Olhos Baixos.

Para Wylle, meu amado amigo.

Encontrava-me num estado lamentável da vida. Meus vinte anos passaram-se, e eu ainda não havia realizado nada do que sonhei quando menina. Era tão calada e desajeitada como antes, porém um pouco mais alta e com linhas finas no rosto. Por dentro eu era um vulcão entrando em erupção e virando lama. E, nessa lama quente eu me esbaldava. Foi quando então, o inverno rigoroso de Junho veio, e com ele uma agradável surpresa – era alto, loiro, mui magro, com mãos e pés enormes. Os maiores que já vi. Por debaixo da camada de vidro de seus óculos, pude ver o puro azul do céu em seus olhos ternos e baixos. Estava em pé, com fones no ouvido. Fiquei a indagar o que passava por seus ouvidos. Fitei-o com tanto afinco que nem percebi o ônibus chegar, se não fosse o rapaz fazer sinal, e o veículo parar. Entrei, e sentei-me mais perto que podia. Ele olhou-me então, mas por vergonha e puro medo, afastei meus olhos dos dele. Passou-se um bom tempo, e ele desceu num ponto bem longe do meu. Pude respirar aliviada. E, tentei me concentrar em meus objetivos; era dia de curso de ilustração. Nessa época, eu trabalhava em casa, como designer freelancer. Assim, eu podia ter uns trocados para gastar com materiais e tudo o que eu precisava. E quando dava, até pagava a mensalidade do meu curso, pois era muito caro e minha mãe e irmão se esforçavam muito para pagar. Eles queriam me ver bem, especialmente meu irmão que tinha fé em mim e na minha capacidade. Porém, eu não. Se não fosse a fé que Danilo depositava em mim, eu estaria acabada. Há seis meses antes de entrar no curso, tentei suicídio. Não me pergunte como. Só sei que sobrevivi para viver a míngua. Digo isso porque minha existência é um fardo para mim mesma.

O curso era todas as quartas. Quando entrei na sala, desliguei-me de tudo e fixei meu pensamento nos olhos azuis baixos do rapaz.. Fiquei assim a aula inteira, e ninguém percebeu, como sempre. Eu sou invisível. Passo desapercebida em qualquer lugar. Talvez por isso o rapaz não me notou como eu queria.

Cheguei em casa exausta por causa do trânsito. Fechei-me no meu quarto, e deitei meu corpo quente e mole na cama, de barriga para cima. Fitei o teto por um bom tempo, depois, virei de bruços e entrei no lamaçal de minha depressão. Tudo o que eu era não passava de linhas e curvas melancólicas. Para as pessoas comuns, é chato ouvir palavras de alguém lamuriento, porém eu não sei se outra coisa que puro choro entalado na garganta. Pensei no rapaz, óbvio. Como ele era bonito! Aqueles olhos azuis, cor do céu, ou até mesmo o puro cristalino do Oceano. E, o cabelo louro escuro, que parecia ser macio...senti vontade de acariciar aquele cabelo. Mas, eu não era nada nem para desejar isso. Então, resolvi calar meus pensamentos e dormir. Não jantei, e sequer tomei banho, até o dia seguinte. E ficava horas sentada lendo, ou no computador.

Na quarta da semana seguinte, eu não poderia estar menos surpresa: o rapaz estava lá no ponto de ônibus, e fez sinal para o mesmo. Subi depois dele, como na primeira vez, e fiquei de pé, ao seu lado. Ele estava vestido como na primeira vez: blusa e calça social, e sapatos escuros. Estava lendo um livro que parecia estar escrito em alemão. Não me recordo de nada que estava escrito na capa. Tentei puxar conversa, mas não sabia como fazê-lo. Fiquei pensando em várias maneiras de começar uma conversa com ele, enquanto sentia aquele cheirinho tão gostoso invadir minhas narinas. No momento em que pensei em falar algo, ele desceu. Fiquei frustrada, e com raiva de mim mesma. Fui ao curso, e mais uma vez, estava distraída. Dessa vez por causa de minha raiva. Fui muito burra. Quando voltei pra casa, subi as escadas e tomei um bom banho, para ver se toda minha cólera passava. Azar o meu; não passou. Não é preciso dizer que fiquei a semana toda, roendo meus dedos para chegar quarta-feira e rever meu amor platônico. Sim, eu estava apaixonada pelo rapaz louro de olhos baixos. E, mal podia esperar para vê-lo. E na quarta, ele apareceu. Um sorriso se formou no canto de minha boca, e senti minhas mãos tremer, e minha barriga esfriar. Eu nem o conhecia, mas estava completamente apaixonada por ele. Estava chovendo, e o ônibus demorou a vir. Notei-o paciente, mas ele tinha um olhar calmo. Logo chegou o transporte, e subimos. Ele vestia-se como sempre, mas dessa vez com uma jaqueta marfim, e tirou de sua bolsa tira colo o livro que esteve lendo na última quarta. Sentei-me numa das cadeiras, e para minha surpresa, ele se sentou ao meu lado. Parecia que o destino queria me dizer algo, mas eu não conseguia sequer virar meu rosto para o lado. Encarava o cenário da janela, e de vez em quando, o reflexo louro na janela. Não demorou muito, e ele se levantou, deu o sinal e desceu no lugar de sempre. O ônibus ficou parado um tempo, porque muitas pessoas estavam subindo, e eu pude vê-lo entrar num prédio. Parecia uma empresa. “Deve trabalhar ali, pensei”. Por isso, o vejo todas às quartas, naquele horário. Segui adiante, e tentei me concentrar nos estudos naquele dia. Cheguei em casa, comi um pouco, tomei banho e fui dormir. Passei a semana desenhando e lendo, mas sempre vinha em minha mente: ‘Qual será o nome dele?” “Qual será sua música favorita?” e coisas assim. Pensei muito nele, e esperei ansiosamente para vê-lo na quarta- feira. E assim, passaram-se os meses, e eu nunca tive coragem de falar algo, mas meu sentimento era muito maior. Até que, na quarta que veio, senti forças e coragem; eu ia dizer algo naquela manhã e não ia falhar. Quando cheguei ao ponto, ele ainda não havia chegado. “ Deve estar atrasado” – pensei. O ônibus passou, e nada do rapaz. Não tive coragem de subir. Preferi ficar esperando. E esperei muito, e ele não apareceu. Matei a aula do curso, e fui para casa frustrada, e indagava o que havia acontecido. Fiquei aflita a semana inteira. Danilo percebeu, e me deu meus remédios. Eu estava muito mal. Quando chegou o dia do curso, pulei da cama, arrumei-me melhor possível, e fui ao ponto. Mas, ele não estava lá de novo. E na outra quarta. E na outra. E, nisso passou-se um mês, até que tive a coragem de pegar o ônibus, e descer naquele lugar. Abri a porta do prédio e era uma empresa de construção civil. A secretária me atendeu, e perguntei sobre o rapaz, que ela logo identificou como “Bernardo, o estagiário do setor administrativo”.

- Você deve ser a garota do ônibus. – completou ela.

- Como assim?

- Bernardo e eu éramos amigos. Ele me contou que toda quarta-feira, ele via uma moça de cabelos curtos e escuros, com uma pasta cheia de desenhos nas mãos e roupas estranhas. Ele me disse estar apaixonado.

- E, onde ele está? E por que eram? Ele não trabalha mais aqui?

- Sinto dizer...Bernardo morreu. Sofreu um aneurisma e se foi para sempre.

Fiquei petrificada.

- Oh! Meu Deus! – E comecei a chorar como uma criança, até todos me olharem, e a secretária me acudir, dando-me água, e falando coisas.

- Ele esperava você falar com ele todas as vezes que se viam. Ele me contou que uma vez sentou ao seu lado, e queria tanto falar contigo, mas você era muito fechada e sequer olhava para a cara dele.

- Meu Deus! – Solucei – Eu o amo! Eu juro! Eu estava esperando ele vir!

- Eu sei, eu imagino. – Disse-me ela, calmamente. Chorou um pouco, e disse que sentia falta do amigo. Fui embora num estado horrível. Estava com a cara toda inchada, e meu aspecto era terrível. Fiquei dias de cama, e Danilo ficou muito angustiado. Não quis ir mais às aulas. Tranquei-me; não comia, nem tomava banho. Até que um dia, fui ao banheiro, peguei as lâminas de barbear do meu irmão, e cortei meus pulsos, e depois, coloquei-os num balde cheio de água. Doía. Mas, doía menos que meu coração partido e culpado. O sangue que saía na água era menor que minhas lágrimas, e enfim, veio a escuridão. Quando abri meus olhos, estava no hospital. Salva. Viva. E Danilo, agradecido por ter sua ingrata irmã de volta.

Dama William Dante
Enviado por Dama William Dante em 24/10/2013
Código do texto: T4540267
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