Se essa rua fosse minha

A cobiça envenenou a alma do homem... levantou no mundo as muralhas do ódio e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios.

Criamos a época da velocidade, mas sentimo-nos enclausurados dentro dela.

- Charles Chaplin

Quanto tempo leva para o coração aceitar a realidade que ele vive? E doloroso pensar em como ele é impiedoso, cruel. O tempo. Desde outubro está rua nunca mais foi a mesma, quando demoliram as casas do Bairro de Laguna a fim de construir o novo frigorifico na cidade mais de 13.000 pessoas foram desabrigadas, nos primeiros meses a prefeitura tentou de algum modo encobrir o seu erro colocando a parte carente da sua população dormir nos ginásios locais das escolas, mas a quantidade de pessoas era absurda e acabou atrapalhando gravemente o desenvolvimento das escolas.

Sem teto ou mesmo roupas decentes, mais de 13.000 pessoas voltaram a perambular pelas ruas, aqueles que tinham seus parentes a quem pedir socorro conseguiram apelar um grito de socorro, mas as que realmente precisavam perderam a sua voz, mudos, e assim miseráveis acabaram ocupando cada pedacinho sujo da cidade, becos, pontos e calçadas. O prefeito desistindo acabou por os apelidarem de pragas, espalhando panfletos pelos muros com os dizeres dolorosos de sua chamada “ infestação de ratos ”.

Segurando firme com as duas mãos coloco pressionado ao peito minha sacola com quatro pães, tudo que o meu pouco dinheiro conseguiu, o cheiro no ar é podridão, as bocas de lobo são frequentemente utilizadas como sanitários pelos mendigos, tento veementemente respirar apenas pela boca, caminho alguns passos hesitantes enquanto desvio de um grupo de crianças maltrapilhas que choram altos, atrás uma mulher de aparência cansada que aparentemente parece ser a mãe dos meninos, seu rosto é amarelado e pelos olhos vermelhos já deixa claro como está drogada, meu coração aperta enquanto paro de caminhar.

— Ei, meninos venham cá ! – me ajoelho no chão cobrindo meus joelhos com a longa saia bordo que estou usando, desconfiados um dos meninos de aproxima, o mais velho dos 4 garotos – Como você se chama garoto?

— Rodrigo moça – seus pequenos olhos estão fixos em quanto enquanto sua voz é muito baixa, tenho que me esforçar para ouvi-lo. Respiro fundo engolindo uma boa dose de coragem.

— Devem estar com muita fome, peguem isto – Entrego ao pequeno Rodrigo a minha única refeição do dia, os quatro pães quentes na sacola, ele revista a sacola a apalpando com desconfiança, ao ver que é são de verdade seu rostinho se ilumina, esqueço minha fome imediatamente.

— Moça você é um anjo ! Que Deus lhe abençoe moça, Deus lhe abençoe... – suas mãos gordinhas me rodeiam em um abraço apertado, mas antes que eu retribua o garoto sai correndo com seus irmãos.

A passos lentos volto a caminhar de mãos vazias, passo da esquina quando escuto o leve roçar de assas no ar, já consigo enxergar o bosque da solidão me rodeando, fecho os olhos respirando do ar puro, fico naquela posição por longos minutos aproveitando estar livre de toda aquela podridão no ar, sem ratos ou animais de esgoto, mas a paz nunca dura muito, sempre apenas breves instantes, é quando eu ouço a sua risada, uma gargalhada gostosa em meus ouvidos. Ele sempre vem me ver.

— Sabes que doar-se aos outros abdicando a si mesma não trará de volta, não existem bochechas para o que foi borrado. – Gabriel, o anjo se encontra minha frente, sentado no ganho mais alto da arvore.

— Eu coloco virgulas e assim continuo, não posso ousar um ponto final que foi tirado de mim – meu sorriso frouxo não convence nem a mim mesma, com um fluir rápido de asas ele chega até mim, percebo que boa parte de suas penas já caíram e mais uma trilha delas cai marcando o pedaço por onde ele voou, enxergo sangue em suas costas, a verdade me atinge como um tapa. Seus braços me rodeiam apertado e pela primeira vez noto, ele está tremendo.

— Se eu roubei, se eu roubei teu coração... tu roubaste, tu roubaste o meu também. – seu sussurro é forte, e em um último suspiro suas casas caem ao chão encharcando suas costas de um sangue tão rubro quanto minha saia, tiro minha blusa jeans e o envolvo nela o mantendo em meus braços. Posso sentir seu coração as pressas agora também. Humano.

— Se eu roubei, se eu roubei teu coração. ... é porque, é porque te quero bem – envolvo minhas duas mãos em suas maças do rosto, ele fecha seus olhos e então com um beijo lentamente desaparecemos no bosque, até não restar nada.

Bianca Todt
Enviado por Bianca Todt em 06/04/2016
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