A deusa e o poeta

Teria sido um dia comum como qualquer outro, não fosse pelo simples fato dela ter tomado conhecimento de sua existência. O acaso providenciou para que eles estivessem no mesmo ambiente, naquela bela manhã de fevereiro. Sem ninguém esperar, foi anunciado que antes de começar a reunião de trabalho, do grupo ali reunido, haveria uma apresentação musical; uma homenagem de boas-vindas aos presentes.

Ele chegou timidamente tentando parecer tranquilo. Foi logo explicando que o motivo da sua presença ali se dava devido a constante insistência dos organizadores, etc e tal... De posse de um violão, desculpou-se pela voz e cantou uma bela canção, que no final, pareceu agradar a maioria. Não se sabe se por gentileza ou por grata satisfação, ouviu-se o irromper de palmas. Discretamente, ele agradeceu, e retirou-se rapidamente em meio ao burburinho ocasionado. Bastou isso para que ela, impressionada, quisesse saber de quem se tratava o misterioso indivíduo. Não deixou de comentar com as colegas ao lado, com um certo brilho no olhar, a respeito da canção que acabara de ouvir. Tinha que saber o nome da música a qualquer custo. Num ímpeto de curiosidade e fascinação, quase correu atrás do relutante tocador. Ao encontrá-lo, em meio a inquietude e curiosidade, indagou: - ei, parabéns pela música, quem canta? ele ainda meio tímido, mas com uma expressão de satisfação, pelos elogios recebidos, e agora, bem de perto, por uma bela mulher em meio a tantas; respondeu gentilmente quem cantava a música e quem a compusera. Ela, muito entusiasmada, o elogiou novamente e não perdeu a oportunidade de propor-lhe novas apresentações em grupo, já que era uma de suas metas desenvolver um trabalho com música.

Bastou esse diálogo para que se aproximassem. Viam- se todos os dias, conversavam constantemente, descobriram gostos em comum: paixão pela música e literatura, em especial pela poesia.

- Eu escrevo algumas bobagens de vez em quando - dizia ele, meio sem jeito.

- É mesmo?! - então eu quero ver - completou ela animada.

Foi a gota d'água. Ela se encantou tanto com os textos dele que virou sua fã número um. Não demorou muito para que a admiração virasse uma inusitada paixão. Ela, acostumada a ser bastante assediada, devido à sua beleza e jeito de ser; viu-se de repente, assaltada por um sentimento inesperado, nutrido por alguém que não tinha aparentemente nada que chamasse alguma atenção. Como não bastasse, era um amor proibido, já que ambos eram comprometidos.

Com o passar dos dias, Deusa - esse era o seu nome - foi se surpreendendo cada vez mais com esse novo sentimento. Pensava em Damario constantemente, todo o tempo ele estava em seus pensamentos, não importava o que estivesse fazendo.

Até aquele momento, ele não dera a entender nada a respeito de algum suposto interesse que tivesse por ela. Enviava a ela diversos textos e músicas das quais gostava, o que parecia agradá-la também. Gravou alguns Cds de artistas da sua preferência e lhe deu de presente, os quais ela ouvia admirada e agradecida.

O entusiasmo dela pelas coisas que ele lhe mostrava era algo que ele nunca tinha visto. Agradecido por tamanha atenção, Damario passou a consultá-la primeiramente, todas as vezes que escrevia algo novo. Fazia questão que ela opinasse, antes dele publicar algum texto. Deusa, cada vez mais encantada por ele, começou a escrever também. Ele adorou os escritos dela e a incentivou a continuar.

- Você devia publicar seus textos, são lindos, você escreve bem! - insistia ele.

- Ah, não sei, não acho que seja grande coisa! - teimava ela.

O tempo passava e eles ficavam cada vez mais amigos. Às vezes ele pegava o violão e cantava pra ela, outras vezes cantavam juntos. Até que, o inevitável aconteceu...

Certo dia, depois de tanto esperar, ela arriscou dar um passo mais ousado em relação ao seus sentimentos, resolveu declarar-se. Como a situação exigia algo clássico, digno das grandes histórias, escreveu um poema para ele, descrevendo o que sentia.

Damario pegou o poema na mão e o leu admirado. Nunca, nenhuma mulher tinha feito algo semelhante para ele, ainda mais uma mulher daquela: absolutamente linda e sensível, alguém realmente muito especial. Apenas um pouco surpreso, visto que ele já havia percebido alguma coisa e se fizera de desentendido devido à situação, comentou:

- O que é que eu faço com você, menina? - eu sou comprometido...

- Ela o olhou meigamente, sorriu com os olhos e falou num sussurro: - apenas me ame!

A partir daí, as coisas mudaram completamente; acendeu-se a chama da paixão e o desejo aflorou incontrolável. O tratamento que tinham um com o outro, até ali, respeitoso e formal, transformou-se radicalmente. Tornaram-se cúmplices, parecia que já eram íntimos à tempos. Como era de se esperar, quando estavam próximos, desejavam-se ardentemente. Era visível a ansiedade que tinham para se tocarem. Os diálogos ficaram picantes, e as mensagens por e-mails, reveladoras; até que chegaram ao limite da razão: no ambiente de trabalho mesmo, pela primeira vez, tal como adolescentes no ardor da paixão; beijaram-se avidamente como a devorarem um ao outro.

Aquilo tornou-se rotina. Tocavam-se e beijavam-se a todo instante, às escondidas. Perderam a noção de perigo, visto que estavam no local de trabalho; e se alguém os visse? Pareciam terem esquecido esse detalhe, por conta do desejo.

Finalmente, se encontram num local apropriado. Amaram-se loucamente no primeiro encontro real que tiveram. Isso só serviu para aumentar ainda mais a chama da paixão.

Mas, havia algo; outras pessoas envolvidas. Pessoas diferentes que amavam a ambos. Deusa era amada desesperadamente por outro homem. Alguém que a idolatrava, que era capaz de beijar o chão que ela pisasse. Isso a deixava triste, pois os seus sentimentos para com essa pessoa não tinham o mesmo ímpeto, o mesmo furor. Admirava-o, gostava dele, e continuaria tudo bem, embora não sentisse amor, se não tivesse conhecido Damario...

Ele por sua vez, tinha alguém com quem convivia há muito tempo. Vivia uma vida comum, rotineira, sem grandes emoções e sem maiores problemas. Era um sujeito que, em comparação com outros homens, podia-se dizer dele: era um cara bem comportado. Mas aí, surgiu a bela Deusa na sua vida...

Estabeleceu-se um dilema na vida de ambos. Que fazer, que rumo tomar? Largariam tudo para ficarem juntos?! Parariam com aquela loucura desmedida, com aquela paixão quase irresponsável; tão angustiante, tão perigosa, tão gostosa, tão...

Não seria nada fácil chegarem a uma decisão. Quanto mais se encontravam mais acendia o desejo de estarem juntos. Não conseguiam parar, a coisa toda fugia ao controle.

E se fugissem? Deixariam tudo e todos, depois entrariam em contato. Não, seria loucura demais, coisa de adolescente! Meu Deus, olha os pensamentos! Perderam o juízo?! - pensavam. Era preciso acabar. Dar um basta em tudo aquilo, seria doloroso, mas tinha que ser feito.

Entre os dois, Deusa era a mais atingida com a situação, embora ela fosse tecnicamente "livre", pois não era oficialmente comprometida. Ela sofria mais com a incerteza de tudo aquilo e até mesmo com a ideia de estar fazendo a outra pessoa que a amava, infeliz, devido à sua frieza. Sem contar o fato de ser mulher, e, por isso, mais sensível.

Sobrara para Damario a penosa missão de terminar tudo; em nome do amor, carinho, respeito e alucinado desejo que sentia por ela.

Como era poeta, resolveu que faria um poema de despedida para sua deusa. Seria algo épico, como eram as grandes histórias de amor. Se tinha que acabar, que acabasse como começou: envolto em poesia.

E assim ele fez. Terminou o poema e marcou um encontro. Não queria ser insensível, mas tinha que tê-la pela última vez, tinha que ser inesquecível, algo para lembrar enquanto vivesse.

Amaram-se como se fosse a primeira vez. Ela estava linda e radiante, como todas as vezes que se encontravam.

- Minha linda, trouxe uma coisa pra você - disse, com a voz embargada.

- Ah, meu bem, não precisava! - o que é?

- É algo que escrevi. Um poema! - as palavras quase não saíram, desta vez.

Ela pegou o papel com aquele lindo sorriso que ele adorava, e sentou-se na cama.

À medida que lia o texto, o sorriso ia desfazendo-se e lágrimas foram brotando dos seus olhos.

Ao terminar a leitura, Deusa chorava copiosamente. Olhando fixamente para Damario, balbuciou entre soluços:

- Essa é uma das coisas mais lindas que eu já li, e também a mais triste! - por quê tem que ser assim, meu amor?!

Damario ficou em silêncio. Não havia o que responder; era um amor impossível!

Se adiasse mais aquele desfecho, haveria mais sofrimento para ambas as partes.

- Você é especial, minha deusa! Merece ser feliz, e, no momento, eu não posso fazê-la feliz - disse com o coração partido.

Deusa sorriu. Via-se a tristeza nos seus olhos. Resignada, pois sabia que cedo ou tarde esse dia ia chegar, perguntou sem entusiasmo:

- Como será agora? vamos nos ver todos os dias, vai ser difícil fingir indiferença, afinal vivemos uma história!

De novo, Damario viu-se sem palavras. Isso era de fato uma realidade que teria que conviver. Como estar próximo dela e conter-se; para não tocá-la, beijá-la... ele não iria conseguir. Era impossível!

Despediram-se sem toques ou beijos, de outra forma não podia ser. Tinham que resistir às armadilhas do desejo.

- Ah, quase esqueci! - disse ele, enquanto a via partir, - uma foto minha que você não viu. - falou aproximando-se. Se você quiser é claro...

- Quero sim, - respondeu ela pegando a fotografia.

Damario deu as costas e afastou-se, enquanto ela via a foto. Ele já estava distante muitos metros, quando ela virou o verso da fotografia e leu, com lágrimas nos olhos:

" Para lembrar, quando o coração tiver esquecido".

Edson, Jan/2015