Conto de amor

Um burburinho baixo e um velório lotado. As pessoas chegavam falantes e sisudas, desdobrando-se em demorados cumprimentos. O local estava claro e com poucas flores amarelas e pequenas, como sorrisos de despedida. O mês era Dezembro, ensolarado e perfeito em fazer as pessoas refletirem. Sobre a vida, o futuro, o que gostariam que fosse diferente. O que gostariam que finalmente fosse.

Dentro do caixão, uma senhora de pele rosada e cabelos ralos, grisalhos e bem penteados em torno do rosto. Um vestido elegante e azul. Um ar de quem estava em paz. Eram quase setenta pessoas e o espaço estava quase totalmente preenchido por colegas de profissão, amigos, alguns primos e parentes. Dona Ângela não tinha filhos, nem marido, mas vivia cercada de pessoas que a estimavam muito.

Ela era jornalista desde a juventude e ajudava instituições de apoio a crianças e adolescentes. Era realizada e útil, e seus dias, repletos de uma doce incompletude à qual já estava habituada. Ali, próximo ao caixão, uma faixa pequena era uma das poucas e singelas homenagens oferecidas a ela.

De súbito, um homem sério e de espessa barba negra aproxima-se de Ângela. Bem vestido e discreto, não chamou a atenção de nenhum dos presentes. Acariciou as mãos da senhora, enquanto uma lágrima silenciosa descia-lhe pelo rosto molhando suave o colarinho da camisa.

Não era bem dessa forma que imaginava reencontrá-la. Dizem que a morte traz à mente um filme detalhado que permite em poucos segundos a observação isenta de um pólo a outro da existência, e deve ser verdade. O filme de Ângela, interrompido, estaria sem final. A despeito de ser ele feliz ou não.

Ela, aos quatorze anos, indo estudar pela primeira vez em escola pública, encontra-o. Inteligente e sorridente, o melhor aluno da turma e dono de uma personalidade forte e uma voz doce que a acompanhava todas as manhãs. Tornaram-se amigos, namorados e confidentes em uma relação que durou durante todo o ensino médio. Aos dezoito anos, Ângela, aprovada no vestibular, foi cursar a faculdade em outro município. Ele, tendo a graduação em direito iniciada a pouco, ficou. Seus pais possuíam escritório de advocacia e trataram de encaminhar-lhe a vida.

Ao fim do curso, Ângela começou estágio em uma revista local. Vinha visitar os pais somente uma vez por mês, enquanto ele, foi passar um ano fora, em um curso de especialização. Não se viram mais. De desencontro em desencontro, ele casou-se com uma boa moça, amiga dos tempos de faculdade. A família queria vê-lo estabelecido na vida o quanto antes. Seu pai faleceu e ele ficou responsável pelos cuidados com a mãe.

Ângela trabalhava muito. Participava de simpósios, ministrava oficinas de escrita e ajudava de perto as ONGs às quais dispensava muito carinho e cuidado. Principiou um noivado, que durou pouco mais de quatro meses. Deixou na gaveta. Chegou a vê-lo apenas uma vez após esse período, por ocasião da formatura da sobrinha. Já maduros, jantaram, conversaram, sorriram, trocaram segredos como na adolescência. Por algumas horas foi como se não houvesse tempo passado, exceto pelos sinais no rosto e pela aliança dourada no dedo dele. Respeitosamente retiraram-se da vida um do outro, pela segunda vez.

Com o tempo passado, ele ficou viúvo após um triste acidente de carro. Passou a cuidar do filho único e dos escritórios. Ela, enterrou os pais e tinha como refúgio uma prima mais nova que lhe fazia companhia no pouco tempo que tinha livre. Somente os retratos amarelados e intactos permaneceram. As poucas cartas guardadas como tesouro, assim como a saudade.

Não houve tempo para um último encontro, um último beijo, um último segredo trocado apenas através do olhar. Ângela adoeceu gravemente. Talvez os pulmões... apenas um mês hospitalizada, e já muito debilitada, faleceu.

Quisera que de seu sono pudesse ver agora quem lhe segura delicadamente as mãos! Quem lhe beija suavemente a testa. Quem não lhe esqueceu um dia sequer, embora em caminho oposto. Quem daria tudo por uma nova chance. Certamente acordaria se pudesse, para uma última oportunidade. Porém, as oportunidades são ariscas e escorregam... os ponteiros do relógio não voltam, por maior que seja o desejo. Os anjos, também não voltam. Morre-se apenas uma vez e depois disso, segue-se o juízo. O amor não tem juízo e nem pés no chão. Vive distante, nas nuvens. E nas nuvens, meu caro. Nada se firma, tudo se dissolve. Suave como a areia caída aos poucos sobre o caixão.