Desvio da vida.

(I) - Tempo Presente

O sol surgiu em um céu cinzento e ele sabia que seria mais um dia sem respostas.

O frio penetrava seus ossos em uma dor só não mais lascerante que a lâmina que teimava desfiar sua alma.

Encolhia-se na cama, em busca do útero materno, do retorno ao tempo de criança inocente, da distância do amor de um homem arrasado.

A secretária eletrônica muda, sem cartas na soleira de sua porta, sem emails em sua caixa de entrada, estava sozinho.

Ela não retornara nenhuma de suas mensagens, apenas partira sem um adeus ou qualquer explicação.

Vazio e mágoa o tomavam por completo na desilusão dos dias.

Rejeição e sofrimento por algo que sequer conseguia compreender.

(II) - Meses antes

Encontrara alguém para compartilhar sonhos, sorrisos, acontecimentos.

Uma mensagem por engano no "What's Up", o início de tudo.

Madrugadas de conversas entre milhões de caracteres digitados.

Tantas afinidades, tantas semelhanças, tantos gostos em comum.

Ambos já haviam se decepcionado com relações anteriores e estavam receosos.

Temiam a sanidade mantida à todo custo entre lágrimas de sobrevivência e esquecimento.

Mas havia uma chama que tornava-se uma fogueira cada vez mais intensa com o passar dos dias, das semanas, dos meses.

Ele possuía um segredo que precisava compartilhar com aquela que o conquistava o afeto sem resistência.

Era hora de se encontrarem, se tocarem, se beijarem, se unirem em corpo, mente e emoção.

(III) - Poucos dias atrás

Ele a esperou com um ramo de flores temeroso de que ela o achasse piegas.

Usava o cachecol de listras azuis e brancas que ela lhe enviara no natal passado.

Segurava com nervosismo a bengala necessária para dar equilíbrio à perna amputada na guerra. Era seu segredo. Custoso. Mas iria enfrentá-lo e dividí-lo com ela.

Os segundos de espera pareciam uma eternidade nos ponteiros de um relógio que parecia não se mover.

As horas passaram e a claridade tornou-se noite escura iluminada somente pelos postes urbanos.

Ela não aparecera. Ela não o avisara. Teria ocorrido algo? Um acidente inesperado?

Preocupação, inquietação, frustração transitavam por suas veias.

No final, apenas silêncio, sumiço, sem justificativas, apenas o nada ressoando no vazio solitário.

(IV) - Ela

No quarto chorava a covardia manifesta na imobilidade que a impedira de ir ao encontro tão esperado.

Aquele que a fizera sorrir novamente, que a levara às nuvens com poucos caracteres por minuto.

Furtara-se ao enfrentamento. Ocultara seu segredo. Medo de rejeição. Temor de julgamentos e condenação.

Não dissera uma só palavra em justificativa. Sabia, sua ação fora imperdoável.

Agora somente lágrimas e solidão entre quatro paredes.

Sofria pelo seio amputado na batalha contra um câncer. Como poderia mostrar-se assim a ele?

Preferiu perdê-lo para sempre à desnudar-se fisicamente para quem havia desnudado-se em espírito. Agora, viveria com as consequências de seu ato.

Ficaria só. Só e somente só no desvio da vida.