Ela

Não há maior esbelteza do céu quanto a caída da tarde em crepúsculo. Desce um lençol de estrelas e cores nobres, que decoram o pensamento com as flores da primavera. E lembro-me de assistir a este espetáculo de calmaria que promove a natureza ao fim de cada dia. Uma chuva de diamantes invisíveis e ventos frescos, que ganham a penumbra pelo luar de prata.

Tão bonita era a avenida, que sempre a levava em meu pensamento por sua trilha. E ainda que com os ruídos graves de automóveis, ou ramagens farfalhadas pelo efeito de ventanias; ou talvez até mesmo um orvalho que caía junto ao lusco-fusco, não deixava de sentir o prazer de vê-la em meu pensamento, da forma que somente eu podia imaginar.

Por todo o caminho não pude deixar de nenhum momento lembrar de seu rosto sempre ornado por um sorriso calmo e suave. E também um rico olhar, que transparecia certo mimo junto à inocência. E contemplando esta silhueta que havia idealizado, dei-me conta que já chegava na esquina onde devia seguir.

Num único instante, como que se a fantasia tomasse vez na matéria, tive uma visão que instantaneamente me fez reter o passo. À bancada de um armazém, lá estava ela. A percepção fora tão momentânea e direta, que fiz por alentar a caminhada; tudo para saber por onde seguiria a moça.

Já me havia grande desejo de chegar a ela e começar qualquer diálogo que fosse. E minha mente engendrou bastante hipóteses; mas nunca me ocorrera uma impulsão para a atitude, pois oportunidade já houvera. E esta surgiu em uma noite do ano anterior, em que a vi só numa paragem de ônibus. A obervei e tentei criar a interpretação de o que havia de ter naquela moça, que me chamava a atenção por todo o tempo.

Já nas últimas noites este meu olhar fixo não parava de a observar, pois era comum a ocasião em que nos encontrávamos pelo intervalo de aulas. Eu tinha o fetiche de me meter a andar pelo colégio, e sempre a via com unicamente dois destinos: o banheiro ou a cantina. Assim, a reciprocidade da troca de olhares era sumária. Mas algo ainda havia.

Como o leitor já foi colocado ao íntimo deste mistério, para realçar a palavra devo contar sobre uma noite específica; a qual estava eu na muda contemplação do arvoredo que orlava o pátio principal, e de repente vejo-a descer na companhia de duas amigas. Ao cumprimentar um outro que conhecíamos, tive uma propulsão a seguir em sua direção, ainda que nada tivesse a dizer. Porém, rapidamente contive-me, pois não gostava de arrojos.

Ocorreu que ela percebeu este ato, e quase me veio à direção também; somente não o fez porque eu detive-me. Decerto a moça nada entendeu. Somente desceu as escadarias e foi ao que tinha de fazer. Assim, consegui impedir meu próprio desejo.

Já voltando à noite pela qual inicio este texto, deixe-me seguir com a narração; e a cena vem a ser a posterior de sua saída do armazém. Ela esperava uma passagem de carros para poder atravessar ao outro lado. E eu, totalmente latente, fiquei a poucos metros, pronto para aproveitar o ensejo.

Conseguimos atravessar e como era o caminho, seguíamos reto e viraríamos a primeira rua à esquerda. De certo aparentaria estranho que a velocidade de meus passos aumentasse de uma gradação radical de um momento para outro. Houve aí um plano.

Sabia eu que teríamos de atravessar a rua para chegarmos ao colégio que frequentávamos. E o cálculo pré-definido pode ser o prelúdio da precipitação. E foi o que houvera comigo; pois cheguei a cruzar de uma calçada à outra, mas ela não.

Como rápida solução, e também por saber que ela devia varar a rua, abaixei-me para amarrar um suposto cadarço solto. E fiquei ali, revirando-o e acocorado ao chão como se encontrasse tamanha dificuldade em atá-lo. Entrementes sentia que a moça se aproximava.

Ao botar-me em pé, a primeira impressão foi o sorriso que ela me concedeu. E fora um riso de simpatia e comprazer. Fora inevitável sorrir de volta, mas sempre com minha manha dos muxoxos, como se houvesse em mim o medo de sorrir. Digo que fora muito tímido, diferente da gentileza dela, que fora natural e delicada.

E este sorriso fora o ingresso para uma boa conversa que se iniciou. Antes ofereceu-me o que comia, que rejeitei com cortesia. Também perguntou como me chamava, e eu revelei. Em seguida sondei seu nome, e ela me disse. Elogiei-o, pois realmente acho que seja um nome bonito. Lembrava-me princesa.

E seguindo o assunto, indaguei se morava pela redondeza. – e esta questão já era parte de meu projeto para quando nos falássemos. – Disse-me que não, mas sim na Vila Alpina, porém havia muitos conhecidos pela Mooca. Contou-me também que julgava-se uma grande caipira na relação de bairros, pois era “ Vila isso” e “Vila aquilo”. Realmente São Paulo é um coletivo de vilas, jardins e parques.

Contou-me também que havia morado, ou ao menos conhecia parte da Ibitirama, só não sabia dizer qual altura. Assim pude me juntar a ela, pois menos roceiro nos bairros internos não era. Disse que além da Mooca e da Vila Prudente, não sabia quase nada sobre outras localidades dali, e eu não tinha desculpas, pois meu pai era um fluminense que conhecia São Paulo como as riscas de suas palmas.

Fizemos seguir aquele sutil diálogo que criava um início de pura intimidade. E esta conversa donairosa parecia ter a tendência em diminuir a velocidade de nossos passos ao destino. Pois falamos de religiões, de salas de aula, e até lembro-me de ter citado um conflito de filosofia dentro da mesma doutrina de ideias, quando fiz analogia entre as palavras de Aristipo de Cirene e Epicuro sobre o mesmo Hedonismo.

Porém, todo este jogo de palavras que possuía a função de unicamente iniciar uma conversa, era jogado ao ar e levado pelo vento. Tudo o que podia sentir era o timbre doce de sua voz. Não haveria mais nada que desejaria naquela noite, somente continuar a sentir sua presença. E ainda que emudecêssemos ao limite do fastio, estar ao lado dela me revelava novas cores para o céu.

Desde que olhei em seu olhos pela primeira vez, já podia sentir um raio a mais que o anoitecer, era um encontro à luz da lua. Havia ali um frescor especial que as estrelas soprovam sobre nós. E por este motivo, pude a sentir confortável a meu lado. E eu; nada mais era de minha razão, a não ser continuar a contemplar aquela moça com o afago dos olhos.

Dessa forma os instantes seguintes tornaram-se mudos e admiradores. Observava bem seu talhe feminino. Suas vestes pareciam-me nobres. Era graciosa e esbelta. Parecia alinhar maviosidade, ternura e classe. E o que a caracterizava com autenticidade era o uso contínuo de saias.

Este é sem dúvida um fator religioso, e decerto a fazia sentir-se bem. Também há um fato interessante neste detalhe: muitas línguas presunçosas criticam a formalidade de algumas comunidades protestantes, afirmando que suas vestes dão uma impressão de solenidade e austeridade, e assim torna descômodo e obrigatório o caminho do bem. Esta é uma ignorância que parte de um princípio xenofóbico, pois o vestuário é o primeiro predicado de uma cultura. Assim, quem não sabe respeitar culturas, também não as possui. São apenas incultos.

E graças a esses atributos formais e bem alinhados, não pude perder os olhos na procura de curvas do corpo feminino. Sou grato por não ter tido acesso a esta vulgar contemplação. Ao contrário, o que mais me conciliava a atenção eram os olhos negros, os cabelos castanhos e as mãos afiladas. E todo este conjunto de traços e desenhos naturais que formavam a imagem dela, me permitia sempre um sonho limpo quando a via. Prendia o olhar por onde passava. Tentar notar cada mínima ação, escutar cada respiração em que levemente arfasse os tomos delicados. E sempre, em qualquer instante, estar próximo para segurá-la quando caísse. Pegar em suas mãos, ir ao fundo de seus olhos e ao espelho da alma, e transformar em palavras este sentimento que se agitava e abria todos os caminhos do coração.

Por fim, chegamos ao colégio. Nossas salas encontravam-se no primeiro andar. Ela subiu alguns degraus e virou-se. Pude contemplá-la melhor sem as sombras do anoitecer. E então o sentimento que permanecia latente espanejou as cortinas do mistério . Estava ali, diante de mim.

Eu me apaixonava por aquela moça, mesmo antes de ter o conhecimento de seu nome; e não havia nada que eu não fizesse para vê-la sorrir. Não a conhecia ao certo, mas eu a amava naquela noite. As novas cores do mundo me renasciam apenas por vê-la próxima de mim. Fora a noite mais bonita de todas, e nunca poderei eu me esquecer de seus olhos ou do timbre de sua voz.

Se houvesse em mim a faculdade de paralisar o tempo, teria-o parado naquele momento; assim ainda estaríamos lá. E eu poderia estar ao lado dela para sempre. O maior sentido da vida, seria não vivê-la, mas sim desfrutá-la numa única contemplação.

Vinícius Thadeu
Enviado por Vinícius Thadeu em 24/07/2015
Reeditado em 24/07/2015
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