autores que eu desconhecia e passagens que me pareciam, naquele ambiente quente e sereno do quarto de aluguel beira mar, cenas de filmes antigos. Constância impediu que eu fizesse o que só a luz pôde enquanto narrava cenas de sua vida mais que íntima e antes que pudesse beijar as linhas do seu corpo ouvi a mesma boca sussurrar que fora vítima de abuso quando ainda tinha seis anos e que seu irmão de doze entrava no quarto contíguo ao dos pais na madrugada, silenciando no escuro os protestos abafados que só agora ganhavam força contando-os para mim, Nem sei porque digo essas coisa para um estranho. Lembro de ouvi-la com a mesma lucidez de ver as lágrimas discretas assim dissimulada, assim diluída, assim iluminada de poesia e dor. Não pude tocar e desfazer essa irrealidade inebriante de seu corpo na minha frente e penetrar a carne e corrompê-la, ainda estão nos meus olhos as formações dos glúteos, como que glaciais, impiedosamente oferecidos ao toque de minhas mãos inúteis. Quando vim a tomar consciência de que ela tinha previsto cada movimento meu, que tinha percebido minha estupidez diante da sua aparição e que adivinhara-me impotente e desejando aventura tive a alma dilapidada. E nada mais restituiu-me alento, Constância povoou desde então as urnas secretas dos porões lúgubres da minha alma, esteve sonolenta no balanço das redes armadas em todos os casebres e estirada nos tatames em que procurei esquecê-la na companhia de mulheres as mais exóticas ao alcance. Nenhum beijo, nenhum toque até o momento em que disse, Cubra meu corpo, e nu deitei-me sobre ela. Nada me parece real e ainda hoje, procurando as origens da separação, revejo Constância o tempo todo do meu lado nos últimos anos e percebo que nunca estive tão sozinho procurando nela aquela que, ainda nos primeiros instantes, tinha desenhado tão terna e tão profundo: a mulher que eu pensara conhecer.

A CARTA

Vinte dias depois recebi a carta de Constância. Estivemos juntos apenas duas noites, e entre elas a tarde mais azul da minha vida porque não via mais nada a nossa volta senão as marcas em sua pele branca deixadas pelo sol onde o biquíni supunha proteção. As reminiscências do encontro inesperado na noite do baile foram suporte para as sensações da noite seguinte e, se não nos entregamos ao desespero do desejo antes e pairamos suspensos naquele torpor que me esvaiu as possibilidades de avançar em carícias mais ousadas, é porque a certeza do dia seguinte anunciava o tempo de aplacar com ferocidade a ânsia e depor contra sua dor todo prazer desse mundo, entardeceríamos o Atlântico. Constância estava com fome quando chegou ao hotel vestindo opera rock e exalando fireneith, sugeri restaurante da orla perto das lojas e dos suvenires mas ela, descolada de si mesma e com um brilho nos olhos que poderia incendiar todo o quarteirão disse “prerefiro comer enquanto andamos”. Abocanhava pedaços do lanche que eu segurava para nós dois e dava um jeito de lamber meus dedos. Claro que ninguém via que eu era devorado e digerido em pequenas porções que se alojavam em Constância de modo que, por mais que eu me esforçasse, o que eu via no fundo de seus olhos eram os meus... que espécie de veneno teria sua língua segredado enquanto dividíamos, como dois adolescentes, o de comer? As milhares de partículas de realidade se fundiam ao mar que era apenas um estrondo longínquo percebido na praia iluminada pelos holofotes potentes, partículas bilhar, partículas jaquetas de couro, partículas sirene de ambulância que leva um desgraçado qualquer. Somente eu morreria nos braços de Constância mais tarde, eu ouviria dela: “Otávio”. O que nunca teve significado passou a significar e fazer parte do mundo inventado para que essa criatura estrelasse no meu caminho e, para dentro dela, como se o mundo tragado de uma vez numa entropia cujo centro de convergência eram os olhos azuis de Constância, ininterruptamente, sucessivamente, irremediavelmente sofresse queda vertiginosa para a qual não havia remédio. Quando fui avisado que chegara correspondência me veio de imediato o sorriso do Clemente. Ele que nesses dias debochou da minha esperança de rever Constância dizendo que isso era coisa de cinema e que eu podia tirar o burro da sombra, Clemente agora se morreria de inveja, eu tinha nas mãos uma carta de Constância e pelo volume trazia boas novas adivinhadas com pressa: que se casaria comigo, que seria feliz para sempre mais uma vez, que não se esquecera de eu ser um cavalheiro e saber esperar e nem de como nossos corpos se encontraram e se encaixaram na segunda noite. A segunda noite. Comemos na praia escura apenas iluminada pelos tais holofotes que alcançavam as últimas ondas cansadas, ali onde nossos pés descalços percebiam os segredos do abismo coberto de água salgada. Quando o sono já tinha arrastado os outros eu a levei para o quarto que nos esperava de janelas abertas e nos beijamos longe de qualquer possibilidade de término, de desfecho, de fim. Milhares de palavras seriam desperdício para a tentativa de ilustrar a singularidade de vê-la banhada do azul roubado dos meus sonhos mais secretos, suavemente entrelaçada formando nos meus braços o desenho da paz perseguida até aqui. Na tarde do dia seguinte havíamos combinado uma despedida que não houve, estava lá e procurei em cada táxi que parava e em nenhum deles Constância me sorriu. Ainda acenei para o vazio na direção de um ônibus que saía rumo ao interior, supus... Na carta ela me disse que só fez pensar em mim nesse período hiato e que eu devia ter-me atrasado para a despedida, que levou com ela o mar absoluto e que, por isso, por onde andava seus olhos só viam minhas mãos acenando para dentro dela, fez uso de metáforas que não entendi muito bem, algo como “sem você as horas passam like a roling stones” e terminava concluindo que tudo ficaria melhor quando eu respondesse a declaração que fazia: Te amo, Otávio. A casa que eu morava na época tinha sido reformada, essa mesma do lado da dos meus pais encrustada na memória do bairro antigo de onde se vê a rodovia Cândido Portinari, essa casa que tinha me recebido de volta há vinte dias com semblante transfigurado, essa mesma que seria demolida para dar lugar à praça onde saio à noite para fumar sozinho ao ar livre, então parecia rir comigo e de mim, eu andando de um lado para o outro com a carta na mão, zombando as paredes repetiam com suas portas bocas alongadas “ela te ama”. Não quis trabalhar naquela semana, não precisava comer nem beber água “te amo, Otávio”. A carta ficara sem resposta até a noite de sexta, portanto três dias muda e vibrando no envelope como tinham vibrado nossos lábios e narinas, as palmas das mãos úmidas apertadas enquanto da boca de Constância o veneno seguia direto para as mucosas da minha alma “te amo”. Mas quando peguei o papel e a caneta para dizer que eu queria morrer do lado dela, que viveria em outras galáxias e que desde que nasci esperava por ela apenas repeti o erro de sempre, e disse em trocadilhos infantis que troçava da ousadia dela em dizer tal palavra sem que soubesse, de mais perto, quem era eu, o objeto de tão repentino, e literariamente, declarado amor. Sinto que foi o primeiro erro de fato irrevogável, erro de natureza viral que mesmo extirpado das correntes subterrâneas de uma correspondência afetiva ainda mina secretamente os incômodos dejetos de um aceno rápido, a dúvida insípida não declarada no instante em que o olho esquerdo se abre depois de uma piscadela graciosa, esse tipo de contradição que se revela por toda a extensão das falas que deveriam ser discursos espontâneos mas que se parecem mais com redação colegial que reflexo dos sentidos organizados em linguagem, a dos abraços, a contradição dos abraços, e dos passos no passeio público num domingo à tarde. Irrevogável porque a resposta foi enviada para Constância que tornou a escrever mais uma vez. Mais lírica, mais feminina, mais ferina, mais Constância. E o tal erro, aquele deboche que desenhei na forma concreta de um Pignatari invejoso, mais era um não aceitar ser amado do que uma tentativa preconceituosa de negar o amor. Eu ainda não sabia que o amor está fora de nós e dele dependemos que nos escolha para sofrer a desonra e a humilhação de chegarmos inexoravelmente atrasados para a celebração para a qual nos convida, essa dilatação da vida em sobressalto que torna a significar a queda original e dá sentido a que se peque ainda no paraíso. E vai que uma segunda resposta escrevi dado que Constância reiterava em suas palavras que sentia minha falta na forma de uma presença absurda que não explicava e dizia, citando Caeiro, que nada ficara no mesmo lugar desde então, que em tudo via-me e em tudo ouvia ou chorava à espera do reencontro. Então não pude adiar mais, derramei tinta de onde antes havia apenas números e siglas, emblemas e signos esvaziados, de onde nunca havia brotado margaridas, crisântemos, rosas e jasmins, de onde nem um pé de alecrim ou erva doce, caninha da índia, hibiscos brancos vermelhos amarelos dobrados lisos pequenos, nada... nada havia brotado com a força que vinham as palavras que eu escrevia sem medo na certeza que depois disso só a felicidade duradoura. A casa de então já foi demolida e o bairro cresceu. Resolvi que Clemente seria o portador dessa segunda carta minha à Constância uma vez que passaria, em viagem, muito perto dela. Clemente devia chegar à Brasilia para representar a firma de exportação em que trabalha e retornar, entregando assim, em mãos, toda esperança devotada à essa mulher que ainda hoje obriga que eu passa as noites insone escrevendo e lendo e escrevendo como se à mim tivesse escapado os versos de Drummond “Deus me deu um amor no tempo de madureza”. Revejo no portão meu amigo Clemente enquanto escrevo essas reminiscências tolas, ele a me sorrir com a expressão mais debochada ainda espelhando aquele erro primeiro, aquela ânsia do amante disfarçada de escrúpulo. “Então?” perguntei sem necessidade, e ele: “não encontrei ninguém no endereço, ela se mudou”.

CLEMENTE

O amontoado de impressões deu passagem para sensações novas de delírio, a cada instante as configurações que provocaram em mim a febre já faziam o contrário, por mais de uma semana aceitei o fato de que o amor tinha sido tão eterno quanto breve, e a suspeita de que Clemente estava mentindo só veio animar os sentidos depois que tinha emagrecido pelo menos três quilos. Desse acúmulo alternado em camadas de abandono e dependência, compaixão e desejo que minaram secretamente as edificações do edifício “eu”, desse acúmulo pinçava uma dor nova que ainda não era mais que desconforto e desprezo, embora relendo a segunda carta ficasse sempre reiterado meu destino ao lado de Constância. Aquele primeiro erro, que afinal era apenas o último grito da arrogância adolescente e da soberba do quase adulto não pude desfazer e, sempre que retornava a agência dos correios, retornava à tarde que postei a resposta e via o funcionário a carimbar o envelope e dizer “é como se a pessoa já tivesse recebido” e sorrir pra mim como se pedisse que o levasse para casa, sempre, e de todas as maneiras que eu recomponha a imagem, sempre é tarde. E pensava que em algum lugar Constância lembrar-se-ia rindo de ter inspirado compaixão com sua lábia destilada em meus ouvidos. No tempo em que durou o desconforto da negação “ela se mudou” recebi Clemente duas vezes em casa para jantar, falamos de quase tudo que os jornais publicaram na semana, das conspirações internacionais assistindo Hitchcock, do tempo ruim no sertão de Minas, da guerra no Oriente Médio, das acompanhantes que ele usava como se fossem camisas novas. Até o momento em que a amizade e todos os anos juntos a Clemente avultava em hombridade e companheirismo refutei a farsa e computei na conta de Constância a habilidade de manipular e seduzir, capacidade que aliás desde Eva tem sido o prazer das mulheres e das serpentes nas horas de tédio em todos os jardins. No entanto, no mesmo “em algum lugar” ela estaria certa de que eu, apenas eu, poderia aliviar o peso de sua beleza não traduzida. Relendo “vidas secas” e imersa na caatinga estaria estupefata assistindo a cena em que Fabiano atira na cachorra Baleia: ele insiste mais um passo, as arribações mal agouram o levante, abaixa e apanha um graveto, põe na boca, masca, segue lento, Baleia geme de dor de fome, Fabiano aponta e não atira, vira-se bruscamente e aponta a arma para Constância que teme seguir a leitura. E a lembrança do paraíso me fez resoluto, inquiri de Clemente uma descrição do logradouro para onde ele teria levado a carta não lida por Constância, a segunda minha. Ele, reticente, escreveu uma epopeia só pausada pelos tragos no cigarro, reforçou a dificuldade em Brasília, as estradas mal cuidadas, a distância e o cansaço e não pode, com clareza, especificar a cor da parede da casa e se havia uma azaleia frondosa no jardim, Clemente mentiu e eu queria saber o porque. No entanto, por respeito ao tempo da amizade, não confrontei suas intenções e o xeque avisado ao cavalheiro cheio de boas intenções, ainda não fora xeque mate. Depois que ele foi embora aquela noite, embriagado porque o fiz beber e falar mais que de costume, pensei que tinha um quadro completo da situação: enciumado e temente que eu desaparecesse no universo descoberto em Constância, Clemente agiu na espreita de uma oportunidade para dissuadir-me da empreitada. Imaginou que facilmente me perderia enredado nas tramas e nas circunstâncias que cercavam essa mulher que parecia ter-me lançado feitiço, Clemente via na história os fios das teias que moiras do nosso tempo conservam entre os dedos, e chegou mesmo a advertir que eu corria risco. Na atmosfera densa mais um cigarro, outro e a manhã anunciada nos tons de violeta iluminou minha sina. Decidi partir em busca de corrigir qualquer falta, qualquer erro, partir em busca de vê-la mais uma vez. Aliviado pela decisão pude descansar, lembro perfeitamente que não sonhei as poucas horas que dormi mas, e disso também tenho certeza porque enquanto jogava as roupas na mala incluí um volume de Proust, o fantasma de uma duvida seguiu cada gesto meu até o fim da tarde, e uma certeza: uma premissa equivocada pode levar à conclusões distorcidas embora verdadeiros os argumentos. Partimos imbuídos de certeza eu e Constância, que foi assim sozinho ao lado dela que a estrada se abriu na madrugada para os faróis dos meus olhos.

Neblina

No meio do caminho uma neblina inesperada separou-me da estrada e ainda nela conduzi lentamente os pensamentos para o acostamento, como se os dirigisse e ao carro. Recomponho esse caminho percorrido madrugada afora na direção de rever Constância e os sinais emitidos por Clemente me instigam ao limite dos raciocínios mirabolantes e das intrigas sórdidas das novelas tão em voga adaptadas para televisão. A autovia a perder de vista nas curvas mais demoradas, iluminada pelos faróis da contra mão, sugeria formas bizarras e mesmo pessoas seguindo em fila penso ter visto. Depois de cento e trinta quilômetros os sentidos entorpecidos de fixar os olhos nas faixas da pista esquecem a sinalização, deligo o som, não há nada além de asfalto, serra e abismo. Então a neblina anunciada devorou a visibilidade que já era diminuta. Inesperadamente engoliu o acostamento e as faixas já não sinalizavam segurança de modo que, depois de derrapar, diminui a velocidade e encostei quase batendo numa árvore. Não posso afirmar com razoável certeza onde estava, sei que não pude ir à parte alguma até que amanhecesse, e vi desenhar na neblina o perfil dos eventos desde a visão de Constância no baile com suas amigas.

Clemente na saída do bar, Bebia vodca, disse e desapareceu atrás dela. A segunda parecia sombra de Constância e por isso desistiu da festa quando nos retiramos. Mas a terceira não tem rosto e ainda agora, nessa cegueira branca absoluta que cerca tudo, não projeto a razão de não lembrar seu rosto. Soube que a negra beija bem e é dada a jogos no amor prático nos quais Clemente é exímio praticante, no entanto a terceira moira por assim lembrar os avisos dele, esvai no instante mesmo que um pensamento mínimo se aproxima dela.

Aceitei o convite para o baile porque Clemente produziu o evento para arrecadar fundos numa ação conjunta do Rotary e a loja maçônica da quarta revelação em que ele é sênior. Quando Clemente me perguntou onde tinha ido, porque sai antes do fim do baile, já sabia onde e com que eu estivera, a lista dos presentes fora conferida por ele e mesmo os convidados dos convidados estavam na programação. Clemente sabia da existência de Constância antes que eu a visse. Teria ele tocado nela? Um sopro frio invadiu meu corpo. Fora do carro, na neblina espessa, o pio agourento de uma coruja cortou o ar, era a vítima pedindo ajuda já sem esperança. E sem saber de nada eu me entregara à ideia romântica de que eu e Constância estávamos no baile por ação do amor, que a trama era mais bela que toda arte de Penélope, que moiras de uma nação cigana e moderna haviam predestinado nossa história mágica e azul à beira mar sob a luz da lua. As agulhas desse pensamento ficaram minha carne e sangraram meus olhos, e duas vezes cego esperei imóvel amanhecer. Clemente havia dito o quanto se divertira depois dos discursos entediantes, depois das homenagens e do documentário que foi produzido com as crianças protagonistas da fome no sertão do Jequitinhonha para justificar a ação e o programa, mas não disse uma palavra sobre a terceira amiga nem de Constância até que chegasse a primeira carta.

A neblina declina sua força e esvai na mesma proporção que meu desejo de rever Constância, e um sentimento novo vem sorrateiro ocupar acento. Naquela noite enquanto Clemente bebia sem dar conta que eu estimulava a bebedeira para que dissesse alguma coisa sua fisionomia mudava como a superfície de um lago onde, e só agora posso ver, refletia minha própria face. Clemente zombara dos meus sentimentos desde o primeiro instante, soube do afeto e, claro, dos detalhes da narrativa de Constância para confundir compaixão e amor, tudo veio daí. De onde mais a pérfida iniciativa da não entregar a segunda carta minha para Constância? Clemente, não satisfeito de sua orgia nos bastidores do evento beneficente, se deu a tramar uma segunda possibilidade: pelas mãos de Constância me levaria até seu bacanal, o convite estava sempre aberto e negado desde o primeiro. Envolveu as três amigas de Constância, mesmo a terceira que mantem o rosto perdido na minha lembrança como se nessa neblina, e o que deu de errado? fomos além de uma noite, Constância alongou-se em minha alma e fez de um canto entulhado mobília para a sua, semeou em meu espírito o desejo de cultivá-la, de me alimentar o corpo e não extinguir. Teria percebido isso e nutriu mais que os planos de um orgia passageira, prendeu mais um fio na trama das moiras incansáveis, contornou Clemente e desapareceu.

Constância havia previsto cada movimento e em nenhum deles considerou as possibilidades. Ferido onde mais sangra dou partida ao carro e volto para o caminho em busca de concluir, seguindo as premissas diluídas na neblina, os eventos que narro buscando a clareza de espírito e a honestidade pretendida para convencer os senhores da minha inocência.

máscaras

São José do Rio Preto, oito horas da manhã do vigésimo quinto dia contados e saídos um do bojo estéril do outro e por isso apenas um só dia, vinte e cinco longos dias de febre sem descanso, de delírio sem anestésicos, apetite ou pausa, seiscentas horas até o momento de rever Constância, e ali está o arbusto azaleia do gramado, mas a casa, a casa não. Quando me fez imaginar sua infância, a cidade que se desfazia em ruas sem asfalto, os irmãos, o pai e a mãe Constância tinha ambientado as cenas em uma casa modesta de um bairro modesto numa cidade mítica de sua memória, a simplicidade que exalava cape dien não habita esse endereço, e na minha frente agora as colunas clássicas de capitel jônico imponentes ostentam orgulho de classe e desdém operário de modo que afastei não sem prejuízo da visão dois quarteirões e esperei alguma movimentação, um indício de que, apesar da equivocada descrição, o endereço na carta fosse realmente o logradouro visitado por Clemente quando à meu pedido, e de volta de Brasília, se negara a entregar a segunda carta. Pouco antes do meio dia o imenso portão foi aberto, entraram dois carros e deles desceram cinco pessoas, talvez tenha reconhecido a amiga de Constância pelo estilo. Acima do segundo piso da casa uma cortina balançava para o lado de fora da janela de madeira aberta. Antes que entrasse a terceira amiga de Constância retira da bolsa o celular, atende e passa a sorrir olhando vagamente na minha direção. Nesse momento, senhores, aceitei o porvir e dei o primeiro passo, acenei chamando por Constância e logo aquela mulher veio adivinhando meu suor, alongando suas pernas em compasso aberto de modelo bailarina na minha direção. Desculpem o transtorno de saltar o tempo na narrativa aqueles que se apegam aos detalhes cronológicos e factuais, que se retorçam procurando nos laudos e depoimentos o que já não tem importância, embora eu pudesse lembrar o nome de cada rua por que passei não vale a pena incluir mais que o sobressalto de ser recebido por como parte da história, como pessoa à quem se deve explicações, Sou Vera, amiga de Constância, lembra¿ diz estendendo a mão e declara, Não esperávamos mais que viesse.

Sou levado pelo braço quase abraçado a Vera em silêncio e, sem emendas para narrativa, para os fundos da casa. Subimos a escada que dá para um quarto amplo no fim do corredor cujas paredes me vi emoldurado em oito espelhos distribuídos nas duas paredes, a luz suave dança vindo de fora, a cortina branca faz o ambiente saltar pela janela. Me sinto diluído, liquefeito, invisível e nesse estado reconheço o corpo de Constância também líquido, diluído e azul como da primeira vez que a vi. Constância está em coma, a voz de Vera soa de muito longe. Coberta por uma gaze transparente ou véu, tule para ser preciso, inerte imóvel paralisada totalmente por inteiro, as palavras que tem tanta força e criam mundos agora se repetem também inertes, imóveis, paralisadas totalmente por inteiro submersas nessa atmosfera oceânica. Velo uma eternidade de pé ouvindo o mar arrebentar dentro da cabeça, naquela praia lisa de areias ordenadas dorme quebrado meu sonho como num navio arremessado contra as vagas, tudo se mistura como num poema e só não confesso minha dor porque preciso tomar de empréstimo as palavras de outrem. Não sei por quanto tempo fiquei ali sem pensar em nada, apenas respirando o mesmo ar que penetrava, como se espírito, as narinas de Constância e quando decidido toco a pele de sua mão sou levado para o alto de uma montanha num átimo de secundo, a nossos pés as nuvens pareciam sólidas e no silêncio intraduzível dançamos por não sei quanto tempo, vinte e cinco minutos, vinte e cinco dias, vinte e cinco anos. Quando recobro os sentidos percebo tudo em volta com mais clareza, Vera tinha se ausentado, há movimentação no corredor, um homem se aproxima, outra porte se fecha, Constância parece sorrir de olhos fechados. A premissa não estava diluída na neblina, coerente apenas faltando argumentos, peças. Eu não quis saber que Clemente estava a serviço no tráfico da heroína e que o caráter beneficente do baile era fachada, que as três moiras eram na verdade uma Salomé que, ao entregar a cabeça de Constância na bandeja para Clemente promoviam o mercado ascendente nas classes mais abastadas. Constância levitava entorpecida quando à vi no baile, quando despi seu corpo e nele a lua marcou a sombra das minhas mãos. Quando pedi a Clemente que entregasse em mãos a segunda carta foi como dar ao algoz arbítrio para o golpe final: tinha que se desfazer da sua conexão uma vez que a droga já tinha sido distribuída, na volta de Brasília deixara limpo o gabinete do senador amigo seu e não cumpriu o combinado, ao negar a correspondência entregou o alívio da última dose. Percebo Vera que se aproxima no corredor, o homem imaginado a pouco é mesmo Clemente. Vera está nua e no rosto, cobrindo qualquer expressão, uma máscara não esconde os olhos e neles a distância que separa a lua da terra. Preso ao pescoço por um anel de ouro um lenço que desce pelo braço alongado acentuando longilíneos os dedos da mão esquerda, a ponta do lenço comunica a extensão incômoda entre Vera, Clemente e eu.

A única pergunta que faria é porque manter Constância nesse estado mas tenho a resposta, e é o pavor de imaginar Clemente violando o corpo de Constância noites e dias e noites intermináveis nesse quarto que impele minha mão quando pego da arma e primeiro estouro o peito de Vera e depois o riso que vem melado na cara dele. Encostado a uma réplica do busto de minerva que ampara o último espelho no corredor Clemente apanha no bolso um garrote e joga na minha direção, depois gira em falso e se apruma, avança dois passos bêbados, ouço gritos no quarto contíguo e no piso inferior, Clemente tomba como um cão, mas de joelhos. E antes que fale arremesso sobre ele o desgosto amargo do metal que amplia sarcástico o riso mudo. Como um cão.

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 05/08/2013
Reeditado em 10/10/2013
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