O SOL

- Deus, acho que estou prestes a explodir. Será que nasci pra ser vulcão em vez de gente?

Talvez. Ela era um vulcão de entranhas borbulhantes, cujas lavas imploravam por jorrarem-se aos ares. Inquietas, nervosas, incessantes, pareciam brotar do peito, subir pelo esôfago e esquentar a garganta. Entrariam em erupção quando tocasse um lápis e fizesse das linhas de uma folha os vales pelos quais derramaria o magma derretido. Ah, que vontade! Apenas assim cessariam o incômodo. Somente desse modo parariam de borbulhar. Oh, céus. E onde estaria escondida, dentro de seu corpo, a coragem para empunha-lo e escrever?

Desdobrou a folha de caderno e deitou a ponta afiada do grafite sobre a primeira linha. Tentou algumas primeiras palavras. Ora, que desastre. Não havia coerência. Os sentimentos eram alvoroçados em demasia para que se organizassem sozinhos no papel. Saíam assim, desatados, como uma represa cujo dique se rompeu. Sem governo, sem sentido: apenas palavras, cheias de significado, porém ininteligíveis. Que pena.

Impaciente, respirou fundo, amassou a folha e atirou-a num canto. Segurou o lápis mais firmemente por entre os dedos e, com o pouco de lucidez que encontrou, recomeçou a carta.

“Obrigada por ser uma espécie de sol. Um sol que, de certa forma, esquenta e ilumina os cantos mais escuros que existem em mim”.

- Mas que piegas! Não levo jeito. Não posso chama-lo de sol.

Mas o que é um romântico senão um ser humano piegas? Nunca se encontrou, na história da humanidade, um apaixonado com um mínimo de sensatez. A partir daí ele começa a chamar o outro de sol, lua, mar, flor, rio, céu, estrela ou qualquer outra coisa que não guarde qualquer semelhança com os homens. A partir daí se iniciam os devaneios, as tentativas desesperadas por definir o parceiro tal qual o enxerga. A partir daí faltam os termos, mesmo em língua nativa, para explicar o que exatamente se sente ou se vê no outro. A partir daí os infinitos adjetivos que se atribuem ao parceiro não podem ser notados por qualquer outra pessoa no mundo, senão pelo insensato homem apaixonado.

Mas não era só. Chama-lo de sol não era inapropriado apenas por ser careta, mas porque o sol em nada se assemelhava a ele. O sol é conhecido de todos: sabe-se do que é formado, pra que serve, como se mantém ativo. Não se sabe com certeza como surgiu, porém imagina-se.

Já ele... O que ela sabia sobre ele mesmo?

- Será possível? Eu conheço muitas coisas a respeito dele. Ou não?

Esforçou-se e, depois de muito pestanejar, elencou meia dúzia de curiosidades irrelevantes sobre o rapaz.

Ora, não era pra menos. Ele era deveras misterioso. Parecia estar sempre se escondendo, omitindo detalhes, escapando de seus olhares, fugindo de si mesmo... Raramente se expressava ou expunha seus sentimentos. Dificilmente dizia como se sentia em relação a ela ou mensurava a afeição que lhe tinha.

Quando o fitava no fundo dos olhos, raramente tirava algo daquelas íris castanhas escuras. Ele logo baixava as pálpebras, sem graça, e mudava o assunto.

Seu sorriso acanhado, de canto de boca, pouco lhe dizia.

Quando as mãos se tocavam, não entendia ao certo o que as dele queriam falar às suas.

Nos momentos em que seus corpos quase se fundiam, ainda sim nada concluía de seus carinhos.

Os beijos, apesar de lentos e ternos, transmitiam apenas impulsos, emoções intensas, porém sem ordem, sem rumo.

Os silêncios repentinos em que ele às vezes se envolvia causavam-lhe certa ansiedade diária.

Quando se abraçavam, tentava, de alguma maneira, entrar em seu corpo, tocar suas entranhas, desvendar algo que guardasse dentro de si, porém em vão.

Entretanto, aquele olhar, aquele sorriso, aquelas mãos, aquele corpo, aquele silêncio e aqueles abraços eram únicos no mundo, exatamente da maneira peculiar como eram. Podia ser que não lhe dissessem muito, não lhe deixassem saber demais, mas faziam-na sentir-se como nunca antes. Estranhamente.

Segurou o lápis na mão direita e, de repente, as palavras desaguaram macias por sobre o papel.

“Apesar da distância que me encontro daquela estrela e da proximidade com que me seguras quando tuas mãos me abraçam, penso que sei mais sobre o sol que sobre ti.”

Deitou o lápis novamente sobre a escrivaninha de madeira.

- Não consigo te ler tanto quanto gostaria, mas você certamente me é mais querido que o sol - sussurrou segurando o rosto na palma das mãos.

Não escreveria isso na folha. Ficaria sem jeito. Além do mais, ele sabia disso, não?

Sorriu.

Dona Iaiá
Enviado por Dona Iaiá em 16/02/2015
Código do texto: T5139096
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