Cidade de Vidro - Parte 3: Não Me Deixe Ver A Verdade

Me pergunto como acabei aqui. Ou melhor, não me pergunto. Não importa. O importante é que isso me faz pensar menos em Victoria, e consequentemente menos nas leis horríveis e assustadores que eu li no livros de meu pai.

- Sua vez de responder, Jacobus – diz Wilhelm. – Quando foi fundado o partido liderado pelo austríaco Adolf Hitler?

- Qual é? Essa pergunta não vai cair na prova – respondo. A verdade é que eu não me lembro quando foi.

- Ele tá certo – diz Niclauss. – Estamos no ultimo ano. Por que iam perguntar tamanha babaquice?

- Nunca se sabe – diz Noam, e aperta os olhos ameaçadoramente. Todos caímos na gargalhada. A verdade é que Noam é engraçado quanto tentar ser ameaçador.

- Jacobus, telefone para você! – grita uma das coordenadoras da escola para mim. Levanto-me e murmuro um “já volto” para os três garotos sentados em circulo.

É estranho que eu receba ligações de meu pai durante o intervalo na escola, pois é quase o mesmo horário em que ele almoça – e digamos que meu pai não é exatamente um fã de pular refeições. Deve ser algo realmente importante, para falar a verdade. E enquanto caminho até a sala da diretora, onde espera por mim o telefone, milhares de dúvidas passam por minha cabeça. E se ele descobriu que eu mexi em seus livros? E se for algo relacionado à minha amizade com Wilhelm, Noam e Niclauss? Pode ser algo relacionado à prematura morte de Victoria?

- Alô? – É mais uma pergunta que uma resposta. O fato é que eu espero – ao mesmo quero – que meu pai não esteja do outro lado da linha. Mas é inevitável.

- Vou ser rápido – diz ele. – Lembra-se de Kornelius?

- Lembro, sim, pai.

- Bem, ele também está precisando de uma ajuda para arrumar os livros que ganhou quando mudou de patente, e eu disse a ele que você pode ajudar. – Sua voz é impassível e ele fala sério. Não é um pedido. É simplesmente uma afirmação.

Faz alguns dias, meu pai parece ter começado a desenvolver uma amizade muito grande com Kornelius; desde almoçar juntos, visitas de Kornelius á minha casa, troca de livros que falam sobre o nazismo, e incontáveis noites passadas em claro estudando estratégias de guerra. Ao que tudo indica, Kornelius não deveria poder estar discutindo estratégias com meu pai, pois sua patente não é alta o suficiente. Entretanto, meu pai parece não ter entendido isso.

Em minha opinião, Kornelius é somente um homem frio. Ele parece ser feito de pedra quando fala com meu pai sobre maneiras mais eficiente de execução, sobre as armas mais potentes para matar um combatente em guerra, e sobre a Guerra.

- Que horas tenho de estar lá? – pergunto a meu pai, e minha voz retumba dentro do aparelho antigo em minha mão.

- Você deve ir para sua casa assim que sair da escola – responde meu pai, e desliga o telefone antes que eu possa dizer “tudo bem”.

A sala de Kornelius é consideravelmente melhor que a do meu pai – talvez por falta de tempo para ser estragada. As janelas ainda não foram cobertas, então, além da luz elétrica da sala, há a presença da luz natural. Não há cheiros ruins aqui, só um leve odor de papel e tinta. Entretanto, a bagunça aqui é dobrada, ainda maior que a da sala de meu pai. Há livros e papeis por todo o chão, e encima de toda a mesa pessoal de Kornelius.

- Uau – murmuro, ao ver a situação, e arregalo os olhos. Eu imaginava que não haveria pessoa mais desorganizada que meu pai no mundo todo, mas acabo de constatar que eu estava errado. – Hum, então, por onde começamos? – pergunto a ele.

- Pode começar colocando esses livros na estante – diz ele, e volta a focar sua atenção em um papel em suas mãos.

Aperto os olhos, mas começo a trabalhar imediatamente.

Depois de algum tempo de silencio, ouço Kornelius murmurando alguma coisa sobre o Oponente, e sobre perder... Não consigo ficar com a língua dentro da boca, e acabo perguntando a ele em voz alta sobre o que ele está falando. Ele finge que não sabe sobre o que estou falando.

- Você falou alguma coisa sobre perder!... Sobre o Oponente e sobre perder. O que você quis dizer com isso?

- Está ouvindo coisas, garoto – diz ele, e volta ao jornal, o tal papel que notei agora a pouco.

- Não, não estou não é a primeira vez que eu ouço sobre o Oponente, e não é a primeira vez que ouço as palavras “perder para” relacionadas á ele.

O Oponente é algum país inimigo que está tentando veementemente entrar em nosso país á força e tomar o controle. Não estudamos sobre o Oponente na escola, então não tenho ideia de qual o país por trás do nome, mas sei que ele existe por meio de meu pai – digo, por meio de minha própria curiosidade. Alguns meses atrás, enquanto eu estava do lado de fora do escritório do meu pai, esperando por ele para ir para casa, acabei – quase sem querer – ouvindo ele e um de seus superiores conversando – ou melhor, discutindo – sobre a guerra contra o Oponente. Meu pai estava claramente exaltado, e quase gritava com seu superior. Eu não consegui entender a conversa toda, porque a porta estava fechada, e eu só ouvia murmúrios. Entretanto, várias vezes ouvia as palavras “perder” e “Oponente” na mesma frase. E meu pai tem ficado cada vez mais estressado com o trabalho, e há uma tensão estranha no ar no exército.

- Não estamos perdendo para o Oponente – esclarece Kornelius. Mas seu rosto é sério e duro. – Cale sua boca e trabalhe – cospe ele. Contra minha vontade, continuo a arrumar os livros na prateleira.

Quando saio do posto de trabalho de Kornelius já é noite. Uma finíssima chuva cai, e é tão infinitésima que nem me preocupo em pegar meu guarda-chuva. A lua aparece timidamente no céu, quase completamente escondida pelas nuvens.

Mostro meu crachá para um dos seguranças que fica no portão – que é nada mais nada menos que um pedaço de plástico que diz que sou filho de um tenente – e eles me deixam passar. Do lado de fora, não espero um taxi. Faço o caminho até minha casa a pé.

Há alguém encostado no bordo em frente á minha casa. Sua silhueta é pequena e negra, então deduzo que a pessoa usa uma capa de chuva de cor escura. Quando me aproximo o suficiente, posso ver claramente quem é: Sophitia, uma das melhores amigas de Victoria. Ela olha para mim fixamente, quando estou á pouca distancia dela, ela vem a meu encontro.

- Jacob – cumprimenta ela, e acena para mim com a cabeça. Não consigo deixar de notar o quanto ela parece abatido. Sobre seus olhos há enormes manchas negras, olheiras. Seus olhos mesmo estão avermelhados.

- Você está bem, Sophitia? – pergunto, e por mais que ela diga que sim, sei que a resposta é não.

- Ouça... – começa ela. Posso ver claramente que ela está medindo as palavras, procurando as certas. – Você por acaso ainda tem aquele bilhete que Victoria te deu?

Como ela descobriu sobre o bilhete?! Achei que fosse algo que somente Victoria sabia que tinha feito, ou que fosse um segredo nosso. Como pode Sophitia saber sobre isso?!

- Não... Eu... me livrei dele. – Me arrependo de ter dito assim que as palavras saem da minha boca. Eu deveria ter mentido. Não sei por que, exatamente, mas sei que seria a resposta mais certa.

- A Vic... digo, Victoria, chegou a te contar o que ela tinha para contar?

Não, porque para inicio de conversa, você não deveria poder saber disso. E não, não houve tempo, porque ela foi morta antes de poder me contar.

- Não – respondo.

- Sei... Você quer saber o que ela tinha para te contar?

Não, não quero! Porque você não pode saber disso porque ela morreu antes de contar! Pelo menos, antes de contar para mim.

- Quero... – respondo, mas minha voz mal passa de um sussurro.

Mas ao invés de me responder, ela me entrega uma carta. A caligrafia é a Victoria, mas não sou o destinatário.

Eu te amo, Sophitia. Eu te amo para sempre. Talvez eu não tenha tempo para dizer isso para você, porque eles com certeza virão me pegar. Se eu não puder, significa que também não pude dizer a Jacobus o que tenho para dizer. Quero que você diga a ela o que não pude dizer: eu sou gay. Não podemos mais ficar juntos porque eu não o amo como eu deveria. Pois eu te amo, Sophitia. Te amo para sempre. Não se esqueça de mim.

Não consigo dizer nada. Apenas espero que o bolo em minha garganta se dissipe. Mas não vai.

- Ela te deu mais alguma coisa? – pergunto, minha voz completamente estrangulada.

- Um poema. Quer ler? – pergunta. Eu quero. Só estendo minha mão, e ela me entrega um pedaço de papel. Não é a caligrafia de Victoria.

A velhice deve arder e delirar ao fim do seu dia.

Revolte-se, revolte-se contra o apagar da luz.

Embora os sábios, ao morrer, saibam que a escuridão é o certo

Porque suas palavras não provocaram centelhas, eles

Não entraram docemente naquela boa noite.

Os bons que, após o último aceno, choram pela alvura

Com que seus frágeis atos bailariam numa verde baía,

Os loucos que abraçaram e louvaram o sol na etérea altura,

E aprendem, tarde demais, como o afligiram em sua travessia,

Não entraram docemente naquela boa noite.

Não entre docemente naquela boa noite

Revolte-se, revolte-se contra o apagar da luz.

- Você a amava? – pergunto, embora já saiba a resposta. Ela concorda com a cabeça.

Ela a amava. Assim como eu.

Continua...

Bruno R Montozo
Enviado por Bruno R Montozo em 09/07/2014
Reeditado em 09/07/2014
Código do texto: T4875888
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