Inexplicável destino

Os dias passam devagar demais quando se está em um sanatório. As nuvens lá fora, o brilho do sol, as árvores, qualquer coisa serve para lembrar dos seus motivos para ter entrado aqui. Dessa forma, fica impossível tornar a própria loucura uma lembrança, por isso acho que nunca sairei daqui. Estou sempre discutindo com meus erros, refazendo as curvas que tentei desviar e derrapei nelas. Eu aceito os termos que os psiquiatras usaram para me manter aqui, pois até eu mesma imploro pela explicação de meus atos. Se não existe destino, então a vida é feita de infelizes coincidências.

Ainda me lembro de quando amava minha mulher. Dedicava cada segundo de minha vida para fazê-la feliz. Tínhamos uma vida tranquila, éramos só nós e as estrelas todas as noites - porque durante o dia trabalhávamos. Quando digo que cada segundo era gasto com ela, não é exagero; eu simplesmente via sua imagem e seu nome em tudo, como se ela fosse minha sombra. Diziam que eu tinha enlouquecido, mas ainda não era verdade. Tudo perdeu o controle quando ao invés de beijos e abraços silenciosos, passamos a ter brigas que acordavam os vizinhos. Ela estava me traindo. Eu tinha certeza e ao invés de continuar com as brigas com as quais eu só ganhava desculpas sem fundamento, passei a segui-la. Eu simplesmente deixei meu trabalho de lado para saber o que estava acontecendo com a minha vida. Ela era a minha vida. Foram necessários 5 dias para que eu tivesse certeza da traição. Depois de estacionar, ela entrou em uma casa bonita sem muro como todas as outras num bairro bem distante do nosso. Eu estava no meu carro, dado pelo meu pai que sempre me disse que se o divórcio tinha lhe ensinado algo, é que a alma gêmea só existe para te destruir e pegar seu lugar de volta no mundo. Fazia sentido. Em menos de 1 minuto tudo que me trazia a certeza de que Eliza era minha alma gêmea veio à tona. Como se ela fosse um pedaço meu mas só tivesse espaço no mundo para uma de nós. Nesse momento eu senti que ela estava me destruindo, eu não ia morrer fisicamente mas parecia que por dentro eu já estava morta.

Eu nem sei como minha mente passou de doce e apaixonada à assassina, só sei que todos os meus pensamentos sumiram num repente de ódio. Eu desci do carro, entrei na casa pela porta da frente que nem se deram o trabalho de trancar, talvez porque o desejo fosse maior que o medo. E, ao entrar, pude constatar o que estava pensando. Os gemidos que vinham do quarto espalhavam pela casa o desejo que há 1 mês Eliza não demonstrava por mim. Não chorei. O ódio ainda era maior que tudo. Aproveitei que estavam totalmente imersas no prazer para achar uma faca afiada na cozinha. Não seria uma morte tão ruim afinal. Me dirigi ao quarto, bati na porta e esperei. Imaginei o prazer se esvaindo e se transformando em medo e confusão. Eu sabia que Eliza viria abrir a porta, com seu espírito protetor. Assim sucedeu e quando ela se virou para a direita, seus olhos assustados se encontraram por 2 segundos com os meus antes de perderem o brilho quando cravei a faca em seu peito. Eu saí correndo com a arma do crime na mão, entrei no carro, voltei para casa, enterrei a faca, tomei um banho e me sentei na cama. Comecei a pensar no que fugi para não ver: o rosto da amante. Como seria? Por que a atraiu? Por que não quis ver? Pensei em voltar à casa mas seria suspeito demais. Esperei dar 24 horas após a morte de Eliza e fui até a delegacia para registrar que ela tinha sumido. Minha mãe pela primeira vez quis fazer seu papel maternal e foi para minha casa me fazer companhia nesse momento difícil.

Minha casa já não era a mesma, eu ainda via Eliza por todos os cômodos, mas sabia que eram imagens irreais. Não sabia ao certo se minha consciência estava pesada ou se sentia saudade da vida fácil que a ilusão proporciona. Minha mãe não me questionava por eu não querer ver os noticiários ou por não estar desesperada. Há uns 15 dias ela já tinha ficado sabendo das nossas brigas. Em nosso terceiro jantar juntas, ela me contou que o delegado tinha ligado para avisar que encontraram o corpo de Eliza enterrado na casa de uma louca, da forma mais sutil que pôde. Eu chorei. Ela com certeza pensou que era de dor, mas era de alegria. Parece que a amante não era muito inteligente. Agora seria ainda mais difícil provar que ela era inocente.

No dia seguinte, fui à delegacia bem cedo. Me disseram que ainda não tinham encontrado a arma do crime mas que a dona da casa tinha confessado o mesmo sem falar dos seus motivos e que já estava aguardando julgamento presa. Nem pude acreditar. Chorei novamente, dessa vez de alívio e, mais uma vez, tive a certeza de que ninguém soube que não era de dor.

Minha mãe insistiu para ficar comigo por mais uns dias. Malditos dias! Às vezes ela ia em meu quarto quando eu já estava dormindo e em todas elas me ouvia chamar Eliza e dizer algo sobre uma faca. Durante o dia, me pegava falando sozinha, abraçando o ar. O que me trouxe até este lugar onde me encontro agora, foi ter dito que ia visitar a "assassina" com um emaranhado de flores que eu mesma colhi - ou roubei - no jardim da vizinha. Eu tentei explicar para 3 psiquiatras que não era verdade que via Eliza pela casa e que não chamava por ela em sonhos, mas a verdade pareceu ser ainda mais aterradora.

Quando eu estive na delegacia da última vez, vi a tal assassina, soube que seu nome era Lia. Em algum momento, disse que ia ao banheiro mas fui vê-la em sua cela provisória. Me aproximei, ela estava com a cabeça baixa, perguntei "Por quê?" e sem entender, ela levantou a cabeça e perguntou se me conhecia. Assim que seus olhos se colocaram na direção dos meus, eu já não tinha resposta para nenhuma pergunta. Fui embora. No entanto, sua imagem substituiu cada lembrança de Eliza e, se eu gritava seu nome em sonhos, era tentando dizer "Não fique com Eliza". Eu me lembro do meu sonho. Era o mesmo todas as noites. Eu repetia o que fiz no dia em que a matei mas, ao invés de correr, estendia a mão para Lia e dizia "não fique com Eliza, vou esconder seu corpo junto com esta faca e seremos só eu e você". Nem precisa dizer que aceito ser chamada de louca, mas obviamente não estou sozinha. Além de tantos outros desconhecidos, todos os dias vejo Lia nos banhos de sol no jardim. Lia teve consultas com psiquiatras logo após tentar se matar enforcado em um lençol na cadeia e dizer que só queria se livrar de mim. Infelizmente para ela, só há 1 sanatório na cidade e, logo a mandaram para cá.

Na primeira vez que a vi aqui - fora das minhas visões - lhe perguntei novamente "Por quê?". Parece que dessa vez ela entendeu, pois me disse "Porque o destino quis assim". Eu não ouso questionar mais nada, aliás, nem preciso. Vivo num lugar onde tudo é permitido. E, se sou louca, a menor das minhas peculiaridades e me sujeitar ao destino; algo além de uma palavra, que existe mas não pode ser medicada. Cada tarde caminhando ao lado de Lia é um passo a mais no abismo da loucura. Sem contar que muitas vezes à noite, escuto a frase de meu pai ecoando no escuro. Agora eu entendo que apesar de ser um fato, essa destruição é a melhor coisa da minha limitada vida. Afinal, eu já tirei minha alma gêmea do caminho, por que não deixar o espaço ser preenchido pela causa de sua ausência?