Cidade de Vidro - Parte 1: Não Me Deixe Entender

Consequências... Algo em que não pensamos muito antes de as coisas irem por água abaixo. Ou melhor, corda abaixo.

Não sei por que fomos poupados. Eu, principalmente, não merecia. Mas fui. No final, foi eu quem sobreviveu. Eu e Wilhelm. E foi ele quem disse que não suportaria viver sem sua metade. No final, nós dois tivemos que aprender a viver apenas pela metade. Aprendemos a estar somente meio vivos.

Olhando para o céu , eu me lembro de Niclauss. Aposto que Wilhelm também se lembra de Noam.

“Noam significa amizade, ou doçura.”, disse-me ele uma vez. Sua voz era grossa e levemente rouca, e eu gostava do subir e descer de seu pomo-de-adão na garganta. Ele como um todo sempre me lembrou um pássaro. Talvez, quando ele se foi, ele tenha realmente se tornado um pássaro. O que mais desejo é que ele voa, bem alto, acima de mim, livre, mas esperando por Wilhelm sempre.

Pergunto-me se Niclauss se lembra de mim.

Acho que sim. Eu jamais o esqueci. Ele jamais me esqueceria.

Antes que eu chegue ao fim, tenho que lhes contar o começo. Se você é do tipo que não gosta de histórias sobre amor, e sobre como ele se manifesta em pessoas tão diferentes e de formas tão incomuns, não continue lendo. Mas se você sabe o que é amar alguém, e como é a certeza de que você daria sua vida para salvar a dessa pessoa, continue lendo. Só não espere um “felizes para sempre”.

Não diga que eu não avisei.

***

Esta tarde está cinzenta, e o ar está úmido. Há algo de estranho no ar, e é como se houvesse eletricidade em minha boca. Fecho meus olhos e espero que o vento sopre em meu rosto, mas ele está parado e nem tenta bagunçar meu cabelo. Respiro fundo. Meus pulmões não gostam de como o ar está, mas ainda assim, eu insisto em respirar. Toco minhas bochechas com as costas das mãos. Quente contra o frio.

Saio de casa sem meu agasalho. De repente quero sentir gelo em meus dedos, em minha pele, mas está morno. Caminho pela rua de concreto, e tudo está com uma leve camada de chuva por cima. O cheiro no ar é gostoso, uma mistura de pães e chuva.

Tudo parece cinzento, e no caminho para a escola eu imagino como seria se o mundo tivesse cores, e não só o cinza chato das roupas que usamos – uniforme para todos –, do verde escuro dos uniformes militares, do dourado reluzente de seus emblemas.

Dentro de minha escola, cumprimento alunos e professores. Todos eles me conhecem, de um modo geral, e talvez o motivo para isso seja eu ser filho de um dos principais tenentes-generais do exército de nosso país.

Entro em minha sala de aula, e cumprimento minha amiga/quase namorada Victoria, e ela beija minha bochecha. Seu toque faz cócegas em minha bochecha, e enche meu coração de promessas e esperança. Este país é um lugar péssimo, mas, quem sabe, bem no fundo pode haver beleza no horror.

- Bom dia, senhor futuro militar – diz ela, e dá uma risadinha, enquanto eu abraço sua cintura. As pessoas a nosso redor riem também, e alguns discordam quando eu a beijo.

- Você sabe que eu não pretendo seguir a carreira de meu pai – digo, e é verdade. Sim, uma das coisas que meu pai faz é proteger esse país de nossos inimigos, com certeza, mas vai muito mais além disso. Eu não quero fazer parte desta ditadura.

- Mas devia – diz ela, e dá uma risadinha. Mas há algo em seu sorriso. Há algo estranho. Não consigo identificar o que antes que ela vire rosto e me solte, ao mesmo tempo em que o professor chega na sala de aula.

Ficamos meia aula de mãos dadas, por debaixo da carteira. Mas há um momento em que ela me solta. Eu olho para ela, e ela parece preocupada. Ela escreve algo em um pedaço de papel, e o aperta em minha mão. Seu toque parece frio, e arrepia minha pele. Quero abrir agora mesmo, e ler o que ela disse, mas me impeço. Discretamente, leio o papel por debaixo da mesa.

Tem algo que eu preciso te contar. Estou guardando um segredo. Preciso te contar. Mas não sei como. Depois da aula, você saberá de tudo... O importante é que eu te amo, e isso não mudará.

***

Eu a amo. Ou amava, quem sabe. E talvez esse seja o porquê de eu ficar tão triste quando ela morre. Eu jamais cheguei a saber seu segredo.

É meu pai quem a executa. Estou longe demais do local da execução para saber o que ele diz sobre ela, mas posso ouvi-lo gritando. O que ele está dizendo?

***

No dia seguinte, ninguém fala nada na escola. Literalmente. Todos ficamos em silêncio. Sinto-me febril. Quero gritar ou chorar, mas não consigo. Não quero falar.

O dia esfria muito, e uma chuva fina começa a cair. Como eu queria, ela me encharca e corta minha pele. O vento sopra, e faz barulho em minha janela.

Não há como entender. Perguntar o porquê é ridículo, e me faz querer matar meu pai.

Quando a pessoa que supostamente te ama tira de você alguém que você ama, essa pessoa realmente te ama? Tento convencer a mim mesmo de que esse é o trabalho de meu pai, de que ele não foi obrigado a fazer o que fez. Mas isso não responde á pergunta. O que Victoria poderia ter feito de tão grave para ser executada em público? Meu estômago se revira, e quero vomitar.

Estou guardando um segredo, disse-me ela. Poderia este segredo estar diretamente relacionado à sua morte?

***

Um aluno novo entra na sala. Reparo em seu rosto. Sua pele é mais escura que a minha – que a de quase todos nós – e seu cabelo é preto e bagunçado. Mas estou entorpecido demais para prestar atenção a isso.

***

- Pai? – chamo, quando estou em seu posto de trabalho. Ele examina alguns mapas, ou sei lá o que, provavelmente estudando estratégias ou algo assim. Eu preciso lhe perguntar, mas não sei se devo. Eu quero mesmo saber a verdade? – Quais... Quais são os principais motivos para alguém ser executado?

Meu pai me olha e aperta os olhos. Sob a luz quente da lâmpada acima de nós, posso ver a cor de seus olhos. Meu pai é um exemplo de alemão. Seus olhos são azuis, sua pele é clara e seu cabelo é loiro. Somos fisicamente parecidos, mas não consigo me enxergar como uma versão mais nova dele. E como eu imaginava, ele não percebeu que eu me referia à Victoria.

- Por que a pergunta, Jacobus?

Balanço a cabeça para ele. Não quero que ele saiba de quem estou falando.

- Só estou... curioso – e volto a folhear o livro em minhas mãos. O título diz Mein Kampf, e a mostra a foto de um homem feio e com bigode estranho. Ele é Adolf Hitler, um antigo ícone do Socialismo Nacional na Alemanha. É engraçado pensar que, quase cem anos depois, esse país não mudou muito. O nazismo não é ativo, mas é implícito.

Não olho para meu pai, mas sei que ele sorri para mim.

- É ótimo ver que você está começando a se interessar por isso, filho. Bem, deixe-me explicar... – começa ele.

Depois de dez minutos de discurso, sobre como o nazismo foi o precursor para que a Alemanha se reerguesse de cinzas, e sobre como o mesmo conceito aplicado a nosso país – com algumas exceções obvias – o tornou uma das mais fortes potencias mundiais. Enfim ele chega á parte que eu quero saber. Entretanto, ele deixa isso subentendido, e não me fala diretamente os motivos. “Aqueles que descumprem nossas leis mais prementes tem de ser exterminados”, diz ele.

Mas que lei pode Victoria ter descumprido para ser morta, da maneira como foi?

Continua...

Bruno R Montozo
Enviado por Bruno R Montozo em 03/07/2014
Código do texto: T4868823
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