Cidade de Vidro - Parte 5: Não Me Deixe Te Perder

Em primeiro lugar, os beijos que Niclauss me dá são indescritíveis. Toda vez que ele me beija, é como se o mundo a nossa volta desaparecesse, e a única coisa que eu busco no mundo é seu amor. Obviamente, as únicas pessoas que sabem disso são Noam e Wilhelm. Nossos beijos são segredos cheios de promessas.

Agora estamos em perigo. Agora temos um segredo.

Em segundo lugar, algo que Sophitia me disse, me deixou curioso (novamente). A Sublevação é algo real, descobri, mas ainda não sei quem faz parte dela, nem por que ela existe.

Depois de ter passado outro dia inteiro com Niclauss – não somente beijando-o, mas conhecendo-o – resolvo que tenho de descobrir um pouco mais sobre a Sublevação. Aposto que meu pai sabe. Então, faço uma visita para ele em seu local de trabalho.

Quando lá chego, não há ninguém dentro do escritório. Não há ninguém em lugar nenhum. Quando pergunto a um dos guardas na entrada, eles me dizem que todos os oficiais estão acompanhando a revisão mensal do treinamento dos recrutas.

Claro. Foi por isso que ele saiu mais cedo de casa, e por isso vai chegar mais tarde. Claro. Não tenho certeza absoluta de onde é esse local, mas procuro, mesmo assim.

É fácil descobrir onde é a verificação. Todos os novos recrutas estão aqui, e vários oficiais – incluindo meu pai e Kornelius – observam, enquanto os sargentos regem a apresentação de treinamento. Se não me falha a memória, os oficiais de patente mais alta assistem ao treinamento dos recrutas procurando por falhas na maneira de treinamento. Hoje, eles estão averiguando o treinamento com armas. O som dos disparos e a voz dos novos homens é ensurdecedor, e abafa quase qualquer som.

Quando tento me aproximar de meu pai, um dos oficiais me impede. “Ele é meu pai”, grito, mas não surte efeito. Frustrado, sento-me o mais longe possível de tudo, próximo aos recrutas que vão demorar mais a serem chamados. Sento-me no chão, e enterro minha cabeça em meus braços, tentando abafar o som. Mas antes que eu possa processar algum pensamento, alguém toca meu braço. Eu olho para a origem, e é um dos recrutas, obviamente.

- Você está bem? – grita ele, e quase não consigo ouvir sua voz.

- estou – grito de volta. Há algo nele que parece estranho. Há algum tipo de tensão em seu rosto.

- Você é novato? – pergunta. Isso é impossível. Eu não tenho a idade mínima ainda – dezessete anos – e, provavelmente, vou acabar herdando o trabalho de meu pai, então, é minha resposta é não.

- Bem, não. – E fico em silêncio. Mas ele continua me olhando. E me olhando. E me olhando. Mesmo quando eu o encaro de volta, ele continua me olhando. – o que é? – pergunto. Que diabos ele está olhando?

- Você já ouviu falar na Sublevação? – pergunta, sua voz mais baixa, quase inaudível em meio ao escândalo lá fora.

Como ele sabe? Ou melhor, como descobriu? O que ele sabe?

Hesito em responder. E já se passou tempo demais. Minha única resposta é sim, ou estarei obviamente mentindo.

- Já. – respondo, e só isso. Não sei o que ele quer saber. Foi uma pergunta, uma acusação ou um convite?

- Você sabe o que é? – pergunta.

Na verdade, não sei exatamente. Imagino que seja algo que vá contra o governo, e contra as leis estabelecidas por ele. Balanço a cabeça em um não.

- Quer saber? – pergunta ele.

- Você faz parte? – pergunto. Responder uma pergunta com outra pergunta não é minha cara, mas é o melhor que consigo fazer nesta situação.

Para minha surpresa e terror, ele diz que sim.

Mas antes que ele possa dizer mais alguma coisa, seu grupo é chamado. Eu entro em pânico.

O que é a Sublevação?! O que você faz lá?! Quem mais pode ter mais informações sobre ela?! As perguntas gritam em minha cabeça, mas eu não posso fazê-las.

- Pai? – começo. Noto que não é a primeira vez que começo uma conversa assim com meu pai. Aliás, percebo que já comecei milhares de conversas assim com ele. Então decido mudar. Antes que ele possa dizer “Sim, Jacobus”, ou “O que foi, garoto”, eu continuo. – Você já ouviu falar na... – Não consigo enunciar a palavra. Algo me diz que é uma péssima ideia perguntar. Mas agora que comecei, tenho que ir até o fim...

- Já ouvi falar em quê, Jacobus? – pergunta ele.

- Na... – enrolo. A expressão no rosto de meu pai é de irritação. Tenho que continuar, ou as coisas vão piorar muito em questão de segundos. – Na Sublevação?

Várias emoções atravessam o rosto de meu pai. Surpresa. Dúvida. Mais surpresa. Angústia. Frustração. Raiva.

- Por que a pergunta, Jacobus? – pergunta, sua voz fria e áspera, seu rosto duro e raivoso.

- Só... curiosidade...

- Onde você ouviu isso? – pergunta, e larga o jornal. Isso não é um bom sinal...

- Não sei, eu...

- Onde você ouviu isso, Jacobus?! – ele aperta as mãos na mesa. Meu coração se acelera um pouquinho. Não estou com medo, estou só um pouco nervoso.

- Eu não sei, pai, eu...

- Onde diabos você ouviu isso, Jacob? – grita ele, e se levanta da mesa. Entro em pânico. Meu coração se acelera e bate forte, e eu começo a respirar irregularmente. Agora sim, estou com medo. Lágrimas ameaçam a escorrer por meus olhos. mordo meu lábio, tentando me impedir de chorar. Nunca vi meu pai assim. O gosto de sangue inunda minha boa, e agora sei que pressionei demais meus dentes contra a pele fina de meu lábio.

- Eu não sei... – digo, baixinho.

E quando penso que meu pai vai me bater, pois seu rosto está vermelho e sua respiração é irregular, ele volta a se sentar, e aperta o dorso do nariz com os dedos.

Um silêncio mortal se instala entre nós. Posso ouvir o vento assobiando lá fora, gritando para nós, açoitando as construções e tudo o que ele não pode demolir. Meu medo aos poucos passa, e dá lugar a duvida. Há algo que eu sempre quis perguntar a meu pai, entretanto nunca tive coragem. Baseei-me sempre em sua máscara machista e dura como um tipo de receio, e como um motivo para não tentar me aproximar. Mas estou cansado disso. Estou cansado de me esconder atrás de livros e máscaras, fingir que está tudo bem.

- Pai... – chamo. Ele olha para mim, tirando os olhos dos papéis novamente. – Quero te perguntar uma coisa.

- Pergunte... – diz ele, depois de suspirar.

- Você me ama? – pergunto.

Meu pai fica sem reação. Por alguns segundos, ele só olha em meus olhos, embasbacado.

- Que pergunta estranha, Jacobus. – Ele finge estar interessado em seus planos, e não me olha novamente.

- Não, não é – digo, firmemente. – É simples. Sim ou não?

- É claro que eu amo, garoto. Já disse, essa é uma pergunta estranha.

- Quanto? – pergunto, quase ao mesmo tempo em que ele repete a parte de ser uma pergunta estranha. Eu já sei a resposta, mas preciso ouvi-la saindo de seus lábios.

Ele bufa e solta os papéis. Sua cara diz tudo. “Não acredito que ele está perguntando isso”, pensa ele, claramente.

- Muito – responde ele, finalmente.

“Tenho algo para te contar” penso. Mas não consigo dizer. As palavras ficam entaladas em minha garganta, presas, incapazes de sair sozinhas, e eu sem coragem de força-las a sair.

Volto para casa antes do anoitecer, antes que meu pai volte para casa. Preciso ligar para Niclauss e contar tudo o que houve.

Mas ele não atende.

Isso seria suficiente para me deixar preocupado, mas não me permito ficar preocupado. Niclauss não é minha propriedade, e não precisa estar lá sempre para mim. Entretanto, é premente que eu fale com ele. Então, pego meu casaco de couro e saio.

Ele não está em casa. “Ele saiu, querido”, disse a mãe de Niclauss quando perguntei por ele.

Lembro-me subitamente de algo que ele me disse no dia anterior. Ele ia me encontrar ao anoitecer, quando eu saísse do escritório do meu pai. Como pude me esquecer disso.

Chega próximo ao escritório de meu pai sorrindo, mas meu sorriso desaparece quando não o encontro em lugar nenhum.

***

Não consigo dormir. Não há possibilidade de isso acontecer. Onde está Niclauss?

***

- Vai viajar? – pergunto a Kornelius. Meu pai me mandou para cá, e não me deixou que eu ficasse em casa. Estou angustiado com a falta de Niclauss.

A sala de Kornelius está cheia de caixas de papelão e coisas para empacotar. Obviamente, ajuda-lo não foi ideia minha, mas pelo menos está me ajudando a não pensar tanto em Niclauss.

- Vou trocar de sala, por isso a mudança. Mas vou viajar por uns dias, sim – responde ele. Não posso deixar de notar que aparecem covinhas em suas bochechas quando ele fala.

- E vai para onde? – pergunto, enquanto empilho livros dentro de caixas.

- Vou tirar umas férias – responde ele, e sorri para mim.

Estranho ele estar tirando férias agora. Mas não sou eu quem faz as regras, então não me envolvo.

Então uma questão aparece em minha mente. É estranho, mas eu me sinto mais confortável em perguntar isso a Kornelius do que a meu pai – considerando a reação de meu pai quando perguntei isso a ele.

- Kornelius? Já ouviu falar na Sublevação?

Ele para de fazer qualquer coisa e me olha fixamente. Eu o encaro também. Não sinto medo de Kornelius, de jeito nenhum. E ele parece relutante em falar. Mas, por fim, ele fala.

- é uma rebelião – responde ele. – Uma rebelião organizada, e basicamente completamente escondida dos olhos dos cidadãos. Digamos que eles, bem, não gostam muito da nossa forma de governo. Quase como o Opo... – Ele se interrompe. Tarde demais.

- Com o Oponente? A Sublevação está relacionada ao Oponente? – quero saber. Mas ele não fala. Não olha para mim, finge que não ouviu minha pergunta. Mas agora eu sei.

Estou em desespero. Não consigo sair da cama. Niclauss sumiu. Desapareceu. E eu não posso fazer nada para encontra-lo.

Eu preciso dele. Mas ele não está aqui.

Continua...

Bruno R Montozo
Enviado por Bruno R Montozo em 16/07/2014
Código do texto: T4884385
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