Pequeno conto de paixão, desencanto e ternura

Era o que mais gostava no inverno, o dia de chuva intermitente e fraca, a lareira sempre acesa, a música e o café. Escurecia cedo, sempre para o sul, pequenas geleiras se formavam sobre as ilhas, a vontade era nunca mais sair dali, esquecer Costa Rica, sabia que era apenas um processo de fuga, fuga de si mesma, talvez tivesse que reativar o projeto de voltar a ser sozinha. Estavam distantes, cada vez mais, se refugiava nos livros, na pintura. O ambiente próximo ao piano era aconchegante, sobre o tapete, edredons espalhados, livros e almofadas, era que chamava de bagunça organizada, não havia televisão, a conexão com o mundo exterior só ocorria por meio de um telefone celular que estava, geralmente, esquecido em algum cômodo da casa.

Gostava de vê-lo tocar, eram nestas tardes chuvosas que Miguel se mostrava mais inspirado, escolhia pequenas peças, as que mais lhe marcaram, as mais significativas, quando tocava, seu olhar se perdia no verde que rodeava a casa, na porção de pampa deserta, por vezes o olhar se cravava no lago congelado, naquele momento nada mais existia.

Era sempre a mesma cabana, sul do Uruguai, tempo frio, ali ele buscava o sossego merecido, precisava escrever, compor, já fora considerado o melhor intérpetre de Bach, mas isto foi no passado, quando era casado com Cássia, a fútil Cássia. Ao piano ele se transformava, entrava numa espécie de transe, não gostava de ser interrompido, Savana puxou a coberta, engoliu o café, sentia-se abandonada, o piano estava se tornando um rival, sutilmente os afastava, se falavam só nas refeições, mal se tocavam. Seria outra noite solitária para ela, mais uma noite insone e vazia. Amava a música, talvez, na mesma intensidade que Miguel, muitas vezes, sentia-se culpada por ter interrompido as aulas piano, mas era muito criança, tinha outros interesses, queria brincar e ser livre. Nas aulas com dona Elga, a professora alemã, sempre dava um jeito de escapar, a sala do piano ficava na parte mais baixa da casa, numa espécie de porão, era tudo simples mas confortável, no primeiro descuido, Savana pulava a janela e sumia, deixava a professora sempre aflita.

O café já estava frio, o sol já havia sumido, não conseguia ler nem organizar as ideias, agora o som se espalhava pela cabana, Miguel ouvia Tom Jobim, devia estar melancólico, devia estar com saudade do Brasil ou de Costa Rica, os barcos, a pesca. Savana considerou que este seria o momento mais adequado para partir, sair da vida dele, voltar para o Brasil e buscar um novo projeto, ter outros confins, queria não ser encontrada. Iria morar numa praia pequena, longe de qualquer possibilidade de conhecer alguém para amar, queria se ocupar com os locais, se doar, ia tentar novamente. Não desejava mais ninguém para amar, já tinha resolvido isto, mas voltou atrás quando conheceu Miguel. Ele era inconstante, podia estar executando o mais importante concerto e no dia seguinte podia estar enterrado no meio da selva, tomando banho de rio em alguma aldeia indígena distante, provavelmente tivesse se encantado pela maneira de ele ser, no estilo de vida exótico que ele levava. Se fosse para ficar, Savana queria a liberdade acompanhada, estar perto, não ter que dividi-lo com a música, era o seu lado possessivo. Durante a madrugada, arrumou a mala, deixou uma carta sobre a cama e partiu no primeiro ônibus, dormiu durante toda a viagem, acordou em Montevidéu. Ele havia dormido junto da lareira, ia acordar muito tarde, devia estar esgotado, certamente não teria dado por sua falta.

Savana ainda não havia chorado, dormiu para não pensar, no táxi para o aeroporto, se enrolou no casaco, estava encolhida no banco, mal falou com o motorista, a vontade era voltar e se aninhar nos braços de Miguel, estava arrependida. O aeroporto estava deserto, o balcão de passagens ainda estava fechado, ficou sabendo que o voo não sairia no horário, chovia muito, a temperatura caíra significativamente. Precisava tomar um café, estava congelada de frio, pela parede de vidro viu os aviões estacionados sob a chuva fina.

Algumas pessoas já circulavam pelo saguão do aeroporto, foi a primeira a fazer check in, a bagagem, como sempre, era pouca, detestava carregar malas pesadas, todo excesso ficara em Costa Rica, ficaria para sempre. Savana voltou para a poltrona, tirou o livro da bolsa e retomou à leitura, nem sabia mais onde tinha parado, ficou brincando com o livro, folhou a esmo, na última página havia a dedicatória de Miguel em letras miúdas: "eu sempre vou te amar", arrancou a página, sem pensar, amassou o papel e botou no bolso do agasalho, achou que era tarde para voltar, se desculpar, não ia se humilhar, um de seus maiores defeitos era o orgulho. O solitário de brilhante ficou na cadeira ao lado. Três horas de espera, estava esgotada, finalmente anunciaram o voo. Savana seguiu para o embarque certa de que jamais voltaria ali, os olhos ainda estavam inchados, o funcionário perguntou se ela estava bem, assentiu com a cabeça e atravessou o portão do embarque. O avião já havia taxiado, logo embarcaria. Estava de pé junto do guichê de embarque, era a quinta da fila, entregou o bilhete e seguiu pelo corredor gelado, neste momento um som muito familiar invadiu o ar, era Tom Jobim, "Wave", as pessoas pararam de tagarelar, Savana não teve coragem de olhar para trás, mas sentiu a mão firme a segurando pelos ombros.

A bolsa e o casaco ficaram no chão, a música ainda tocava, estavam alheios a tudo que ocorria em volta, as pessoas olhavam curiosas a cena inusitada. Talvez seu destino fosse, mesmo, estar junto de Miguel e de Tom Jobim.

Beijo a todos!

Maria letra e cor
Enviado por Maria letra e cor em 31/01/2015
Reeditado em 31/01/2015
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