Um toque masculino

Casa de mulher sem flores, sequer uma plantinha na varanda, um bichinho deitado no sofá? – resmungava o recém-chegado a uma vida repleta de pilhas de processos criminais, que se amontoavam pelos cantos do pequeno apartamento. Vida sem previsões, acordos, hora marcada. Ainda assim, sujeita a encontros inesperados numa cafeteria em plena segunda-feira de manhã, quando se conheceram. Oi tudo bem, posso pegar o jornal, o dia promete ser quente, você é daqui? Eu sou biólogo. Ah, você é advogada? Gostaria de ter feito Direito, mas para lutar pelas causas ambientais. Dez minutos de conversa. O suficiente para a doutora especialista em mentes criminosas ignorar o perigo e se render a pequena surpresa do cotidiano. Novos encontros, sempre as sete, antes do trabalho. Amizade a um passo da paixão. Troca de telefones, mensagens, beijos. As diferenças no início sempre divertidas, inspiram o dia seguinte repleto de urgências, de saídas antecipadas do tribunal e passadas rápidas em casa na hora do almoço. Ele sempre chegava antes e a esperava. Chegava atrasada e ofegante na maioria das vezes. Sempre com horários agendados, audiências intermináveis e clientes obsessivos. Desculpe, estou com pressa; a gente se vê amanhã? prometo ficar mais tempo. Numa dessas esperas observou o apartamento sem nenhuma forma de vida. Estantes abarrotadas de livros jurídicos davam um tom severo ao ambiente. Até os quadros eram sóbrios, sem cor e leveza. Incomodou-lhe a falta de alegria e feminilidade do lugar. Metódica, virava noites debruçada em processos, estudando defesas. Naquele dia quis fazer-lhe uma surpresa. Talvez não lhe sobrasse tempo para tornar a vida menos concreta, sem lembranças do trabalho em todos os cômodos. Comprou-lhe flores, plantas e até um aquário com vários peixes coloridos. Empilhou livros num canto da sala e guardou a maioria dentro dos armários. No quarto espalhou porta-retratos sobre as cômodas. Na cozinha colocou pequenos vasos com hortelã, alecrim e salsa. Na estreita varanda, antes repleta de caixas de processos, pendurou uma rede e nela descansou o coração enquanto esperava ansiosamente a chegada dela.