Boca escancarada de calor

Mãos tão jovens cuidavam hábeis de fazer uma trança nos finos cabelos castanhos. Priscila olhava-se no espelho enquanto trabalhava nisto, e inevitável era sorrir; sentada no tamborete de frente ao espelho do toucador. Sempre sorria. Sorria esquecida, vivendo apenas aqueles momentos: raros.

Tantos perfumes, cremes, pentes, fechos sobre o toucador, e no meio a tudo isto uma feliz bailarinazinha na ponta de um só pé de dentro de uma caixa de música aberta. A musiqueta é tão fina, tão suave, tão doce, sim doce como é fino o doce de fio de ovos. Tudo na delicadeza de uma manhã em névoa. E olha suavemente o sol saindo de dentro das cadeias embranquecidas de neblina por entre galhos hirtos de eucaliptos….

Priscila joga a trança para trás, e o rosto se mostra oval, de olhos castanhos grandes, o nariz arrebitado….Ah, suspira-se por dentro...

É hora de passar um suave batom bege nos lábios delgados. E por que aquele sorriso a toda hora? Explica-se que é o que causa o olhar para o espelho.

As duas mãos repousadas sobre a face diante do espelho, nos cotovelos fincados a base, e a alegria espantada de ver-se: sou eu.

Priscila acordava cedo para se cuidar e para se notar. Notou-se, era, acontecia, ainda é...

-sou linda – falou num balbucio qualquer de voz corajoso. Confessar a vaidade a si mesma era um ato de coragem. Um valente ato de coragem que cabe principalmente a mulher.

Priscila conhecia-se, existia-se.

O seu viver tinha sabor dos batons que usa, e como usa. O viver é delicado, é esta sensação fugaz de bem-estar como uma música tão boa e logo quando ela acaba...Ah acabou...

A caixinha, no toucador, com a bailarina num pé só, fina como cristal de açúcar dos doces na sua musiqueta….

Assim se vai a vida na sensação de bem-estar.

Se experimentar sair dali agora que a manhã acontece feérica. É domingo, todos acordam tarde, ela finge que ainda não acordou.

Logo vai aparecer, por entre os galhos de eucaliptos, um raio de sol fraco que mais parece com o chilrear de pássaros.

Priscila finge que ainda é noite, e dentro do seu quarto, se olhando no espelho. A cama bem ao lado tão estreita e já arrumada. Ela já sonha com tempos futuros. Onde a paisagem não é tão nítida, e ela dentro de uma nebulosa. Ela não consegue se ver, não se ver como se ver tão nítida no reflexo daquele espelho do toucador.

Uma noite bem longe desta que já passou – fora um sábado também – e era uma noite fria como aquela em que passara só e tão protegida. Está noite tão longe não tinha nada de mágico. Tudo tão simples. Sentada numa escadaria, bem lá no patamar ela olhava para baixo onde toda escadaria tomava-se povoada, e havia muita fumaça, violão e som de vozes tentando se captarem no ar como recepção de antena. Priscila sentia mão morna na sua – tonta de fumaça e vinho – pensava, pensava...no antes de sair de casa: a mãe colocava um pudim no forno, nestas formas em forma de cone. O pudim saía tão bonito quando colocado num prato com a calda escura escorrendo. Ah uma flauta tocando fina lá no inicio da escadaria, é como a musiqueta da caixinha com a bailarina na ponta do pé. A musica fina da flauta como o doce de fios de ovos, como a neblina que parece ser uma cortina invisível na manhã de domingo e ela atravessa íntima de mãos dadas com Pader.

Ela podia fazer uma trança no longo cabelo de Pader. A pele dele é tão branca e cheia de tatuagens.

Vamos para a praia Pader? Perguntara certo dia ou fora aquele mesmo dia, sabe que foi lá na escadaria, no topo, no patamar, e ouvia a flauta tocando dócil lá no início da escadaria.

Jamais, jamais, detesto praia, sou branco demais. Ele gaguejava, não tremia, ele gaguejava excitado apenas isto. Queria fazer amor. Ele usava este termo, ela usava por ele. Ele queria dizer que queria transar, mas ela usava os delicados fios de ovos, a fina calda do pudim de leite condensado em forma de cone.

Priscila apenas deseja vê-lo feliz, com ela, num dia de sol. Havia logo um dia de sol, e outros dias de sol forte em seguida. Estavam em setembro! E o que era aquela neblina, cortando em cadeias esbranquiçadas, os eucaliptos.

A flauta tocava doce e fina como os cristais de açúcar e brilhava na noite gelada da rua de subversão e medo. Procuravam-se destinos.

Mamãe deixa um pedaço de pudim para mim – pedira tão infantil no traje esfarrapado e perto de punk – eu volto, o mais tardar, de manhã cedo.

Sentindo a mão de Pader na sua, o conforto da solidão que escapa por entre os dedos como fios de ovos que ela recebia da colher de pau de pedinte que era...Ela sentia a dócil musica da flauta doce vindo lá do início da escadaria. Quem seria? A mão de Pader tão morna e branca com aquele desenho de uma aranha descendo da sua teia.

Pader foi se despindo e ela viu seu peito tatuado, e no meio um coração que abria uma boca, as vezes – bem de longe – parecia uma caveira. Priscila jogou-se em cima dele e sentiu todo morno dele a invadir. Pader era um banho morno. Seu quarto ou muquifo sempre abafado cheirava a discos velhos.

Pader cantava inglês no seu ouvido lá no topo da escadaria, e Priscila fingia ouvi-lo tendo que era a flauta.

Fora do seu quarto a sua casa começava a fazer ruído; era o forno que resmungava ao ser aberto, e já sabe que a mãe vai colocar mais um pudim de... pode ser de leite condensado, pode ser até um simples pudim de pão. Daqui a pouco vai cheirar e o café já cheira, cheira intensamente.

Amanheceu….

O rosto de Pader encosta-se ao de Priscila, no topo da escadaria – e a flauta doce como o pedaço de pudim que a espera – a mornidão de uma carícia dentro de uma noite quase fria.

-Ah, Pader minha mãe vai deixar um pedaço de pudim de leite condensado para mim dentro do forno.

Pader procura os lábios dela, ela os leva de encontro aos dele. Mas aonde estão...e a flauta doce, fina e doce como a calda escura do pudim em forma de cone. O beijo é tão doce como o pudim de leite condensado. O banho morno.

De manhã cedo abstratos num dia que amanheceu tão de repente: que neblina é esta que parece vir destes eucaliptos?

Que lugar é este? Ela quer saber, Pader parece saber, encostando seu rosto no dela, e ela se exclama ao notar que não tem hálito da manhã. Surpresa: não dormimos querida, é o que Pader diz.

Uma cabaninha ao meio de uma clareira dos eucaliptos. Deitam ao balcão desta, tão cansados. Pader ao colo de Priscila que lhe afaga os cabelos, até que ele durma. Ela resiste ao sono para vê-lo dormir, e enxerga o dia branco tornar-se amarelo. É vago, mas acontece sons de carros bem distante...

Ali é apenas um oásis.

O cheiro do café é forte e ela se sente sendo levada. Está fazendo um dia quente de sol lá fora.

Naquele dia ela poderia ter insistido na praia. O sol estava fraco e não ia agredir a pele muito clara de Pader. Só que estava tão cansada e tudo que mais desejava era chegar em casa e encontrar o seu pedaço de pudim dentro do forno ou da geladeira, e um café...Um café – começara a murmurar – enquanto afagava os longos cabelos de Pader. Cantava algo que se lembrara na hora, e Pader ressonava como uma criança. Ele era como uma criança, um ursinho de pelúcia que desejara na infância e o pai nunca a pudera dar. Agora o tinha: Pader, o sentia com o carinho que lhe fazia na cabeleireira quase escura. E corre um fio dourado ou outro ao meio da cor dos fios de ovos dos doces que lhe escapavam da mão.

Priscila escapa do quarto e se incendeia da luz da manhã logo no corredor e ainda ela é mais forte na cozinha. À mesinha redonda o pai ler o jornal no seu pijama de domingo; e a mãe de costas, passa o café na pia, percebendo Priscila a logo dizer:

-Marcelo já foi buscar o pão….

-Eu pensei que teríamos pudim. Não vamos ter pudim nem de pão? – estranha sua própria voz naquela manhã tão abusivamente clara.

-Ah Priscila hoje tá muito quente, já não ver...muito quente, muito calor para se ligar o forno.

Sente seu rosto pesado, e Marcelo seu irmão como um vento forte que passa por ela trazendo os pãezinhos quentes da padaria logo à esquina.

Sente uma dor tão fina quanto a calda do pudim em forma de cone – é saudade – sente o gosto salgado da lágrima tão dentro que escorre no pranto reprimido que estar sem forças.

A mãe coloca o bule de louça na mesa, os pães do saco para o cesto ao centro desta. Ela está tão bela como se nem acabasse de acordar. O sorriso, no entanto, faz rugas no canto dos olhos.

-Vem tomar café Priscila – convida – já escovou seus dentes?

Priscila leva a mão à boca e ouve no silêncio, que a manhã hesitou um pouco no seu alarido de claridade e calor, a musiqueta fina da caixinha de música lá no toucador: a bailarina na ponta do pé. Volta-se para o quarto correndo para fechá-la – e no meio do caminho invadida por calor e suor – pode compreender porque seu amor não quis esperar o verão para morrer.

AUTOR RODNEY ARAGÃO