O TERÇO E O PIERCING

Na rodovia absolutamente deserta, o carro capotado apresentava os primeiros focos de fogo. Um incêndio era iminente. Tamires não perdeu tempo, livrou-se do cigarrinho de maconha que fumava tranquila, escondida atrás dos arbustos à beira da estrada e correu para tentar salvar alguém. Havia um menino de uns oito anos ainda com vida, preso no cinto de segurança. Um homem e uma mulher mortos. Viu um papel dobrado, todo escrito com letras miúdas, e um colar cujo pingente dourado tinha a forma da parte esquerda de um coração partido ao meio, que saíam do bolso da calça do homem, o condutor do automóvel. Inadvertidamente os pegou. Conseguiu salvar a criança momentos antes da explosão, que clareou a noite com vermelho e calor; assim, feito grito furioso do inferno.

Depois do enterro do casal, o menino órfão foi morar com a única irmã de seu pai, a tia Lorena, mulher de quarenta e poucos anos, católica fervorosíssima, solteira e firme defensora dos modos castos. Os cabelos já levemente grisalhos, sempre os trazia presos em coques ou tranças. Nas mãos ou pendurado no colo, o inseparável terço de contas prateadas. Ah, como foi difícil para o pequeno Ricardo adaptar-se à nova realidade de castrações. Não que os pais fossem tão liberais, mas pelo amor que tinham, permitiam que a existência o tocasse com alguma leveza. Logo que chegou, foi obrigado a frequentar o catecismo, fazer primeira comunhão e ir à missa, caso não fosse possível todos os dias, pelo menos aos domingos. Ele detestava. Aliás, era uma tortura. Sua vida era uma tortura.

Os afazeres da tia em seu emprego na casa paroquial aumentavam a cada dia e, não tendo mais condições de conciliar os cuidados com o sobrinho às obrigações com seu patrão padre, viu-se forçada a contratar uma babá que fizesse também os serviços básicos da casa. E tamanha foi sua surpresa ao ter, entre as candidatas que se apresentaram, a mulher que salvou Ricardo no dia do acidente, Tamires. Na verdade, ela procurou a tutora porque se disse imensamente desejosa de rever a criança, mas ao saber da vaga, com experiência em serviços domésticos entre tantas outras atividades, de cuidadora de cachorro a atendente de telemarketing, manifestou interesse. A despeito da impressão nada satisfatória que despertou em Lorena, por seus cabelos curtos com mechas roxas e verdes, camiseta justa, jeans rasgado, uma tatuagem de leopardo em posição de espreita no braço esquerdo, próxima do ombro, e um piercing no nariz, Tamires ficou com o emprego. Alguma coisa que transcendia a aparência na contratada cativou a contratante. E além de tudo, sentia-se em dívida, não deveria esquecer-se de que a moça colocou a própria vida em risco naquele salvamento.

O menino sentiu uma afeição enorme e imediata pela babá. Talvez por gratidão, talvez por uma confusa sensação de cumplicidade, não sabia direito. Sabia simplesmente que gostou demais da novidade. E tinha razão para gostar, pois Tamires coloriu sua vida, os dias não eram mais aquela mistura de cinza e fosco. A empregada ouvia blues, rock. Ouvia Nirvana! Tudo escondido da tia, é claro. E gostava dele, fazia-o sentir que sua existência tinha importância para ela; diferente de Lorena, que o tratava com uma frieza cortante feito faca amolada. Às vezes, parecia até que o evitava. O menino e sua nova amiga passavam as tardes conversando, dividindo descobertas. Ele descobria sobre músicas, sexo, crenças, pequenezas e grandiosidades humanas e ela, sobre a possibilidade de enfeitar a vida no sonho.

Tamires, com a astúcia própria dos felinos famintos, observava o comportamento de Lorena que, nos raros dias de folga, entre uma missa e outra, permanecia trancada no quarto. Algumas vezes, a empregada chegou a perceber os olhos da patroa inchados de choros noturnos. Havia mistério ali e isto a excitava demais. Certo dia, sozinha em casa, entrou no quarto da mulher para fazer a faxina. Sabia muito bem que a tutora não permitia que entrassem no seu quarto quando ausente, mas como ela adorava transgredir... Encontrou várias anotações em bloquinhos pautados, citações bíblicas, pensamentos, versinhos de amor. A beata era romântica. A partir daqueles escritos, objetos, enfeites, mergulhou sem pedir licença no universo íntimo de Lorena e a cada descoberta, sentia-se impelida a mergulhar mais fundo. Que personalidade interessante, aquela. Uma pessoa tomada pelo desejo de vida, mas que o continha a custo sobre-humano dentro de si. De tanto mergulhar, invadir a privacidade da outra, achou um pingente parecido ao que apanhou do bolso do falecido pai de Ricardo, a única diferença era que neste brilhava o lado direito do coração partido. No exato instante, Lorena chegou.

— O que está fazendo aqui? Já disse que não gosto que entrem no meu quarto!

— Desculpa, quis aproveitar o tempo e adiantar a faxina.

— Não te dei essa liberdade, agora você foi longe demais! O que é isso em sua mão? Me devolve isso! Você está me roubando?

— Não, não, apenas achei aqui, na beirada desta gaveta, já ia guardar.

— Não quero mais você em minha casa! Vou acertar suas contas!

— Espera um pouco.

Foi então que tirou do sutiã o bilhete e o pingente dourado que trazia a parte complementar do coração.

— Acho que isto lhe pertence.

— Onde foi que achou isso?

— Estava no bolso de seu irmão.

— Claro que você leu, né?

— Não pude resistir, mas fique tranquila, quis revê-los também para devolver, mas quando conversamos sobre o emprego, não sei bem explicar por que, não tive coragem. Acho que minha curiosidade foi maior, queria descobrir mais.

— Isso não se faz. É traição!

— Não sou nenhuma santa, aliás, sou ateia, mas possuo algum caráter. Tenho minhas fraquezas, meus vícios mundanos, como você diz, mas sou apenas curiosa. E quis ficar perto do menino sim. Havia perdido um filho poucos dias antes do acidente e quando me vi salvando o Ric, alguma coisa de bonito e esperançoso voltou em mim.

— É Ricardo! Mas me diga, o que você quer agora? Dinheiro? Só que eu não tenho.

— Adoro dinheiro! Só que não me sentiria bem enchendo o bolso de uma forma dessa. Acredite, eu me afeiçoei a você também. É uma mulher fascinante. E ainda mais fascinante é conhecer alguém que teve um caso de amor com o próprio irmão. "Ah, meu doce encanto, leva contigo este pingente para ter a certeza de que possuis a metade de mim, a metade do meu coração partido por tua ausência. Eu te amo!" Nossa, que bilhete romântico!

Àquela altura, Lorena estava sentada na cama, com a cabeça apoiada na mão direita sobre a cabeceira, com todo o rosto ensopado de lágrimas.

— Está doendo demais! Está insuportável! É torturante olhar pra esse menino, que me traz tudo de novo na lembrança.

— Você sabe muito bem que o menino não tem culpa. Com o tempo, essa resistência acaba. Olha que eu já vi muita coisa nesta vida doida, mas um amor ardente assim entre dois irmãos, nunca.

— Ele era meu irmão adotivo.

— Ah, pelo menos o incesto não era tão pecaminoso assim. Aliás, acho que nem era incesto, né? Sei lá! Já até sei por que não ficaram juntos, papaizinho e mamãezinha e padrezinho jamais aceitariam, né?

Neste instante, não podendo mais conter o maremoto devastador que se agitava em seus nervos, Lorena respondeu aos gritos:

— Meu amor não era dele, era dela!

— O quê???

— Sim, tínhamos um caso de amor há muitos anos, amor de verdade, desses que desmancha e reconstrói a gente num passe de mágica. Éramos amigas de escola, estudamos juntas num colégio católico desde os onze anos. E nos descobrimos aos poucos, desvendamos nossos desejos coincidentes, vasculhamos nossos corpos juntas. Mas logo entendemos que não poderíamos viver aquilo, era pecado, era ofensivo a Deus. Foi então que tive a ideia de apresentar Walquíria para meu irmão, na esperança de que eles se envolvessem e até se casassem. Seria um jeito de ficarmos próximas sem levantarmos suspeitas. De início, ela não aceitou, mas depois acabou se rendendo, porque também não conseguia ficar longe de mim. E nosso plano deu certo. Ele se apaixonou perdidamente por ela e logo se casaram. Ricardo nasceu um ano depois.

— Nunca ninguém desconfiou de nada? Como pode? Que povo lerdo!

— Nossos pais morreram entre um e dois anos após o casamento e não tínhamos outros irmãos. Vivíamos os três. Eu morava aqui sozinha, mas eles sempre vinham me visitar.

— Então, o bilhete e o pingente deveriam estar com Walquíria e não com seu irmão.

— É que eles foram passar o final de semana no sítio de um casal de amigos e de lá, Walquíria me ligou apavorada, dizendo que o marido havia encontrado o bilhete e o pingente e soube de tudo. Tomou os objetos dela e disse que iriam voltar naquele momento. Nem terminou de falar, o telefone desligou de repente. Ele estava muito nervoso, não tinha condições de dirigir. Eu sou culpada pelas mortes do meu irmão e do amor da minha vida.

— Você não tem culpa de nada! Foi mais vítima do que qualquer um deles. Você e Ricardo são vítimas sim! Só te peço pra não punir o menino como a sociedade e seus próprios pais puniram você. Às vezes me dá a impressão de que quer descontar nele toda a sua frustração.

Ambas de pé, aproximaram-se devagar e ainda chorando, Lorena disse:

— Você tem razão, eu vou tentar amá-lo, acho que vou conseguir sim. É um menino adorável.

— Eu tenho certeza de que vai.

Um silêncio de afago e acolhimento propagou-se no quarto por alguns instantes. Já bem próximas, Lorena sentiu as mãos de Tamires soltarem seus longos cabelos grisalhos e constantemente presos, tocarem seu rosto, como se tocassem a pele de um anjo. E se deixou beijá-la. E ouviu a voz doce da companheira sussurrar-lhe ao pé do ouvido, enquanto lhe retirava o rosário do lindo pescoço:

— Se permitir, posso cuidar de você. Walquíria se foi, mas eu estou aqui, sem que nada ou ninguém nos perturbe. Quando é preciso, o amor costuma exercer sua infinitude numa outra pessoa, numa outra chance.

E mais um beijo apaixonado selou o assentimento.

Marco Aurelio Vieira
Enviado por Marco Aurelio Vieira em 09/06/2015
Reeditado em 11/06/2015
Código do texto: T5271537
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