À deriva de nós dois

A cabrocha de pele salgada murmurinha, quase rompendo a linha entre o silêncio e o suspiro, singelos elogios ao pé do meu ouvido enquanto meto-lhe sob as estrelas alumiando os cantos mais obscuros dos nossos ávidos corpos. Levo-me, desmareado, ao encontro da tempestade que as curvas dessa mulata proporcionam aos meus frágeis sentimentos para com o prazer e os contentamentos que o sucedem; afogo-me nos seus seios fartos e diante à magnitude de seus quadris, desabrocho as dores irremediáveis de um passado amargo, feito jiló - para os incapazes de suportar o gosto acre de um legume, encarar os fatos mal esquecidos nos tempos de outrora, é um fardo descomunal, e dá azia.

Inflando o peito em direção aos olhos da Lua, desvio-me dos seus olhares defronte o meu coração que bate dentro desta caixa enfunada. Sempre que ouço a minha carne esbravejando-se contra a pele sofrida de uma meretriz uma aflição aguda toca-me os lábios trêmulos, e conseguinte aos meus delírios consumados entre as pernas abertas da Fulana de Tal, o enorme queijo suspendido no céu negro me faz recordar que há longas estações anteriores a este inverno caloroso ele permanecia naquele mesmo local, no alto da minha insignificância comparada a sua beldade grandeza, encarando-me com este seu desdenho em relação ao meu amor próprio.

Houve um momento em que os violões dos pretos marinheiros mais antigos me enfadavam na alma bonitas canções e eu as cantava em dedicação a minha então eterna amante, a Senhora do Silêncio. Por baixo da aba desgastada do meu chapéu, eu notava-a estendida no infinito escuro, gracejando, com um largo sorriso na cara, as melodias que ecoavam da minha boca, abafadas pela minha barba exigindo respeito. Todavia, os mares não cessaram suas correntezas, e os navios embarcaram sob as nossas terras mas brevemente tomaram seus rumos distantes de nossas carências de toque, até que a ausência da minha amada enquanto nascia a manhã começou a me abrasar as sensações do afeto que eu havia criado por ela.

Certa madrugada, recluso de sua presença entre areia e canoas quebradas, eu aguardei que o dia me abrandasse o rosto com o seu gosto de esperança, somente para descobrir, finalmente, o motivo pelo qual a Lua, o meu amor, me abandonava sempre que a luz da alvorada diluía-se com o abismo da noite.

Chegada a hora esperada, e convicto de que tudo não passava de um sonho do qual eu acordaria, detive-me, pasmado, quando de repente enfretei-a, sem que ela mesma me percebesse presente naquele crepúsculo frio e insensível, encontrando-se sorrateiramente e ainda olhando de rabo de olho para tudo o que havia atrás de si, temerosa, com os incríveis e formosos raios de Sol. Enfim. Era verdade. As suas visitas noturnas na janela do meu barraco violadas por sua traição, deixando-me ao ermo, incapaz de compreender tamanha falta, pintava, portanto, sobre a minha realidade uma triste obra de arte inapreciável.

Absorto nos meus pensamentos confusos sobre tudo o que acabara de intercorrer ante as lamúrias que a vida me proporcionara inesperadamente, mastiguei os olhos com as mãos calejadas e sentei à beira do oceano estendendo-se aos horizontes para além das tranças de Iemanjá, onde o meu barco jamais alcançaria, e pude ver, lá por estes recantos em que o meu corpo desconhece, a traidora seguindo doravante, de mãos dadas com as luzes do amanhecer, como se após o início do dia, a sombra da noite nunca mais retornasse ao encontro dos meus sofrimentos agora aquecidos pelo afago das putas.

NietzscheCywisnki
Enviado por NietzscheCywisnki em 26/01/2014
Código do texto: T4665675
Classificação de conteúdo: seguro