EU QUE VOU SABER...

EU QUE VOU SABER...

Olha, eu estava num bar esperando dois amigos para almoçarmos nas proximidades e não pude evitar de ouvir a conversa entre dois amigos na mesa ao lado. Confesso que não entendi tudo que falaram, aliás... um deles se dava um ar... digamos... de personagem de ficção... enquanto o outro... com sua cerveja suando no copo... ia relatando o seu inconformismo. E eram pessoas letradas... pelo jeito, pelas palavras que usavam, inclusive quando falavam de um dos mais naturais atos humanos: o sexo. Tento relatar o mais próximo do que ouvi mas não necessariamente tintim por tintim do que falaram...

— ... eu que vou saber... sei lá como e por que isso ocorre... você que sabe tudo e de tudo é que devia saber essas coisas... sei lá... só sei que isso mexe comigo...

— Sim... mas eu não tenho explicação própria... cada um tem sua própria tese sobre esse assunto... é só dar uma olhada nos vários livros da humanidade e você verá isso, eu é que não posso justificar aquilo que nunca ocorreu de fato comigo e sim com vocês... e você mesmo já me contou essa história tantas vezes que está na hora de passar adiante... eu sinto que cada vez que você conta há certo alívio... mas o diabo é que você fica mais confuso... solte o verbo e fale tudo...

— Sim... contei mesmo... principalmente de um ano para cá isso ganhou proporção... tenho lá uma tese mas deve ser absurda... em todo caso vou falar pra aliviar minha garganta e meu coração... aí está... é isso... acho que suas majestades, o cérebro e o coração, para gáudio próprio, se é que posso usar essa palavra esquisita, resolveram criar o “museu memória”...

— Museu memória!?

— Sim, isso mesmo, e penduram nas paredes desse museu todos os quadros daqueles acontecimentos, relatos, histórias que mais marcaram uma pessoa... lá estão eles à disposição... e quando o coração sente aquele vazio... aquele buracão da saudade... puxa uma cadeira, senta em frente ao quadro no museu e fica alfinetando o cérebro pra ele reviver...

— Interessante isso... continue... o problema é que seu coração insiste em reviver algo que nunca se apagou e está numa sequência de quadros... continue desde o começo, homem, como você enrola... parece eu...

— Tem razão... vamos lá para os 90, 94 pra ser mais preciso... me lembro muito bem sim... eu ainda estava conhecendo as dependências daquela instituição acompanhado do coordenador (que mudaria de emprego três meses depois) e ele foi enfático comigo: “— você pode pegar qualquer menina daqui, menos aquela ali”, disse apontando a própria... mas qual o quê... senti um clique no coração... não tive olhos para mais ninguém, nenhuma, nada... só a proibida invadiu minha retina... “dilatou minha íris”... senti o cupido atirando a mais certeira de suas flechas bem no direto do centro do meu coração... sim... senti a pontada na hora... e me contive...

— E por que se conteve?... por que não foi logo e se declarou... como muitas vezes acontece nessa hora...

— Não, nada disso... só acontece assim quando a coisa é meramente sexual, um impulso animal de macho e fêmea... mas quando a coisa toca o coração... não tem essa de chegar logo nada... há uma espécie de freio... você quer... e tem medo da rejeição... sei lá... sei que meu cerco demorou pelo menos um mês e meio...

— Mas ela percebeu que você caiu de quatro logo que a viu?... ela esnobou você... tinha namorado, noivo... sei lá... essas coisas?...

— Sei lá, eu nem a conhecia... eu... bem.... é preciso dizer tudo.... eu já era um coroa diante dela, tinha 49 anos... a guria tinha só 22... fazendo faculdade ou recém-terminado o curso (não tenho o quadro do museu-memória como o cérebro e o coração...)... o que você queria que eu esperasse?... que ela me visse e saltasse para meus braços como o grande e único amor da vida dela...! era preciso paciência... aproximação... cautela... até que criei coragem... joguei conversa fora e senti que ela tinha sentido a mesma coisa... ela era noiva mas não gostava do noivo, largou dele logo em seguida...eu era casado...

— Nossa!... largou por sua causa?...

— Nada... largou pela honestidade dela... ela não sentia grandes atrações pelo noivo, nem sabia o que realmente sentia... mas ao começar a sair comigo... não achou justo com o noivo e desfez o namoro... ao contrário de mim que não tive a necessária coragem para mandar tudo às favas e assumir aquela guria de 23 mas cuja cabecinha já na época era a de uma mulher de 35 a 40 anos, sabia conversar, sabia se portar, era especial, muito além de sua idade... olha... ela me balançou... eu nunca tinha convivido com uma garota tão madura, tão... tão especial e de personalidade. Uma das coisas que a irritavam de verdade era eu, por algum descuido, soltar o nome da minha esposa... ela virava um bicho, porque era o lado da honestidade dela falando mais alto... ela achava que fazia mal àquela mulher saindo com o marido dela... eu era burro e não percebia que tinha de evitar isso a toda prova... a bacurizinha só saía comigo porque me amava de verdade... senão... resistiria e jamais sairia com homem casado... tenho certeza disso até hoje...

— Sim... você sempre falou isso dessa moça... sua grande paixão... de verdade...

— É verdade... e a danada me enganou muito bem... como eu poderia desconfiar de uma moça com a personalidade dela... aquele olhar no meu, olhos lindos, lábios infernalmente deliciosos... aquela boquinha... beijos que persegui até hoje e nunca encontrei... iguais... corpo esguio, magro, escultural... cabelos enrolados, parecendo a desgrenhados... um charme... uma graça a danada... me prendeu de verdade... me derreteu todo até hoje...

— Você tá enrolando de novo...

— Tá vamos direto ao ponto... a danadinha... olhando bem nos meus olhos... com voz macia e mansa... me disse que sofria de uma doença e que eu tinha de ser delicado com ela...

— Doença..? você nunca mencionou isso...

— Vai ficar interrompendo... já reluto em contar tudo isso... bem... ela disse que sofria de um tal de vaginismo... eu nunca tinha sabido de alguém com essa doença embora dela já tivesse ouvido falar... o fato é que nos nossos pobres encontros... sim... pobres... ela dizia que queria ir a um drive-in em vez de motel... mas era só para não me fazer gastar... e na época eu era rico... ganhava bem... de qualquer forma eu tomava tanto cuidado, mas tanto cuidado para não machucá-la que a preservei o quanto pude... mas os quatro anos que passamos juntos foram os melhores da minha vida... uma vez eu cheguei a mencionar que aquele vaginismo estava mesmo era parecendo virgindade... mas não fui adiante e fiquei com o tal do vaginismo... mas era mesmo virgindade... e eu a preservei... gozado... me lembro mesmo que algumas vezes cheguei a penetrá-la... mas ela continuou virgem... tal a delicadeza... meu pênis praticamente pedindo passagem ao hímen... ele se abria e não se rompia... só descobri isso quinze anos depois...

— Não acredito que você saiu com a mulher dos seus sonhos, a mulher de seu amor e paixão e deixou-a virgem, intacta... ninguém acreditará num absurdo desses... principalmente você dizendo que chegou a penetrá-la algumas vezes... o que é isso... milagre?...

— Não, não é milagre... é arrependimento... ela me enganava direitinho... a danadinha era virgem... e acho que quis se preservar para o futuro marido... sim... agora eu a reencontrei... ela nem mora mais no Brasil... e confessou que eu iniciei algo que outro arrematou... mas que ela ainda sente muita saudade de mim... que me ama... mas... que eu faço muito mal pra ela... que me declarei para outra na ausência dela... diabo... o que ela queria... ela foi embora e ficamos mais de dez anos sem nos ver... sem nos falar... busquei em outra o que encontrava nela... mas qual o quê... nunca senti nada parecido com o que senti e sinto por ela... mas ela tem tanto ódio de eu ter tido outro nesses dez anos de ausência que nem fala mais comigo... sim... nos falávamos pelos meios modernos de comunicação... o facebook... mas agora parece que não tem mais conserto... o coração dela não aceita...

— Mas ela sabe que foi o único e verdadeiro amor de sua vida?... algo insubstituível...

— Ela não acredita nisso, acha que a verdade está em textos que escrevi e não em algo que falo... não perdoa... mas não é que não perdoa... não aceita... não enxerga mais nada... a não ser a outra... que ela odeia e perde tempo... porque eu mesmo não sinto nada por ninguém... só por ela... mas hoje a diferença de idade entre nós é muito maior... não arriscaria... me lembro... que depois de quatro anos saindo comigo... saindo mesmo... ela resolveu que ia estudar Espanhol e que iria embora do Brasil... durante dois anos saímos toda sexta-feira simplesmente para jantar... nunca mais tivemos mais nada... mas o prazer que eu sentia só olhando-a, vendo-a.. conversando com ela era quase um orgasmo... quase não... era orgasmo mesmo... mas ela partiu intacta, virgem... fui um frouxo dos infernos... hoje dói isso... eu devia mesmo era ter agarrado... exigido... sei lá... sei lá... como é duro a gente se arrepender do que não fez... dói mesmo... bem... vamos embora...

Deixaram algum dinheiro na mesa e se retiraram. Nem chamaram o garçom, simplesmente se levantaram e partiram. Eu fiquei ali boquiaberto com a história, cabeça baixa, para não ser notado pelos dois. Quem será essa mulher capaz de mexer com uma pessoa como aquele senhor? Ele era um pouco mais novo que eu e já aparentava mais idade... será que foi o sofrimento? Sei lá... estou curioso até agora e gostaria de conhecer hoje essa mesma mulher, ver como ela está.

Leo Ricino

Março de 2011

Leo Ricino
Enviado por Leo Ricino em 09/09/2013
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