A Ladra

Suas roupas permaneciam no chão do meu quarto escuro, eu podia ver a luz rarefeita do abajur iluminar sua pele alva, respingada com tranqüilas gotículas de suor que desciam por seu ombro direito. Ela dormia, tão doce e suave quanto um anjo que acabara de encontrar a nuvem perfeita, o desfecho final de sua trajetória. Aqueles olhos, mesmo fechados resplandeciam em malicia e cada energia do corpo adormecido ainda eletrizava meu ser.

Eu estava louco, possuído, sem cura, perdido num abismo de aparências e desejos, do qual jamais sairia com vida. Não enquanto aquela diabinha vestida de querubim estivesse embrulhada em meus lençóis. Durante o dia do mundo, durante a noite, minha. Assim era a vil trajetória de minha bela adormecida com seu toque aveludado e seus sussurros crispados que me devoravam e me consumiam. Linda! Malditas mil vezes, LINDA! Seu sorriso inocente, sua risada infantil, seus cílios curvados e o seu andar felino. Provocava-me com todas as suas armas, me ganhava na penumbra dos meus aposentos e ali éramos apenas nós e mais ninguém.

Eu podia ver a manhã nascer lá fora tão nítida quanto os borrões em seu rosto. A maquiagem apagava as espinhas da puberdade, aumentava os lábios, dava cor às suas feições pálidas, gélidas, frias, mas não era o suficiente para esconder as mentiras. Aquela menina sabia exatamente como me irritar. Ela atraia caras mais velhos agindo com essa falsa maturidade, e sabia disso. Tanto sabia que as roupas diminuíam de tamanho a cada semana, assim como as porções de comida se tornavam cada vez mais débeis e miseráveis. Tentava se equilibrar lindamente naquele salto de quinze centímetros que faziam suas pernas parecerem longas e sensuais. E quem ligaria para um tropeção quando aquelas ondas negras espetaculares caiam em cascatas sobre seus ombros, seus lindos ombros de alabastro, firmes, indestrutíveis, inabaláveis.

“Não vai acontecer de novo...” Ela dizia sempre que eu a flagrava com outrem. Eu perdoava, sempre, inexplicável e inocentemente. Mesmo sabendo que não havia culpa em sua voz, que o seu coração derretera há muito e nem mesmo se cavasse incrivelmente fundo conseguiria encontrar qualquer vestígio de sentimento. Sabia como me deixava louco, me tinha nas mãos, enrolado entre seus dedos por um fino fio de cobre. E como um peixe se sente fisgado por um anzol, eu sou cortado, esfaqueado, vendido, trocado e no final comido por minha triste, porém esperta rainha do drama. Pergunto-me como seria esta bela dama aqui diante de vós e de mim também, sem toda sua mascara, sem todo o pó que a encobre por inteira.

Seriam bonitos os seus gestos sinceros? Sua voz guardaria a mesma paixão ao dizer meu nome? Aquelas mãos teriam tão suave tom de seda? Quem poderá saber?! E são tantas perguntas, tantas duvidas que jamais serão queimadas... Eu gostaria de poder salvá-las, arranca - lá deste mundo cruel e hostil para que jamais sofresse novamente. Veja! As marcas espalhadas em seu corpo, deixadas por ogros, por homens que, diferente de mim, a viram como mulher, e apenas isso. Não como musa, ou tal qual Deusa, mas como mortal.

Eu quero apagá-las! Quero retiras o véu que cobre toda a inocência e pureza de uma alma já cansada de lutar para se sentir querida, e amada. Se estou enganado? Possivelmente. Mas por hora posso apenas beijar-lhe o rosto, calçar os sapatos e esperar até a próxima noite, quando sua mascara estiver melhor colada, seu corpo já usado e seus sonhos completamente destruídos.

Ladra de Tinta Seca
Enviado por Ladra de Tinta Seca em 28/01/2016
Código do texto: T5526025
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