Móbile

Quando entramos nessa sala, havia alguém deitado no sofá. Esse alguém me apresentou Little Johnny Jewel. Gosto desse som, por que ele não me deixa pensamentos. Esse alguém me chamou para sentar próximo dele. Sentei-me. Disse-me coisas sobre o mundo, sobre a vontade de viver além dessa cidade grande. Que havia uma cidade maior que essa. Cultivava desejos ocultos. Ele se inclinou sobre mim, e me beijou. Sorri. Tenho lembranças felizes dessa casa. Como quando rolávamos no tapete, misturávamos bebidas, e colocávamos Velvet Underground no último volume. Por alguns momentos eu tive tanta sorte, que acredito que algo assim não signifique nada. Sou coberta por uma esperança denominadora. Essa mesma esperança não questiona, apenas dá nome às coisas.

Algo como dizer: “Você é tão jovem”. E eu absorvo as palavras, as memórias, as experiências. Não posso dizer que estou capacitada para julgar as pessoas. Não julgo! Sou mal-criada. Penso além do que posso pensar, porque penso que devo alcançar o máximo de coisas. Ele diz que sou jovem. Sou jovem, sei disso. Mas se não fosse seria da mesma forma. Sempre pensei dessa forma. A única coisa que me irrita, é pensar que no final da tarde, ele irá tentar indagar sobre como estou no curso de filosofia, ou se tenho pronto minha apresentação na próxima semana. Se sente na obrigação de determinar meus horários, minha comida, minha música. Deve se sentir inferior. Nesse meio tempo perguntará: “Como tu tens se virado?”. Assusta-me saber que estamos tão íntimos ao ponto de me tratar como “tu”. Esqueço que nos tratamos de forma pessoal. O “você” não existe mais. Nós quebramos o “você”, e isso me assusta.

Preciso pensar em como tratar as pessoas. Estão sempre perto de nós... Dele. Ele é sempre tão popular... Tão consciente de relações. Discute latim, política, música. Tem conversa para todas as horas. As pessoas se multiplicam perto dele, e eu sempre arrumo um jeito de escapar e fazer a imagem dele se perde. Não existe uma acompanhante. Não nasci para ser ‘rainha do lar’. Imputar-me essa característica é fazer valer o fato de que a existência da teoria contratualista de Hobbes se concretiza. Quanto mais penso nesses detalhes, penso que devo abandonar essa cidade, abandonar esse vestido, abandoná-lo, abandonar o curso, a idade, as pessoas, e viver com os animais. Faço parte desses momentos de falência que a vida imputa a gente. Estou sempre sorrindo. E as pessoas do outro lado da sala estão sempre esperando uma esposa, uma cozinheira, uma amante na cama, e alguém para aumentar a renda. Volto e tomo meu posto ao seu lado. Ele pede licença a pessoas que não deve nada, e me leva até um canto da sala. Diz que estou bonita, que não devo desaparecer dessa forma. Digo que deve comprar cadeados novos, que me sinto livre o bastante para atravessar a sala e pegar uma bebida. Ele se contém, por que acha que não consegue viver sem mim. Deixou de lado a sua existência, seu som, seu sofá. Deixou toda a sua liberdade pela esperança de alguns anos a menos. Eu vivo e aos poucos descubro que estou sugando mais anos do que ele possa vir a viver. Então preciso deixá-lo. Não o amo. Não acredito no amor. Não vivo à sombra das pessoas. Nem posso deixar alguém com características próprias se afogar numa esperança já morta. É como se cobrir de corpos em decomposição.

Enquanto ele dorme, eu arrumo poucas coisas. Preciso deixar algo que ele se lembre de mim, e que ao mesmo tempo vá perdendo a minha lembrança com o tempo. Eu não quero deixar dúvidas. Não quero ser uma assombração. Saio pela porta. Não hesito. Não sei o que deixei, mas peguei o que achei necessário. Corro com os pés descalços. Sinto a grama molhada, o alivio. Existe a noite, as calçadas, o som do contrabaixo do outro lado da rua, os outros caras, vontades sobre vontades, as bebidas, a filosofia, as lembranças.

Yuri Santos
Enviado por Yuri Santos em 21/09/2013
Reeditado em 26/10/2013
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