...Saboreando a vida!
 
Recorda aquele natal em que acabará de reformar a casa em que vivia e enfim, através do fruto do seu trabalho pode então ter a cozinha que tanto sonhava. Bancadas de granito e armários espaçosos debaixo delas com portas de correr adaptadas conforme as suas condições financeiras. Mas, tudo ficou lindo! Era assim que ela via a conquista da cozinha dos seus sonhos. Nada de luxo, mas tudo poderia, agora, ficar organizado e ela amava aquela possibilidade.

Alguns anos antes, quando se mudou para aquela casa, não havia sequer móveis para colocar ali. E, após voltar de uma viagem em que fora prestar um concurso público chegou àquela casa e foi organizá-la sozinha vez que a mudança para lá  havia sido feita sem sua presença.

Não havia, àquela época, nenhum móvel que pudesse servir para colocar os utensílios de cozinha, assim como não havia mesa, não havia cadeiras. Apenas um fogão e uma geladeira naquela cozinha espaçosa, porém sem nenhum outro móvel para preencher aquele espaço.

No fundo da casa havia uma obra inacabada que seria, talvez, um dia a lavanderia e área de apoio externo. A primeira vista era apenas um monte de paredes de tijolos, entulhos de materiais de construção que não foram usados e muita terra vermelha para ser pisada já que não havia também contrapiso naquele chão.

Haviam deixado lá uma espécie de caixote - que serviria talvez para fazer alguma coluna de concreto e cujo cumprimento era em torno de um metro e meio - de madeira - forte e resistente – e por isso pesava muito. Foi quando teve a ideia de transportar aquele objeto para a cozinha e improvisar um móvel para colocar os seus utensílios domésticos.

Não conseguia imaginar agora como teve forças para carregá-lo. E, em alguns momentos durante a empreitada pensou em desistir de fazê-la já que suas forças eram inferiores àquela empreitada. Porém, não desistiu. Levou mais tempo do que pensou para levar o caixote para dentro daquela cozinha, mas enfim, conseguiu. Recorda, ainda, que ao final daquele primeiro dia de organização da mudança estava extremamente cansada, porém feliz com o resultado daquela improvisação.

Ela era uma mulher jovem e cheia de sonhos e disposta a qualquer esforço a ter o seu tão sonhado lar. Vinha de uma família que lhe ofertou excelentes condições de vida e não imaginará que teria de fazer tantas ‘adaptações’ para organizar o seu lar, mas pagaria o preço. É claro que sofria por estar naquelas condições, mas a força de acreditar no ‘seu tão sonhado lar’ lhe fazia superar qualquer barreira.

Mais tarde, uma amiga vendo a improvisação da sua cozinha ofereceu-lhe um ‘jogo de cozinha usada’ que continha um armário com quadro compartimentos e uma mesa com três tamboretes. Ela foi ao céu!  Porém não tinha como pagá-los e sabia que não poderia contar com a ‘benevolência’ do parceiro.

Nesta época não tinha emprego e nenhuma perspectiva de encontrar algum. Estava literalmente a mercê da ‘boa vontade’ daquele que escolhera como companheiro e que definitivamente, não escondia que não desejava fazer parte do seu projeto de ‘lar doce lar’. Embora ela não conseguisse enxergar isto ou não quisesse render-se a obviedade daquela realidade ela tinha sonhos - teimosos sonhos - que lhe faziam acreditar que valia a pena insistir em realizá-los.

De vez enquanto seus pais davam-lhe algum dinheiro – já que ela não tinha nenhum – e, então comprou aquele ‘jogo de cozinha usado’ – ofertado por sua amiga – confiando que conseguiria pagá-lo com aquele dinheiro tão incerto, porém esperado. E, conseguiu. Desfez-se do caixote e pode ter uma cozinha mais descente. Estava feliz com a conquista, embora faltassem tantas outras questões a serem desvendadas e quem sabe conquistadas.

Foi seguindo sua vida - movida pela esperança teimosa de seus sonhos – que não evitavam as lágrimas copiosas e amargas de desespero, solidão e incerteza quanto ao futuro. Futuro que, aliás, teria um tempo de duração determinado e ela sequer imaginava isto.

Havia naquela mulher uma insistente ‘rebeldia’ de acreditar que ‘os seus sonhos de amor eterno’ eram tão especiais e essenciais - e que por eles julgava estar no caminho certo - embora tudo lhe indicasse ser exatamente o contrário do que ela tanto desejava – cegada por aquele sonho não conseguia ver o óbvio: ‘o amor deve ser uma via de mão dupla quando se deseja construir uma família’.

Porém o seu modo de amar era tão intenso – e ao mesmo tempo tão ‘carente’ - que ela se imaginava capaz de fazê-lo nascer no coração daquele que escolherá para ser o seu companheiro - impondo-se a ‘obrigação doentia’ de fazê-lo amá-la sem considerar que o resultado poderia ser diferente do que sonhava. A intensidade do amor por vezes pode cegar!

A cegueira, no entanto, não lhe impediu de buscar ajuda profissional e por vários anos frequentou consultórios terapêuticos na esperança de desvendar os caminhos que lhe confirmassem a felicidade suprema do ‘lar doce lar’.

Concordava, inclusive que ‘foi importante ter se submetido aquele processo terapêutico’, pois aprendeu a aceitar que ‘o amor não deveria ser um sentimento imposto e sujeito a obrigatoriedade de amar e ser amado na mesma medida que se ama’.

Embora não lhe tivesse sido agradável chegar a tal conclusão  -  vez que  a mesma implicava numa revisão total de todas as suas atitudes, crenças, valores e sonhos - tão ardorosos e dolorosamente cultivados e alimentados pelo desespero da carência que nela habitava–era-lhe impossível negá-la naquela altura de sua vida.

Sabia também que  admitir tal condição não seria, necessariamente, o primeiro passo que viria lhe indicar qual seria o próximo (passo) a ser dado para ‘consertar’ o seu modo intensamente ‘rebelde’ de amar, porém, intuia em seu íntimo que representaria um bom avanço capaz, inclusive, de ‘retirar a venda dos seus olhos’ e com isto perceber que aquela ‘cegueira’ talvez não fosse irreversível.

Voltou a enxergar com menos intensidade, porém, com mais coerência, quando admitiu que ‘aquela rebeldia sentimental era, antes, fruto de sua carência existencial e não daquele que ela julgava ter a obrigação de fazê-lo lhe amar’.  

E, ainda que este seu novo modo de encarar a realidade não evitasse que seu peito sangrasse quase até a morte - e por vezes incontáveis ela confessou a si mesma que a desejava – rendeu-se à certeza fria, porém real, de que ‘não há garantias de que seremos amados - ainda que saibamos termos sidos capazes de amar com a pureza e verdade de nossa rebeldia - tão convincente e cheia de boas intenções’!

Neste processo de autoconhecimento algumas perguntas lhe surgiram na mente insistentemente e foi importante tê-las admitido ainda que não trouxessem uma resposta reconfortante ou capaz de gerar uma nova maneira de adaptar seus sentimentos tão perturbadoramente confusos.

- Seria possível seguir sua vida carregando aquele ‘buraco negro’ recheado de tantas carências que habitavam dentro de si?

 - Deveria aprofundar-se na origem daquele sentimento tão perverso e conflitante para, quem sabe, amenizar a agonia de senti-los?

- Quantos anos ela se sujeitaria a ficar deitada num divã em busca de porquês e de senões que habitavam no seu passado e que por mais que pudessem lançar luzes de entendimento naquele seu estado de alma tão perturbador talvez, não se apagassem os estragos que já haviam sido consumados em seu interior?

Tais perguntas lhe ensinaram a perceber que o ‘caos interior’ pode ser administrado, ainda que ele não seja tão adequadamente fácil de ser suportado e possa fugir do controle, por vezes.

Aprendeu também - a duras penas - que o ‘buraco negro’ nunca seria preenchido por ‘aquela luz verde azulada e curativa’ que alguns acreditavam serem reais. Mas, ele não lhe impedia de enxergar outros caminhos, ainda que estive ‘fadada’ a seguir com a certeza de sua existência, como componente indissociável de sua vida.

Tendo consciência de que algo lá atrás – no seu passado remoto – contribuiu para a existência daquela ‘carência tão sufocante’ trouxe-lhe a serenidade de compreender que ‘’as dores emocionais não deveriam levar as pessoas a buscarem ‘culpados’; mas antes, seria mais apropriado colocar-se no lugar do outro e se perguntar se teria feito diferente’’.

- Talvez, quem as tenha provocado – conscientes ou não - não venham a se submeter a essa troca de papéis ou admitir um exame de consciência que os aproxime da extensão da dor que tanto fragilizou e fragiliza o outro. Ela refletia.

- E, é verdade também, posto ser natural, que em muitos momentos não se conseguirá evitar imaginar que tal atitude poderia representar a ‘nossa tábua de salvação eterna’ e por isso, o insistente desejo de esperar por ela em algum momento voltará a nos assombrar. Concluía ela.

- Mas, qual o sentido de nossa existência se nos permitirmos ficar a mercê de gestos que poderão nunca ocorrer? Ou mesmo que aconteçam podem não nos dar a garantia de que o ‘buraco negro’ possa ser fechado e que a dor suma e se consuma por si só como num passe de mágica?

 Ela se questionava para, então concluir que ‘se há que se dar algum sentido á carência existencial – seja provocada ou inata – então que ele possa ser para nos direcionar a perceber que ‘nada neste mundo é obra do acaso’. E, prosseguia refletindo:

- Ainda, que esta percepção não seja a ‘resposta idealizada’ que tanto desejamos, ela lança luzes - talvez ‘violetas’ - nos ‘buracos negros’ que carregamos – sugerindo um tom menos perverso a nossa identidade única - tornando-a mais real a nós mesmos.

E, este último pensamento lhe trouxe a serenidade de compreender que aquela ‘cozinha idealizada’ nos seus sonhos tornou-se real pela sua rebeldia de insistir em crer que amar sempre valerá a pena, ainda que a carência - por vezes - impeça de enxergar todas as cores que vida lança sobre todos nós. Foi também naquela cozinha que ela aprendeu a temperar e saborear a sua vida e os seus sonhos, mesmo que as lembranças, por vezes, ainda possam  produzir-lhe sensações meio estranhas como a fome e a sede de imaginar que o amor deveria se consumar e nos consumir sempre!
                                                           
Liliane Prado
(Exercício Literário)

 
 
 



 


 
Liliane Prado
Enviado por Liliane Prado em 16/12/2013
Reeditado em 18/12/2013
Código do texto: T4613902
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