Cidade de Vidro - Parte 6: Não Me Deixe Descobrir

Em nosso reencontro, finjo que não o perdi. Finjo que ele não desapareceu por mais de uma semana, e finjo que não sinto nada quando vejo seu rosto marcado de roxo, e seus olhos demonstrando visível dor e medo. Mas, quando cai a noite, e eu estou com ele em seu quarto, e somente com ele, eu o abraço com toda a força que tenho, e a certa altura já não sei mais distinguir quem é ele e quem sou eu.

Eu estava feliz – completo e indiscutivelmente feliz –, e também aliviado, de uma maneira que jamais ficaria, mesmo se a pessoa que desapareceu fosse meu pai. Mas Niclauss havia sido ferido – tão profundamente que ninguém poderia ao menos sanar sua dor. E foi naquele momento que eu sabia que o amava, e o quanto ele significava para mim, ou seja, o mundo e minha vida: quando ele foi embora e voltou, foi quando eu soube que meu coração pertencia a ele, pois foi quando ele o trouxe de volta.

Em seu quarto, eu mal conseguia abraça-lo. Quando eu o tocava, ele se encolhia, mas um segundo depois, se desculpava e permitia meu toque. E por mais que eu perguntasse a ele o que acontecera, ele não dizia. Eu sabia que alguém havia feito algo a ele, sabia que alguém havia ferido ele, mas ele jamais me diria quem fez isso – ele sabia que eu com certeza ficaria traumatizado também. E isso não era importante – saber quem machucara tão profundamente a pessoa que eu amo não era importante. O importante é que eu o amo, e que ele me ama, e todos estão contra nós.

No dia seguinte – unicamente por ordem de meu pai –, fui ao novo escritório de Kornelius, ajuda-lo a desempacotar as coisas. Seu novo cargo era o de segundo-tenente, e eu comecei a divagar sobre o quão rápido ele tem caminhado na hierarquia do exército. Obviamente, isso não é da minha conta. Uma coisa me vem á cabeça, mas o pensamento se esvai tão rapidamente quanto chega. “As férias de Kornelius foram de exatamente uma semana, o mesmo tempo em que Niclauss ficou desaparecido”. Claro, isso foi uma simples coincidência.

Os poucos livros de Kornelius parecem deslocados na estante grande, e tenho problemas em ajeitá-los de uma maneira que fiquem de pé. Quando finalmente consigo deixá-los em pé, alguém bate na porta com força o suficiente para derrubá-la. Não olho para a porta. Não ligo para quem seja. Não importa. Mas o guarda que aparece não diz que alguém procura a Kornelius. Ele procura a mim.

- Sophitia, o que faz aqui? – pergunto, surpreso. Eu realmente não imaginava que nós dois fossemos acabar conversando depois do que ela me contou sobre Victoria. Mas ela está aqui.

- Tinha... Tinha que falar com você... – ela olha por cima do meu ombro, para os guarda próximo de nós. – Podemos falar em particular? – pergunta ela, e nos afastamos alguns passos de tudo atrás de nós. – Como você está?

- Bem... Bem, eu acho. – Não tenho certeza. Estou feliz por rever Niclauss e tê-lo comigo aqui, mas estou triste e preocupado com seu misterioso trauma. Claro que não digo isso a ela.

- Você... Você descobriu mais alguma coisa sobre... – sua voz fica consideravelmente mais baixa quando ela termina a frase – a Sublevação?

Engulo seco. Como dizer a ela que descobri que a Sublevação é na verdade uma rebelião diretamente ligada ao Oponente, sendo este um país inimigo que está tentando com afinco invadir o nosso país?

- N-não. Não ouvi.

- Quer ouvir?

Essa informação me pega de surpresa. O que será que disseram a ela que é a Sublevação?

Faço que sim com a cabeça. Quero saber o que ela sabe agora, por menos que eu tenha a intenção de contar a ela o que eu sei. Não que eu seja uma pessoa egoísta, mas não quero que ela se encrenque por saber demais.

Ela me fala exatamente tudo o que eu sei sobre a rebelião. Tudo. E um pouco mais. Descubro, então, que a Sublevação é aberta, e secreta. Qualquer pessoa que não concorde com as ordens impostas pelo governo de nosso país pode ser um rebelde. E mais: o desejo do Oponente, o porquê de suas tentativas veementes de adentrar em nosso país, é para mudar as coisas. Há uma esperança. Poderemos ser livres se o Oponente tomar o controle. Isso me deixa feliz e esperançoso. Quero correr e gritar. Eu e Niclauss, e Noam e Wilhelm, e todos os que foram proibidos de amar seremos libertados dessa prisão ditatorial.

- Então, quer ser um rebelde? – pergunta ela, e dá um sorrisinho no final.

Não penso antes de responder.

- Quero. Claro que quero.

Sophitia tira do bolso um minúsculo broche de madeira. Um pássaro, mostrado de um único lado, voando. Liberdade. É o que significa. Ela prende o broche do lado de dentro de minha camisa e pede para não deixar que ninguém veja.

- Bem vindo á Sublevação – diz ela. E sorri. Não consigo me conter e a abraço.

Agora somos aliados. Agora ambos temos esperança. Agora nós dois guardamos um segredo.

Obviamente não conto a Niclauss sobre a Sublevação. Não quero nem imaginá-lo em perigo. Ele vem dormir em minha casa hoje à noite. Por pouco não aguento a espera. E quando ele chega, eu o beijo profundamente.

Durante a noite, porém, mal posso o tocar. Está pior do que eu pensei. Ele treme, e às vezes consigo ouvi-lo chorando. Junto com minha tristeza, raiva cresce dentro de mim. Não raiva de Niclauss, mas raiva da pessoa que fez isso com ele. Quem quer que tenha feito isso, essa pessoa vai pagar. Mas Niclauss não me diz quem fez isso.

- Não é importante – diz ele toda vez que eu pergunto o nome da pessoa. – Não fique com raiva. Não vai mudar nada.

- Mas eu preciso saber. Tenho que saber...

Contudo, ele não me diz quem é.

- Me desculpe... – diz ele. Já estamos no meio da noite, e eu estava quase pegando no sono. Desperto completamente com o som de sua voz.

- Não precisa se desculpar – digo. É a verdade. Óbvio, ele me deixou preocupado, mas isso não importa mais. Ele olha dentro de meus olhos, e posso ver que suas feridas ainda são tão profundas quando no dia em que ele foi ferido.

- Preciso... Eu quero te contar quem me sequestrou, mas...

- Sequestrou? – pergunto, sentando-me em um pulo. Não posso acreditar que ele foi sequestrado. A raiva dentro de mim cresce ainda mais, e se torna ódio. Meu coração bate com força e rapidez. Estou ofegante. Essa pessoa não me escapa. Quando eu descobrir quem fez isso, eu o matarei. – Quem te sequestrou?

- Eu não posso dizer. Eu... – As palavras dele saem juntas, de tão rápido que ele fala.

- Me diga um nome – ordeno. Não se atreva a não me dizer.

- Eu não posso – diz ele.

As lágrimas escorrem por seu rosto, tão rápido e incessantes que parecem rios. Não sinto mais raiva. Sinto sua dor. “Me desculpe”, quero dizer, mas não consigo falar nada. Simplesmente abraço-o, e deixo que ele derrame sua tristeza por sobre meu ombro.

- Eu te amo – consigo dizer, cansado demais para chorar, triste demais para me mexer. A única coisa que consigo fazer é respirar, e deixar que a desesperança me consuma.

Do que vai adiantar? Do que vai servir conquistar este país se Niclauss estiver tão machucado que mal consegue falar comigo? Do que adianta ter a esperança de ser livre, se há á minha volta unicamente a dor do trauma?

- Eu te amo – sussurra ele.

Eu corro.

Eu corro e corro e corro.

Agora que eu descobri quem fez mal a mim, eu o mato.

O suor escorre por minhas costas, e tenho a sensação de que meus pulmões estão sendo apertados contra duas placas de ferro. As lágrimas correm rápidas e desenfreadas por meu rosto, e queimam e me cegam.

Os guardas na entrada nem ao menos pedem minha identidade. Eles sabem quem eu sou.

Meus músculos parecem ter sido liquefeitos quando chego a meu destino. A adrenalina ainda não saiu de minhas veias, então tenho mais algum tempo antes de desmaiar.

“Me diga quem foi”, disse eu, enquanto ele ainda estava em meio ás lágrimas.

“Não...”, respondeu ele.

“Só uma letra”, disse, me sentido uma criança mimada e insistente.

“K”, respondeu ele.

E agora estou aqui. O punhal em minha bota roça contra minha pele, e tenho certeza de que estou cortando a mim mesmo.

- O que faz aqui? – pergunta ele, sobressaltado, quando irrompo em sua sala, sem ao menos bater na porta. Mas isso seria ridículo. Quando se está prestes a assassinar alguém, acho que não faz sentido ser educado.

Chuto a porta atrás de mim. Ela se fecha com um estrondo. Não tenho muito tempo agora.

- Qual é seu problema? – pergunta ele.

Ele não é homem fraco. Com certeza vai ser um problema mata-lo. Mas não me preocupo. Eu sei que ele vai morrer. Hoje.

Parto para cima dele com passos curtos e pesados. Tento quebrar o chão com meus pés, mas eles não cedem. Ele se levanta da mesa, seu maldito jornal cai no chão com um barulho mínimo e surdo.

Não entendo o porquê, mas quando chego perto o suficiente, ele me abraça, ao invés de tentar se defender. Eu o abraço, com força. Devagar, para que ele não note, pego minha adaga.

- Por quê? – pergunta ele, enquanto observo sua vida escapar por seus olhos. Emoções se misturam em minha mente. Sinto satisfação. Eu o matei. Sinto arrependimento. Eu o matei.

- Aqui está seu troco, seu nojento. – Digo, e tira a lâmina de suas costas. Ela sai afogada em sangue. – Te vejo no inferno, Kornelius.

A porta se abre rapidamente. Não me viro para vem quem a abriu. Não me importo. Deixo a faca cair de minha mão. Ela faz um tintilar metálico quando se choca contra o solo.

- Por que você fez isso? – me pergunta Niclauss, me abraçando.

- Ele me machucou quando machucou você. Eu tinha que te vingar – digo.

Ficamos em silencio, mas somente em um silencio literal, pois dentro de minha mente todos gritam. O silencio se torna uma gritaria, e meus pensamentos são tão ruidosos que mal consigo distinguir o que querem dizer.

- Jacobus – ouço meu pai gritar...

Todas as vozes são silenciadas quando separam Niclauss de mim. Nossas mãos não se tocam mais, e minha mente se torna completamente desperta. “Niclauss”, eu grito a plenos pulmões, porque sei que eles vão nos afastar. Sei que eles vão me executar. Ele também grita meu nome. Meu coração bate com tanta rapidez que quase não o sinto.

“Não me deixe”, penso. “Não de novo”. Mas é tarde. Ambos somos levados em direções opostas.

Continua...

Bruno R Montozo
Enviado por Bruno R Montozo em 19/07/2014
Código do texto: T4888118
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.