Um conto por Mabel - Parte IV

Foram três encontros mais, três belas tardes em que caminhamos entre as árvores à beira do límpido riacho que corria aos fundos da propriedade do convento. Estevam me contava todas as novidades da cidade, a bela Londres que crescia fervilhante... ele também me contava coisas sobre as estrelas e a cada nova coisa que ele me dizia eu sentia meu mundo se estender um pouco mais... eu o admirava. Mas como toda a beleza é efêmera, nossas belas tardes se findaram. Em nosso último encontro, enquanto nos despedíamos com um beijo leve, Agnes, uma das irmãs responsáveis pelos cuidados com o jardim, nos avistou. Não me estenderei com os detalhes da dramática luta que travei pela minha liberdade de amar Estevam, nem descreverei o sermão que os pais dele discursaram. Aquele dia foi como uma terceira morte para mim... passou-se um mês inteiro até que eu tivesse alguma notícia dele. Agnes, apiedando-se do meu sofrimento, veio contar-me que Estevam iria ser mandado para a América, para cuidar de uma propriedade familiar, lá ele deveria se casar com uma jovem indicada por sua família e então me esquecer para sempre. Meu coração partiu-se e eu senti toda a esperança se esvair de mim junto com minhas forças. Meu mundo se tornara mais uma vez escuro e solitário.

Sons de pedra no vidro da minha janela me acordaram no meio da noite, eu estava sonolenta e só despertei de todo quando a segunda pedrinha se fez ouvir. Receosa, puxei o fino tecido da cortina cinza e não pude acreditar no que via. Era Estevam. Eu abri a janela para ele e permiti que ele entrasse se esgueirando pela sebe:

-Estevam! O que fazes aqui? Perguntei, jogando-me em seu abraço e sentindo o seu perfume, uma mistura de canela e algo irreconhecível.

-Vim levar-te! Estou de partida para a América, consegui passagem em um navio para duas pessoas, não é muita coisa, mas, se quiseres, poderemos tentar uma nova vida num mundo diferente, onde poderemos ser felizes.

- Mas Estevam... e teus pais, pretendes deixá-los e a tudo que conheces?

Ele então olhou-me profundamente, pousou sua mão em meu rosto e com um sorriso tênue fez brotar lágrimas em meus olhos:

-Não preciso de nada... não sei viver num mundo onde tu não possas estar comigo. Venha, abandone a tudo por mim também!

Acenei com a cabeça e me pus a fazer minha mala. “Somente o necessário”, ele me disse. Peguei meus livros mais preciosos, vesti-me rapidamente, apanhei minhas luvas, casaco e chapéu. Estava pronta para segui-lo para onde quer que fosse.

Havia uma certa inquietude e uma pressa em seus modos... ele olhava freneticamente para os lados enquanto atravessávamos o jardim em direção aos fundos do convento. Passamos pela ponte e ele me ajudou a subir na sebe... saltou o muro e me ajudou a descê-lo. Ele tinha pressa e puxava minha mão... enquanto corríamos pela pequena alameda, em direção à cidade, ele me disse:

-Temos que ser cautelosos, meus pais puseram vigias sobre mim. Tivemos uma discussão muito acalorada durante o jantar e eu acabei ferindo o meu pai. Vamos entrar nos túneis de escoamento para que ninguém nos veja e vamos pegar um coche que nos levará até o porto mais próximo.

Adentramos o túnel e ele me segurou:

- Mabel, use isto. – prendeu um colar de pérolas negras no meu pescoço – Coloque isto na sua maleta – deu-me um embrulho cujo conteúdo me fez saber ser joias de sua mãe, dadas a ele em sua fuga – Não perca nada disso. Se algo me acontecer, siga nosso plano, vá para o mar e pegue o navio para a América – Deu um beijo em minha testa e voltou a me puxar.

Àquela altura eu já sabia que Estevam matara o próprio pai. Confesso que temi por um instante, mas ele me resgatara novamente. Eu o amava. Seguimos pelo túnel de escoamento ouvindo ruídos por todos os lados, tínhamos a impressão de ser seguidos, mas nossos passos eram firmes e ligeiros para a nossa liberdade. Corremos pelo que me pareceu ser uma eternidade até que chegamos ao fim do caminho. Ele tirou de sua própria maleta, uma pequena serra e se pôs a abrir caminho... já podia ouvir o claro ruído da rua e ouvimos alguns gritos de ordem... Estevam apressou-se para que pudéssemos pegar o coche. Ele saltou a grade serrada e me fez saltá-la também. Tomou a minha mão e andamos um pouco pela depressão em que o túnel desembocava, abaixados e cautelosos, ele olhou por cima, para a rua, cujo nível era acima de onde estávamos, e abaixou-se rapidamente.

-Há guardas... penso que me procuram... minha mãe... ela deve ter dito algo! Venha!

Ele olhou novamente e me fez subir. Ele mesmo subiu nossas maletas e me puxou para traz de uma árvore. Ordenou-me que fosse ao encontro do cocheiro e lhe desse a direção. Disse que me seguiria assim que notasse ser seguro.

Eu fiz o que ele pediu, apresentei-me ao cocheiro e este me ajudou a embarcar. Naquele momento tudo foi tão rápido, não tive sequer tempo para assimilar o que aconteceu de fato. Enquanto subia no coche, ouvi um grito, uma briga feroz se desenrolou entre Estevam e um dos guardas, este puxou um revolver e disparou um tiro em Estevam que corria em direção ao coche. Ele caiu e eu quis ir até ele, gritei para que parassem, mas o cocheiro segurou-me firmemente. Estevam gritou para que eu partisse enquanto tentava, ainda, correr para o outro lado da rua. Eu tentei me soltar...

- Estevam!!!

Chorando e em desespero vi quando o segundo tiro foi disparado e uma dor aguda em meu peito me fez desmaiar.

Não gosto de lembrar-me daqueles dias. Dói-me, ainda hoje, sentir o cheiro doce da canela... acordei já ao alvorecer dentro do coche.

- O menino me disse pra leva-la direto ao porto, mesmo que qualquer coisa acontecesse a ele. O menino gostava muito de você. Você deve seguir o que o menino disse e não olhar pra trás. Disse-me Samuel, o cocheiro.

Eu não pude responder a nada, estava em choque... estava como morta. Muito tempo se passou até que eu pudesse entender tudo o que acontecera e até hoje eu ainda não compreendendo de todo o meu infortúnio. Dias depois, dentro do navio em direção à América, tomei coragem para ler a carta que encontrei entre as joias que Estevam me deu. A carta era breve, mas muito cálida:

Amada Mabel,

Hoje é o dia mais feliz da minha vida. Hoje eu finalmente pude fazer algo por ti. Não quero que te lembres deste dia com pesar, quero que te lembres com amor. O infortúnio e a tristeza sempre rondaram a minha existência. Desde a morte de meu irmão mais velho, Ricardo, todas as aspirações de meu pai recaíram sobre mim, todas as responsabilidades e expectativas. Todos os meus dias eram vazios de significados, cheios de afazeres... eu estava vivendo a vida de outro alguém. Não tive um dia sequer de verdadeira felicidade ou tranquilidade até o dia em que te reencontrei. Tua presença encheu a minha vida de luz e de propósito. Aquelas tardes ao teu lado foram de longe os dias mais felizes da minha vida. Tu sempre me disseste que eu havia te salvado da tua morte, mas eu nunca te disse que fora tu quem salvara a mim. Hoje, cometi um crime terrível. E por ele serei condenado... pela justiça humana ou pela justiça divina, devo morrer. Se tu tens esta carta em mãos, significa que meus dias se findaram. Quero que entendas que tudo o que eu pudesse viver daqui pra frente, tudo o que eu pudesse ver ou sentir ou fazer, não se igualaria ao dia que trocamos o nosso primeiro beijo. Nada na vida poderia me fazer mais feliz do que ter o teu amor. Sinto-me pleno e cheio de significado, portanto, não chores por mim, antes vivas. Vivas para fazeres todas as coisas que planejamos. Vivas para veres coisas novas e para que distribuas a tua cativante presença àqueles que precisam. Vivas para teres filhos e veres os filhos dos teus filhos brincarem no jardim de tua casa. Vivas intensamente cada minuto, sabendo que eu te amo e te amarei para a eternidade.

Pra sempre seu, Estevam.

Fechei a carta, beijando-a. Molhei-a com minhas lágrimas enquanto me abraçava a ela. Saí para o convés do navio para dar uma volta, um belo pôr-do-sol no mar me aguardava. Debrucei-me na amurada, li a carta mais uma vez e então joguei-a no mar.

Hoje, mais de 60 anos passados, relembro-me de Estevam, que me resgatou três vezes, para dizer-lhe, no leito de minha morte, que eu cumpri a nossa promessa. Vivi... tive filhos e vi os netos de meus netos, andei a cavalo, voei num zepelim, olhei as estrelas através de telescópios e pude estuda-las, vi estradas de ferro serem construídas e pude velejar em lagos de paisagens maravilhosas... vivi, Estevam. E agora vou para ti. Abraço a morte como a uma amiga, para que ela me conduza até você.

Alanis de Louvain
Enviado por Alanis de Louvain em 13/04/2016
Reeditado em 14/04/2016
Código do texto: T5604349
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