Perfume de meias sujas

E se não enxergasse mais? Por isto fechou os olhos, andando pela casa com os braços levantados para frente. Mas mesmo assim enxergava uma penumbra avermelhada pelas pálpebras cerradas, e podia até adivinhar onde estavam as pessoas. Será que podia saber? Mamãe, mamãe. Encostara-se em sua mãe.

_Aurelinha, ficou maluca menina, andando de olhos fechados dentro de casa – era a voz da mãe numa repreensão límpida.

Não, mãe, eu estou cega, agora eu sou cega – pensava muito em dizer, porque também sabia que era mentira, e a mãe saberia que era mentira, e não choraria. Como ria, ria muito de se contorcer sozinha, quando se imaginava morta e a mãe, o pai, o irmão, a irmã e a cunhada chorando. Mas até a cunhada? Sim, a cunhada também choraria. Todos chorarariam, porque ela seria uma defunta alegre dentro de um caixão comum cheio de flores. Então se deitava na cama, esticando-se toda, juntando as mãos junto ao seio: pronto estava morta, estava morta e sorria. Uma defunta que sorria.

Mas ser cega era mais ameno, porque poderia continuar viva sem ver o existir. Assim doeria menos existindo. Ser cega seria fácil. Muda e surda também, não ouviria tanta bobagem. A voz, ela sabe, seduz. Como seduz a voz. Não, não ficaria surda!

Quando chegou nesta casa, neste bairro achou-se a menina mais feliz, porque acreditou que o mundo adulto logo iria abraçá-la; mas agora vive se perguntando: Onde está o mundo adulto que não vem me pegar? De verdade, sem perceber que era tão real, sonhava com um mundo adulto que vinha a galope num cavalo. Cavalo, cavalo, sim, Aurelinha corre para o portão para ver as carroças passarem. Mesmo aqui existem carroças trotando a todo instante? Que lugar mais absurdo para se ver passar carroça. O asfalto corre pela rua, embora no quintal tenham tantas árvores com frutos: abacateiro, mangueira, pitangueira logo junto do muro, até jaqueira que é tão imensa e atrai tanto abelhas como moscas.

-Aurelinha! A voz chama de lá de dentro. Sem voltar, ela sabe, porém pensando: o que se pode ter tanto para se fazer numa casa? A mãe inventa, inventa...

Aurelinha parou de pensar, mas tem algo dentro de si que bate como um tique-taque de um relógio que avisa que a dor continua. Aurelinha se apoia no vão do portão, roí as unhas. Olha para as próprias unhas já cansadas de ser ruídas, cospe tudo com nojo.

A rua tem movimento?

Tem um movimento que ela não pode entender. Era como se fosse cega sem precisar fechar os olhos para isto. Por que as coisas tomam seu lugar sem susto? Tomam assim devagar como poeira assentando em cima dos moveis, procurando os cantos onde vassoura não pode chegar.

Um dia eu varro tudo e algo que parecer ser não vai ser nada...

Eu sei que tudo é inquietante, tudo é intranquilo como o dentro de si – ela pensa, ri, roí as unhas novamente, cospe com o mesmo nojo – sei que tudo está se movendo, movendo, movendo. Tem tanto movimento que até as coisas paradas rangem.

Abriram uma cortina de aço em uma loja logo na esquina. Ouve-se, dali da onde ela estar, ruídos de aparelhos eletrônicos: meninos se perdem pelo à toa.

Ela é intranquila por isto, que ela sabe do movimento das coisas – que silenciosas – rangem, rangem como moveis velhos.

Sabe, eu vou ficar aqui admirando este céu tão azul, mas tão azul que me dói as vistas. Ela ouve a voz da mãe chamando de lá de dentro da casa. Chama, chama, mas não tem coragem de chegar aqui e a buscar com violência.

Seria um grito tão fino quanto a dor do existindo vendo tudo, das coisas sempre em movimento perplexo.

Leva a mão ao seio, onde acredita ser o coração porque com esta mão que leva até aí pode sentir que bate, bate vivo, movendo-se como as coisas imóveis também se movem, rangendo como moveis velhos.

Se eu fechar os olhos – escapa quase como o desejo insano de um suicídio – se eu fechar os olhos, mas, ainda assim, de que adiantaria, dar para ver a áurea, como uma cor leve em sombra invadir minha visão. Se eu pudesse ter sido cega antes desta calamidade, eu não sangraria em vão. Porque nunca teria visto, nunca imaginaria. E se eu explodisse uma bomba no meu pensamento, e meu pensamento não existisse mais, e eu livre como um pássaro ganhava o céu azul, este sim de se admirar, porque não se movia.

Mas assopra, assopra forte que é o que se chama de vento. Com olhos fechados, Aurelinha sentiu o vento no seu rosto pálido de cera, nos seus cabelos desgrenhados de cor que não se definia. Um soluço secreto dentro de si: ela não definia, mas sabia da ausência, assim como de olhos fechados podia muito acreditar, saber, mesmo sem ver em íris.

_Estou morta, mãe, morta – balbuciava como que rindo na brincadeira, com as mãos junto ao seio, cruzadas, que era o que mais assustava a mulher que a parira.

_Pare com isto menina tonta, para com isto – saía a mulher desarvorada, aborrecida, de volta para cozinha.

Aurelinha abria assim os olhos, continuando na pose, mas imaginava pelo silêncio rangedor da cozinha, que a mãe procurava acidentes para consertar.

-Ela é tão mentirosa quanto o silêncio, tão mentirosa quanto o silêncio.

Abriu os olhos, em frente ao portão. Riu pesado, com força de quem desabava dentro de um escombro. Por dentro era se partindo. A bicicleta se aproximava, ela vendo primeiro as rodas negras da bicicleta tomando cor de poeira.

Um dia eu varro tudo e algo que parecer ser não vai ser nada...

Ela viu a bermuda jeans dele, viu os tênis no pedal, e logo roendo as unhas via ele todo, com os cabelos pretos e longos escondendo os olhos de um bêbado louco. Segurou forte um baque do tique-taque do relógio vazio dentro dela: eu estou sangrando por dentro, dentro do que eu não sei o que é...

Será que alguém olha assim para alguém? Este olhar entre cabelos que caiem nos olhos, nos lábios tão carnudos, que será que vai dizer alguma coisa.

Avise que estou morta – diz para dentro da que se colocou daquela forma, fazendo da própria cama o ataúde.

Assim acaba este sofrimento.

Por enquanto, no por enquanto que roí as unhas, finge olhar o céu, bem que o sofrimento ainda devia continuar.

Faz de conta, como faz de conta que morre, como faz de conta que é cega, faz de conta que ele parou com a bicicleta do seu lado. Ela pode ver de perto seus olhos, pode sentir o cheiro de meia suja dele, pode ver de pertinho seu bigodinho nascendo tênue e embaixo no queixo quase um cavanhaque, entre os lábios tão polpudos – como uma fruta que ela queria morder – ela pode ouvir aquela voz grossa como de um zumbido de besouro. Olha lá, olha só, o besouro zumbia longe, longe...Ele disse: vamos conversar? Disse, disse tanto isto como quem diz ela mesma ouvindo os outros dizerem: a nossa pobre menininha, tão pequena, tão novinha está morta, morta. E vai crescendo a insistência dele como cresce o desespero dos seus familiares diante da “morta”: vamos conversar? Senta-se na calçada, besouros zumbindo longe, longe daqui, mas será perto dela está voz.

Evanesce… É quente mesmo sentindo o sopro do vento como carícia do azul do céu. Ele foi passando assim, deixando aquele imaginário aroma de meia suja.

Por que eu acho que ele cheira a meia suja? Ele é tão lindo como obsceno, e por isto ele cheira a meia suja. Eu sinto, de olhos fechados, eu sinto, como tento sentir a música, sentir a morte no faz de conta. Mas por que o acho obsceno? É o olhar, o olhar de um devasso, entre os cabelos _ que cobrem o rosto – em desalinho. Ele cheira a meia suja, e é tão obsceno como lindo. Sonho dentro de um ataúde que é sonho obsceno, com ele deitado do meu lado.

_Aurelinha é tão boba, dar um soluço, se escapou como o vento, quer fugir como o azul que despede o dia.

_Aurelinha! Insiste a voz da mãe lá dentro depois de um tempo que nem foi calculado – ou será que não houve este tempo. A aproximação que dava a realidade a impedira de ouvir o mais nada, nem mesmo o silêncio rangedor de moveis velhos.

_Mamãe me ajuda, ajude-me mamãe, estou com uma dor que não sei onde dói.

_Menina ver se não me apoquenta com suas ideias – disse aquela que a parira, dobrando roupas no sofá da sala – que diacho de dor é esta?

_É...Eu não sei explicar, e como se moessem o meu estomago – disse Aurelinha tão angustiada, prestes a chorar.

_Será gastrite? Perguntou aquela que a parira realmente preocupada.

Outro dia perguntara a vendo sorrir vazio de frente a geladeira que abrira:

_E a dor?

_Que dor? Devolveu a pergunta com um copo na mão.

_Oras, menina a dor que era como se moessem seu estômago?

_Continua; apenas finjo às vezes que não sinto.

O pai logo chegou, de óculos, calvo, cheirando a bebida alcoólica:

_Aurelinha quero que fale para mim sobre está dor.

_Que dor? Foi ela de novo, mas angustiada.

_Sua mãe me contou...

Então se fingia de dormir antes do pai chegar. Era como o faz de conta que está morta, o faz de conta que está cega, o faz de conta que o cheiro de meia suja tão perto ali na calçada conversando. Apenas o vento no seu rosto era bem mais real, talvez até a dor fosse de faz de conta, mas o fato era que a dor doía, e ela não sabia onde era a dor. Disse para si mesma esperando a angustia no portão: A dor é um faz de conta tão real, que às vezes chego a acreditar que pode não ser faz de conta.

Todavia a toda esta quase ilusória confabulação, se tem uma pergunta com algum sentido: E a noite? O segredo que Aurelinha guarda é o medo da noite, mesmo que o medo da noite é um faz de conta, que antes – quando real – ela agora afasta ainda procurando.

Mas se eu arriscar, se eu arriscar, afinal este faz de conta quer me libertar desta prisão diurna. Quase não vejo estrelas, nem lua cheia assim bem de pertinho com cara no céu de tampo negro – pensa, pensa enquanto vai realizando.

Espanta-se com a noite toda iluminada, embora não seja a primeira vez que a tenha visto. Nossa, então se é compreensível que aquela cortina de aço ainda esteja bem aberta. Daqui do portão dar para se ouvir a algazarra dos meninos. Respira fundo – bem antes olha para os lados para ver se ninguém vai olhá-la – tentando sentir o cheiro de meia suja vindo pelo vento. Dar aquele soluço espantado, é um riso, mas finge para possíveis ouvintes – que lembrou-se dos parentes – que é um soluço. O repete, para ficar mais convincente, e vai o repetindo, até que diz baixinho que não é só para si mesma, mas como se fosse: passou...

_A Aurelinha tem reclamado da dor? Ela fazendo de conta que dormia, ouvia a voz do pai inquirindo a mãe.

_Que dor? Era a voz da mãe se esquecendo, afinal a própria esquecera.

Aurelinha tentava manter o faz de conta, mas vinha a realidade de rir, de rir assim...Sem se segurar. Ria, mesmo perseverando a vontade de manter o faz de conta.

_A tal dor que é como se moessem o seu estômago?

_Acho que isto é loucura desta menina. Ela inventa tanta loucura...

A cunhada às vezes vinha com o irmão e falava assim, chegando no quarto dela, abanando as mãos de unhas pintadas:

_E namorado, Aurelinha, está na hora de arrumar um namorado.

E ela foi assim andando, andando além do portão, fingindo brincar de amarelinha sem limite. Deu um riso surpreso para uma casa vizinha onde no muro tinha um gato em pose de um jarro. O gato pareceu piscar para ela, virando logo o rosto num faz de conta que é despeito. Sim, faz de conta, afinal gatos não tinham motivos para ter despeito de alguém.

A cunhada deu um grito, esbaforida, pela casa. Aurelinha não aguentou e se riu desfazendo o faz de conta morta quando a mãe voltara para ver o que era. Já era de se esperar isto de Aurelinha.

Mas ninguém sabia do seu faz de conta do cheiro de meia suja na calçada de sua casa dizendo: vamos conversar...Um zumbido de besouro, um lindo zumbido de besouro.

Suspirou forte, descobriu redescobrindo que a noite cheirava a jasmim. Por acaso não já a tinham dito que dama da noite é uma flor que só cheira a noite, e seu cheiro é quase como de jasmim. Entontece o segredo, mas ela quer o cheiro de meia suja.

O que acontece com quem me ver encostada à toa aqui neste poste? Sim, uma menina fazendo de conta que é louca, mas muita gente me conhece. Ele está lá, e ouço seu zumbido de voz que é como besouro, violento a brigar com uma máquina, todo seu corpo freme. Se há outros meninos? Há, mas não os vejo. Apenas vejo aquele. Os lábios que dar vontade de morder como se morde uma fruta polpuda.

Foge, foge, ele estar me olhando. Olha-me porque descansou da máquina e finge que presta atenção no que o outro faz. Ele também usa este faz de conta, só que tanto pode ser eu como o seu amigo o alvo do faz de conta; então faço de conta que sou eu o alvo do seu olhar oblíquo, e que o seu faz de conta é prestar atenção na vez do amigo a brigar com a maquina.

_Mãe, a dor que não sei onde voltou – falou chegando muito próximo dela o prato de comida – acho que a comida não vai descer.

_Aurelinha pare de inventar estórias, menina, que este negócio de dor que você não sabe onde já estar me aborrecendo – foi dizendo aquela que a parira, já lavando a louça que se criara.

_Mas mãe, eu não sei onde doí, se eu soubesse te diria – falou aflita, querendo afastar o prato, mas o cheiro do tempero da mãe a dava um apetite.

Eu vi bem, vi bem que seus lábios tremiam assim, brilhando úmidos na lâmpada incandescente da lojinha de parafernálias que endoidavam a juventude. Pareceu dizer alguma coisa, porque eu cheguei bem perto, muito perto – eu no faz de conta que fora comprar uma ficha para jogar, brigar com aquela máquina; a mulher do balcão até me olhou como se eu fosse, desocupando-se de cutucar as unhas encardidas com um grampo de cabelo que nem se usa mais – senti o cheiro de meia suja, este cheiro existia – embora fosse tão faz de conta quanto todo faz de conta, mas existia por que era o que me fazia arrepiar – e seus lábios, ah eu – no faz de conta – os mordi como mordi a maçã de verdade de tão vermelha que era dentro do supermercado, e o segurança me chamou a atenção: Menina, não pode comer nada dentro do estabelecimento – como papai também disse quando eu mordi a maçã sem lavar: menina tem que lavar primeiro, pode ter verme.

Sabe, acordei de um susto...

Aurelinha falava ainda na dor:

_Será que é pitanga demais?

_Deve ser – disse a mulher que a parira, não se desocupando de consertar a casa já tão bem equipada – você só vive comendo estas porcarias. Pitanga é cítrica, faz mal ao estômago em demasia. Coma mais melancia, mais água de coco, coisas mais suaves para o estômago.

Eu acho, faço de conta ou acho não tenho bem certeza que mordi aquela fruta polpuda que são os lábios dele. Senti o gosto da saliva dele, gosto de meia suja, mas gostoso. Seu olhar obsceno foi bem mais claro, objetivo do que ele que parecera que dissera algo. Mas seus olhos como que me embebedaram assim jogando-me naquele poste do à toa, que fiz de conta ser uma louca para os que me vissem. Mas o poste era frio, frio, mas seu corpo - mesmo pela blusa – quente. Hum estou com o gosto da saliva dele, o gosto daquele bigodinho obsceno como seu sorriso e seu olhar, seus olhos em cabelos desalinhados pelos olhos; nos braços que pude apertar.

_Mãe a senhora já sentiu está dor? Perguntou abrindo a geladeira, para se refrescar, foi que sentira um calor.

_Que dor menina? Era aquela que a parira querendo fechar a geladeira que ela abrira à toa.

_A dor, que moí o meu estômago – respondeu virando as costas para olhar o fundo do quintal, e reparar que o passarinho era tão livre, mesmo sem ser surdo, nem cego, nem fazendo de conta ser nada disto, nem morto. O passarinho voava, andava aos pulos pelo quintal, e se vinha perigo voava ligeiro como o seu desejo de faz de conta.

_Acho melhor levá-la a um gastro – fora aquela que a pariu informando – vou conversar com seu pai hoje quando ele chegar.

Sim, o pai chegando com aquele enjoado cheiro de bebida alcoólica, eca, que nojo, mas...Um cheirinho de meia suja, provando assim nos lábios como que morde uma fruta escondido no escuro. Uma fruta sem lavar! Ou roubada de uma mercearia, escondida do segurança do supermercado! Ah – leva um susto desfeita do disfarce, cansada de esperar que a mãe chegue no quarto e a flagre assim, mas é por que... – lembrou-se que...Sentira, não seu braço forte. O que mais? O que mais? – um tique-taque barulhento dentro do seu relógio vazio, que a agita toda. Se pudesse rir, faz de conta que é a dor para não rir.

Encontrou um lugar escondido a poeira. Mas um dia eu varro tudo e algo que parecer ser não vai ser nada. Riu cascateante, agitada, podia se ouvir mais alto do que o silêncio poeirento entrando pelas janelas, pelas portas, da algazarra dos meninos lá na cortina de aço já descerrada; embrulhou tudo depressa: a mãe, vem aí – ouve os passos – a mãe vem aí.

Estende-se na cama – está livre para vir o que vinha antes e tem quase certeza que não foi faz de conta, era apalpável como a fruta que são seus lábios – coloca as mãos juntas ao seio, os pés muito juntos. Ela vai chegar, e vou segurar a respiração, porque quero segurar o pensamento que não é faz de conta, não é faz de conta...Estou morta, morta mesmo, todos podem chorar por sua menininha...

...Que nasceu uma mulher!

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Cabo Frio, o8 de março de 2005-03-08

Autor: RODNEY ARAGÃO.