COUP DE FOUDRE
 


O coup de foudre (expressão francesa) é aquele clique que às vezes se sente e nos impressiona fortemente quando surge alguém que nunca antes tínhamos visto e que nos deixa uma recordação inesquecível. Para Alberoni, é um fascínio súbito, uma revelação repentina de beleza, ou do carácter extraordinário da outra pessoa.



O navio havia partido de Veneza há três dias e deveria aportar a Santorini na manhã seguinte.
Ela agasalhou-se na chaise-longue que ladeava um comprido conjunto de outras onde os viajantes, seus companheiros de jornada, se deliciavam com esse sol primaveril que aquecia o corpo e dava cor à pele.
Pousou o livro e olhou as muitas pessoas que passeavam no convés desse imponente navio, o MSC Fantasia, majestoso pelos seus treze pisos e que podia transportar mais de quatro mil passageiros.
A filha convencera-a a ir no cruzeiro, talvez porque seria a sua última viagem, o médico dera-lhe pouco tempo de vida, estava nas mãos de Deus. Uma leucemia minava-a há três anos e agora vivia de recordações. Sentimentalmente sozinha desde que enviuvara, dedicara-se à filha e à neta, acompanhando o seu crescimento... A filha era muito amiga dela, em contraponto ao genro, que esperava ansioso pela sua morte para lhe ficar com os bens. Ela por amor, ele certamente com sacrifício, acompanhavam-na. Não tinham nada a perder, ela é que pagara as viagens aos três. Desgostosa, afastou essas recordações da sua mente e olhou para os seus vizinhos. Do lado direito estava uma velhota como ela, agasalhada e dormitando. Do lado esquerdo, um homem de cabelo grisalho, de boa aparência, também apanhava sol. Nesse momento bebia algo quente, possivelmente um chá, que agradeceu ao empregado que lho levou.
Estava sozinha, após o almoço eles tinham ficado na cabina a dormir a sesta, preguiçando. Ela, pelo contrário, sempre se deitara e levantara cedo e de dia nunca dormia, os bons hábitos eram para si sagrados.
De súbito mexeu-se na cadeira e o cobertor xadrez que sempre a acompanhava escorregou para o chão do convés.
O homem levantou-se e prestável, apanhou-lho, estendendo-o com um gesto delicado. Ela pegou na ponta e tentou agasalhar-se, mas foi desastrada e o agasalho voltou a cair. Ele voltou a segurá-lo e então, como que pedindo autorização com o olhar, estendeu o cobertor sobre ela, esticando as pontas e envolvendo-a com cuidado.
O toque das mãos dele fez com que ela sentisse um arrepio na coluna vertebral, mas era uma sensação boa, familiar. Olhou-o com mais atenção e ficou deslumbrada com as feições agradáveis e o ar sério que apresentava. Havia muito nele a atraí-la, a começar pela voz quente, quase um sussurro perto do ouvido.
Ele puxou a cadeira para mais perto e jovialmente iniciaram uma longa conversa, que se prolongou até a filha surgir ao seu lado, olhando curiosa para o homem que falava animadamente com sua mãe.
À noite, no restaurante principal, ela procurou-o desesperadamente com o olhar... O seu coração batia descompassado, há muitos anos que não se sentia assim. Não o vislumbrou, possivelmente teria ido tomar a refeição a outro dos restaurantes disponíveis.
A filha olhara-a interrogativa quando a vira pedir o vestido de renda azul, o seu melhor vestido, que ela trouxera sem nenhuma vontade de usar. Ajudara a vesti-lo e admirara-se com o ar fresco que a mãe apresentava. Até se maquilhara, coisa que há anos descurava. Sorriu... Havia por ali passarinho, decerto algo fizera com que a progenitora tivesse ficado assim de repente. Notou a ansiedade da mãe olhando ao redor, certamente procurando o tal homem que estivera toda a tarde a falar com ela. Que diabo, ela ficara mesmo apanhadinha... E isso surpreendeu-a, pois desde que seu pai morrera nunca a vira a olhar para outro homem. Sabia que ela não era, de modo algum, namoradeira.
Sentiu a mãe agastada, desapontada e não se surpreendeu por ela lhe pedir que a levasse ao quarto.
Quando esperavam junto a um dos elevadores a vez para descerem até às suas cabines, deram de caras com o tal homem, trajando elegantemente. Parecia mais magro e pálido, doente. Não entraram no elevador, ficando cá fora na conversa.
A mãe olhava para ele com ansiedade, envolvendo-o carinhosamente com o olhar. Ele desculpou-se por não ter ido jantar, sentira-se mal, tinha subido apenas para beber um chá. Confidenciou então que estava muito doente, que essa seria certamente a sua última viagem.
A velha senhora olhou-o surpreendida, falaram toda a tarde e não lhe havia dito nada! E arrepiou-se de novo, desta vez por causa das coincidências.
Ele percebeu o olhar de censura dela e fixou o chão, luxuosamente alcatifado, como se fosse um menino apanhado em falta.
A filha também olhou para ele mas sentiu de imediato uma misto de carinho e compaixão. Surpreendeu-se por corar. Aquele homem impressionava mesmo, tinha um carisma irresistível. Entendia agora o que a mãe vira nele. O seu marido, pelo contrário, apenas vivia para o jogo, escapulira-se para o casino, logo que terminou de comer. Derretia todo o dinheiro nesse vício. Uma vida inteira de repressão deixara-a insatisfeita, já não o amava, apenas mantinha as aparências por causa da família de ambos.
Acabaram por se despedir após descerem no elevador, ele ficava no deck abaixo do delas. Combinaram encontrar-se de manhã, para tomarem o pequeno almoço.
De manhã, a mãe desceu visivelmente ansiosa, quase corria para chegar à sala onde seria servida a primeira refeição da manhã, antes de visitarem Santorini. O genro ficara na cama a dormir, recompondo-se de mais uma noite de perdas significativas no jogo.
Logo que entraram no enorme salão o adjunto do comandante veio ao seu encontro e comunicou-lhes que o senhor que estivera na véspera a falar com elas se sentira mal e fora levado de urgência para o hospital, inanimado. Na cabina dele encontraram uma documentos onde se referiam os tratamentos a que estava a ser sujeito e respetiva medicação, pois sofria de um tumor cerebral inoperável.
A notícia foi um choque para a velha senhora, se não fosse a filha teria tombado no chão. Ambos a seguraram e sentaram cuidadosamente numa das poltronas. Então a filha sentiu os olhos rasos de água quando viu a mãe chorar silenciosamente, o rosto voltado para as amplas janelas, de onde se via o casario em escadinha da típica localidade grega.