VARAL DE LEMBRANÇAS - UM CONTO

"Este texto é a versão em conto do soneto VARAL DE LEMBRANÇAS de minha autoria. Também é uma homenagem aos meus avós paternos, os nomes deles foram usados no conto, assim como o nome de minha irmã mais nova. Fora isso, os fatos narrados são mera ficção."

VARAL DE LEMBRANÇAS - UM CONTO

ANNA estava perdendo a lucidez paulatinamente e sabia disso. Não podia fazer nada para impedir, então tentou se conformar. Era difícil. Uma pessoa como ela, cheia de afazeres e projetos, suportar aqueles vazios na memória, e aquelas incapacidades que iam se agravando dia a dia...

Contrataram uma enfermeira. O filho contratou. Sabia que era bem cara porque a nora comentava pensando que ela não ouvia. Ouvia sim , mas esquecia também. Esquecer às vezes era bom, pelo menos não ficava magoada por muito tempo.

A enfermeira era boazinha, paciente. Levava a velha senhora para passear, dava comida na boca e remédios. Mas era durante as quintas-feiras que os seus escassos dias ganhavam algum significado. Era nas quintas que a neta mais querida passava em sua casa e a levava para o sítio.

A neta era médica e nos dias de quinta-feira tinha folga, então levava a vó para passeios pelo velho sítio, onde a idosa havia passado a infância e boa parte da vida adulta.

Nestes dias, Anna pedia para rever álbuns. Ia pelos cômodos da casa, empurrada em uma cadeira de rodas, mexia na roupa da cama, nas toalhas bordadas que um dia foram usadas para cobrir as mesas de madeira maciça, abria guarda-roupas.

Mas o que ela achava melhor era ficar perto das janelas com seus bordados no colo, criando figuras já sem nenhuma precisão. Dizia que estava bordando o enxoval do casamento da neta. Carolina sorria, concordava. Havia se casado há cinco anos, mas a avó não lembrava. Então, apenas concordava e sorria.

Carolina a colocava perto de diferentes janelas, para que tivesse lembranças variadas. Naquela quinta-feira, em especial, estava sentada na sala.

Lá fora, havia um varal que não devia estar ali.

Os caseiros haviam passado um varal na frente da sala de estar da casa, a sua entrada principal. Anna se ressentia com aquilo. No jardim, onde hoje se viam roupas penduradas, ela havia casado.

Estava cada vez mais difícil pensar. Amanhecera ofegante, e cogitara recusar o passeio. Tentou falar, mas apenas balbuciou gemidos intraduzíveis. Sentiu uma dor na garganta. As lágrimas chegaram.

A neta a levou para o sítio, achando que ela gostaria. Agora estava sentada lá, olhando com desgosto para o varal.

Foi quando a D. Rosa tirou as roupas feias e colocou no lugar os lençóis brancos, recém lavados, quarados nas pedras do rio e alvos como coco, que os pensamentos ganharam novas feições. Eram lençóis de um algodão bem fino, no que dava o vento, levantavam muito alto, quase soltando das cordas. FOI AÍ QUE ELA SE LEMBROU.

...

O jardim voltou a ter flores. Suas preferidas: as margaridas. Sob o caramanchão, estavam ela e seu noivo. O tecido branco não eram lençóis voando, mas seu vestido de seda, de cintura bem marcada. O véu ficava caindo, o vento vinha e embaraçava o cabelo solto, loiro.

Na varanda o acordeon e a viola. Os convidados riam. A tarde passava do azul para o laranja. De repente caiu uma chuva e todo mundo correu para dentro. A cozinha ficou lotada e as crianças aproveitavam para descobrir os doces debaixo dos panos.

Logo estiou e subiu aquele aroma de sol com terra molhada. A carne estava encharcada e foi levada para o fogão à lenha. O cheiro da carne renovada encheu a casa de sabor.

O dia estava tão lindo que não se incomodou com aquela dorzinha no peito, aquele certo desfalecimento. Devia ser o vestido apertado, aquelas muitas anáguas, a barra com franjas um pouco manchada de lama.

O mal estar aumentou e a noiva pediu para recostar-se na cadeira. José, o noivo, trouxe água fresquinha do pote para que ela bebesse. Tirou o lenço do colete e passou em sua testa. José, quantas saudades! Não sabia bem porque, mas sentia saudades, como se ele tivesse voltado, naquela tarde, de uma longa viagem.

As ideias confundiam-se em sua cabeça. A mãe de Anna chegou perto dela. Um carinho enorme, uma vontade de abraçar encheu seu coração.

- Mamãe...

Enquanto olhava as pessoas ao seu redor sentiu uma súbita leveza. Sua mãe e seu pai pegaram suas mãos. Eles a ergueram da cadeira. Sentia-se muito bem. Alguém chorava em algum lugar, uma criança talvez. Não quis ir ver, deixou-se levar, docemente. Sentia-se cheia de saúde. Tudo ao redor ganhava cor, força, aroma, viço. Tudo brilhava.

- Venha, Anna. José a chamava. - Venha.

...

No quarto, onde a velha senhora estava deitada e sua neta chorava. Estendeu o lençol até cobrir sua cabeça. Olhou para o relógio da parede. Anotou a hora: seis da tarde. A ambulância já fora chamada. Inútil. O coração de Anna havia parado, para sempre.

Iolandinha Pinheiro
Enviado por Iolandinha Pinheiro em 29/07/2015
Reeditado em 22/05/2019
Código do texto: T5327692
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