Metáforas

O vento sacudia as cortinas.

Pedro Delmar olhava pela vidraça o enlaçar das palhas e dos restos de dejetos que insistiam em entrelaçar-se sob o comando do vento, jogando tudo o que estava a um palmo do chão na mesma direção, formando uma espécie de redemoinho nas esquinas. Assim Pedro Delmar via sua vida, sempre ventando em alguma direção. As vidraças estremeciam como muitas mulheres estremeceram em seus braços. Tantas que, de algumas, nem do nome ele lembrava! Imagens, aromas e amores. Amores? Acreditava que não tinha amado nenhuma. Se amou, não se lembrava.

Memórias existiam apenas de algumas tórridas paixões. Aliás, seria injusto dizer que não se lembrava. Lembrava-se de uma delas, a Florbela, talvez por estar tão recente... Terminaram há poucas semanas. Grande parte de suas roupas ainda se encontrava espremida junto às roupas de Florbela, como, um dia, seus corpos também se espremeram até se confundirem em uma só silhueta.

Espreitava no pequeno basculante o vai e vem do vento que lhe lembrava a vida. Sentiu os pés aquecidos de Eloisa tocarem suas costas nuas. Olhou-a na cama, ainda inebriada pela manhã de amor, com olhos quentes e vibrantes. Lembrou-se do dia em que se conheceram, quando cruzaram olhares em meio a uma esquina da Rua das Laranjeiras. O pacato marido de Florbela, que morava há poucos quarteirões da mesma esquina, rendeu-se ao novo encanto e a paixão tomou conta do momento, dos atos e dos pensamentos.

Recebeu um telefonema ao final do expediente, um dia cheio, é verdade, mas não tão cheio que não pudesse ter um espaço para galanteios e devaneios, assim pensava Pedro Delmar.

A voz do outro lado dizia:

- Tenho que falar-te.

- Algo sério?

- Sim, sério por demais.

- Urgente?

- Sim. Quero falar sobre nossa casa. - dizia Eloisa.

- Nossa? - perguntou o surpreso Pedro Delmar.

Nunca um dissílabo havia tomado tanta dissonância e discrepância ao ser ouvido.

Ela já tinha organizado tudo, em três semanas que se conheceram. E lá estava ele, pronto para ingressar em um novo lar, deixar a sombra do que fora a calmaria dos anos com Florbela em sua vida e embarcar nas revoltas águas da luz que envolviam a paixão por Eloisa.

- Foram tuas palavras. - dizia a jovem mulher, quase que enlaçando-o no corredor.

Pedro sabia do seu poder de oratória. Era isso que o fazia um brilhante poeta, o dom da palavra.

Ela continuava os elogios...

- Tens a poesia no olhar, olhas com os olhos da alma.

Ele retrucava:

- Isso é apenas uma impressão do teu olhar.

- Até teu nome soa poeticamente... Del mar.. Del mar, Pedro del mar, pedra do mar, terra firme em meio às águas, refúgio, salvação.

Era tudo o que Pedro queria ouvir.

Fazia anos que Florbela sequer ouvia seu bom-dia! Tempo para suas palavras após o amor era algo que não lhe cabia pela manhã. Tinha que trabalhar. Suas palavras foram perdendo o encanto aos seus ouvidos e, aos poucos, foram se perdendo em sua maldita boca, que calou-se, e somente as palavras duras do cotidiano faziam parte de suas vidas. Os galanteios saíram de moda. Florbela, deixou de ser a amante, para deixar sobrepujar a esposa, a imaculada dona do lar, objeto que nunca fora o sonho de consumo de Delmar.

E lá estava ele, enroscado por alguém que amava justamente a sua palavra, a sua gramática, a sua semântica. Delmar aprofundava-se cada vez mais em seu vocabulário, causando uma métrica indefinida de paixão, orgasmos, letras, palavras, suor e verbo. Do verbo se fez carne e na carne as palavras ganharam sentido. Em poucos dias, o dissílabo assustador, que é um pronome possessivo, ”Nossa” tomou realmente posse da vida de Delmar, que mudou-se para o casario, ainda sem coragem, é fato, de levar suas roupas e sua preciosa biblioteca, pois orgulhava-se com frequência de possuir verdadeiras raridades.

Por Eloisa, ele deixava tudo para trás. Dizia ela que viriam com o olho grande da Florbela junto, que certamente ela já teria queimado tudo. Mas, Delmar conhecia Florbela, mais que a ele mesmo. Pelo menos, era assim que ele achava que acontecia. Criado em um lar matriarcal por essência, sua mãe sempre se posicionava como a frágil mulher subestimada pela sociedade e dominada pelo marido. Mas, ao fechar das portas, ela era a alfa em seu lar, era quem ditava as ordens, onde o dinheiro seria usado e onde não seria. A palmatória educacional vinha dali também, e, assim, Delmar acreditava conhecer as mulheres. E lá estava ele, afundado nas doces palavras de Eloisa, que amava sua poesia.

Eloisa estava no auge dos 30 anos, com o calor natural da fêmea desta idade, com ancas aquecidas por desejos torrenciais e sede pelo sexo.

Delmar vivia aquele momento com devoção quase santa.

- Vens para encher minha cama com tuas estrofes, inebriar meu corpo com as toscas linhas de tuas mãos, explorar teu vocabulário entre minhas coxas que te esperam...

E, assim, os dias de Pedro Delmar iam sendo preenchidos. Entretanto, Eloisa era mulher de garra, não queria seu homem dividido. Incomodava-se com a Florbela vivendo há poucos quarteirões com as roupas de seu homem, com o nome do mesmo. Não aguentou, explodiu:

- Vais buscar tuas coisas hoje ou busco eu!

Intimou-o!

Pedro queria mais um tempo. Precisava preparar Florbela para o reencontro. Os amigos diziam que havia enlouquecido, que entre tramas e desafetos, desejara a morte de Pedro, como se esta já tivesse acontecido. Dizia aos mais chegados não sentir falta do defunto.

Pedro Delmar lamentava-se por este sentimento. Desejara mil vezes que tivessem se tornado amigos. Mas, como ser amigo de quem o traiu? Pelo menos, ele tinha esta consciência.

Esperou na porta de sua antiga casa. Viu quando Florbela chegou apressada, abrindo a porta, quase como se estivesse escondendo-se da sociedade.

Estava triste, cabisbaixa. Ele não sabia se aquele seria o melhor momento.

Bateu à porta de madeira escura manchada de sol e chuva, que lhe davam um ar multicor que desagradava Florbela, que sempre lembrava a Pedro que precisavam pintá-la.

Pedro tentou afastar seu pensamento de seus problemas cotidianos com Florbela. Seu peito se enchera de Eloísa e era com este preenchimento que seu cérebro deveria funcionar até afastar-se por completo de Florbela.

Bateu mais uma vez, sem retorno. Sabia que ela estava no interior da casa, pois a havia visto entrando.

Olhou pela janela dos fundos. Viu-a com suas roupas na mesa, olhando-as, chorando, velando-as, como se vela um defunto. Ao seu lado, uma garrafa de gin, bebida preferida de Pedro. Pegou o copo e sugou o liquido como um bebê se deleita no leite materno. Arremessou o copo na parede quando este pareceu vazio demais. Porém, vazio era seu coração, vazio de vida, vazio de Pedro, vazio das palavras de Pedro, vazio do poético homem que veio como onda del mar invadir sua vida e torná-la náufraga de sua própria existência. Virou a garrafa em seus lábios, como se fosse possível tragá-la por completo, ou como se fosse possível que ela fosse tragada para dentro do frasco em um movimento de imersão contrária.

Pedro decidiu ir embora, voltaria outra hora. Foi quando Florbela o viu, inerte em sua janela.

Ele não poderia mais fugir.

- Que queres aqui, fantasma? Assombrar-me?

- Não sou um fantasma, Florbela. E sabes disso. Resolvi vir buscar minhas roupas. Por mim, confesso, teria comprado novas. Mas, não quero que fique remoendo sentimentos com a minha presença em teu armário.

“O que ele sabia de sentimentos?” - pensou Florbela. - “Um homem que nunca derramara uma lágrima sequer por mulher alguma!”

- Não entendes de sentimento. Só entendes de poesias! Das tuas infelizes poesias! - retrucou.

- Só entende de poesia quem tem sentimentos. - respondeu. - Ou quem nunca foi feliz de fato, pois os poetas mais felizes criaram suas poesias mais sublimes, em momentos de infelicidade.

- E o que fui eu em sua vida? Uma Frase? Um Epigrafo? Ou a sombra de um epitáfio maldito?

Pedro sentiu os olhos esquentarem como brasa. Entendia o que Florbela dizia. Queria abraçá-la, dizer o quanto a prezava, mas que sua paixão era outra e precisava daquele sentimento avassalador. Respondeu:

- Hoje és um ponto final.

A fúria aumentou, feriu, explodiu.

Florbela pegou a faca que estava na mesa e ameaçou cortar as peças, mas, covardemente, desistiu, frente aos olhos de Pedro.

Juntou tudo rapidamente em uma sacola, abriu a porta da frente, sem olhar para a cara de Pedro, com um dos braços estendidos em direção à mesa da sala, mostrando ao ex-defunto o caminho para a retirada de seus únicos bens.

Como um cão Viralata, que se acomoda a qualquer situação, pegou suas roupas e sentiu seus olhos vazarem. Seus olhos estavam cheios de Florbela, tão cheios que não cabiam nas órbitas, pareciam brasas.

Retirou-se.

Chegou em casa. Eloisa estava lá. Não gostou de vê-lo entrar cabisbaixo, sem os livros.

- Não deu para trazer tudo, senti pena de Florbela.

- Como pena? Não sentes pena de mim, que tenho que me envergonhar em cruzar com esta maldita diariamente e fazê-la engolir que tu és meu? Sentes saudades dela não é?

- Não, de forma alguma!

- Andaste chorando, Pedro?

- Nunca chorei e nunca irei chorar por mulher alguma.

Pedro Delmar não entendia aquele sentimento de posse que ultrapassava o respeito pela mulher que havia lhe aturado tanto tempo. Ele estava confuso, inebriado por tantos sentimentos contraditórios e direcionados somente para seu interior, como um câncer consumindo seu eu.

Resolveu voltar no dia seguinte. Buscaria os livros e realmente daria um ponto final.

Manhã clara, sol quente. O suor escorria por baixo do chapéu, a única sombra por perto.

Estava experimentando um misto de sentimentos. Pensou em sentar-se à beira da calçada e escrever. Tantos sentimentos poderiam render-lhe um bom poema.

Mas, sua inquietação era para encontrar Florbela e, de uma vez por todas, enterrar aquele olhar que lhe consumia em brasas e deixava os seus olhos arderem como se fossem dela.

Bateu à porta.

Os olhos estavam novamente em brasa.

Ela gritou do interior da casa.

- Entre!

Na pequena vitrola, ouvia a música de Edith Piaff, em um som melodioso que se espalhava pela casa.

Lá estava ela, descalça, com um vestido solto, claro, como Pedro nunca a havia visto vestindo.

Em uma das mãos o copo de gin.

Ele tentou pegar o copo, ela foi rápida.

Florbela riu da ingenuidade dele. Lembrou-se das palavras do presbítero de sua igreja... Das trevas fez-se a luz!

Era este o recado! Uma metáfora que serviria para todos os dias. Só naquele momento de treva ela pôde entender. E foi mesmo como se a luz ali se fizesse.

E das Trevas fez-se a luz.

Da luz, iluminou-se seu eu, da luz renasceu a Florbela que tinha a alma perdida de sonhar Delmar, da luz nasceu uma nova mulher, jovem, feliz, que estava apagada atrás de tanta treva.

- Vim buscar meus livros! - repetiu.

Florbela olhou-o. Viu o vermelho de seus olhos no escuro e não acreditou no que via.

Abriu violentamente a janela. Precisava entender aquilo, precisava de luminosidade para ver aquilo de perto. Ele não estaria chorando.

Aproximou-se de Pedro, olhos marejados, olhos Del mar, quentes, em brasa, ardentes.

Ela riu com vontade, com covardia. Ele chorava por ela. Ali renascia Florbela.

Então Pedro, a pedra, chorava? Era isso mesmo?

Pedro abriu os braços para aninhá-la como se seu abraço fosse capaz de perdoá-lo.

- Eu te amo Florbela.

Ela passou por ele ali, de braços abertos, passando pela porta escancarada, deixando o rastro de quem fora, abrindo a vida para quem realmente era.

No ar, deixou o cheiro de flor, o aroma das laranjeiras, adentrou pela casa.

Seus passos descalços ganharam a rua. Os olhos marejados de Pedro derramaram-se na soleira da porta desbotada, irritantemente ardentes, transbordando Pedro nas calçadas, como uma despedida de Florbela.

O vento anunciava uma chuva de verão, arrastando as mágoas da rua, afastando os amores, ventando e entrelaçando as vidas, levando pra longe a presença da flor da rua das laranjeiras, levando pra sempre Florbela.

Em homenagem aos poetas Florbela Espanca.

Izabelle Valladares

Izabelle Valladares Mattos
Enviado por Izabelle Valladares Mattos em 04/04/2015
Código do texto: T5194482
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