À espera do acaso

Hoje, como em todos os outros dias, choveu. Talvez ela já estivesse acostumada a se molhar sem ir lá fora.

Tudo sempre pareceu uma ilusão: os dias passavam devagar. Ficava a contar as horas como se fosse uma espécie de prece; os segundos, mais perturbadores: observar os números transformando-se enquanto tentava apenas ser.

Desejava ficar bonita para ele. Desejava, também, tantas coisas. As possibilidades logo se tornaram (in)finitas. A sua total escravidão havia sido confirmada.

O ponteiro girava às 18h e, metodicamente, Clarice sentava na cadeira velha de madeira. Cruzava as pernas. Suspirava. Os olhos perdidos delineavam cada borda da mesa ao seu lado. Procurava o quê? Ele, o cigarro. Ele que fora palco de tantas misturas, mas que continuou intacto. Acendeu com um fosforo, pois seu isqueiro sumira na noite anterior. O cheiro da pólvora queimando invadiu-lhe os sentidos. Pensou que gostaria de ser como o fogo: vivo, quente e, com um sopro poder deixar a “vida”, apagando-se por completo. Cada cinza depositada no cinzeiro representava uma parte sua sendo diluída pela angustia. O pé fazia um ritmo contínuo. Os dedos contavam seu próprio tempo ao baterem na mesa. A fumaça era sua segurança... mais tempo ou menos tempo. Lembrou-se dos segundos virando segundos novamente.

A porta aberta diminuía a distancia de Carlos: ele viria correndo para seus braços. Quantas horas passara fantasiando. Criando personagens e estórias para alimentar-se, porque a fome, a fome simplesmente não cessava.

Às 18:30h os passos de Carlos tornaram-se realidade. Ela mostrou-se, linda, pronta à entrega. Deu o maior sorriso, apagando o terceiro cigarro.

O ranger na madeira denunciou a entrada. Clarice postou-se à frente de Carlos, que, olhando sem notar, encaminhou-se para o quarto.

Lágrimas descontroladas desciam no rosto de Clarice. O amor gasto era fantasia. Uma criação despedaçada.

Decidida, entrou no quarto. Carlos acabara de lavar o rosto. Clarice aproximou-se e, sem uma única palavra despejada, arrancou-lhe o coração, desejando, agora, que este em sua mão talvez a amasse verdadeiramente.

Mariana Rufato
Enviado por Mariana Rufato em 06/11/2013
Código do texto: T4559684
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