Desejo de Ébano

Era verão, em uma tarde ensolarada de domingo, ela tomava seu banho de cheiro para ir ensaiar. Negra da cor da noite sem lua, seus grandes olhos de jabuticaba buscavam o melhor óleo para espalhar por seu torneado corpo. Seios firmes e quadris largos faziam de Gabriela a mulata mais cobiçada e vistosa da escola de samba Unidos do Barranco. Depois de untar-se com óleo de violeta e alfazema, vestiu uma confortável calcinha de cor preta e soutien da mesma cor e como uma cobra deslizou um rodado vestido de pedrarias. Colocou sua sandália salto XV e treinou novamente os novos passos que criara enquanto brincava com os cabelos encaracolados embaixo do chuveiro. Satisfeita com o resultado alcançado, pegou as chaves do carro comprado com suor e paixão, um modelo importado e imponente e partiu avenida a fora para fazer aquilo que sabia de melhor: Sambar na cara das inimigas.

Naquele domingo calorento, a escola do Barranco estava em festa, afinal de contas, faltara apenas alguns dias para o glorioso desfile de carnaval. Os diretores afinavam os instrumentos com perícia para que cada batida fosse executada com maestria ímpar. Pouco a pouco mesmo faltando horas para o início do ensaio, os integrantes das alas e os moradores próximos chegavam ao grande complexo do samba. Homens solteiros e casados, adolescentes, crianças, mulheres solteiras e agarradas a seus companheiros, todos queriam conferir as surpresas preparadas pela bateria Empurra que é Melhor e ver Gabriela, a rainha dos requebrados em mais uma noite de gala. No vai e vem das pessoas que transitavam na grande quadra Leandro observava toda movimentação com alegria e uma excitante curiosidade. Como morava em uma cidade em que o carnaval ainda era comemorado à moda das marchinhas, ficou extasiado ao ver o movimento e ansiedade das pessoas com relação ao desfile que falaria do amor do homem aos animais que estava se aproximando. Menino homem do interior morava em um pequeno sítio que ficava distante pelo menos uma hora e meia a pé da cidade mais próxima. Cabelos loiros e olhos verdes ainda compunham o rapaz tímido e que após a chegada da internet e suas comodidades pudera fazer amizade com Plínio um rapaz descolado da cidade para que começasse a frequentar as maravilhas que a cidade grande dispunha. Como ficaram muito amigos, sempre que havia folga em suas atividades, transitavam entre interior e cidade grande firmando assim uma parceria de irmãos. Como nunca havia participado da magia do carnaval da cidade grande, Plínio resolveu fazer uma surpresa a Leandro levando ele a sua escola do coração. Sentaram-se em uma mureta que havia do lado esquerdo da quadra e por instantes vislumbraram incrédulos a grande quantidade de pessoas que iam e vinham buscando um melhor lugar para se divertirem.

Enquanto a tarde caía de forma esplendorosa deixando o céu multicolorido, alguns ritmistas formavam fora do barracão uma grande roda de samba: Banjos, cavacos, repiques de mão e tantãs, além das vozes que clamavam clássicos do gênero pagode em alto e bom som colocavam até aqueles que estavam mais sonolentos para dançar. O início do batuque parecia um prenúncio à chegada das passistas que ensaiavam em um clube alguns metros adiante e Gabriela que todos aguardavam até de certa forma ansiosos. Animado com o partido alto entoado pelos presentes, Plínio e Leandro foram chegando mais próximos a grande roda de samba, batendo na palma das mãos os refrãos mais conhecidos. Entre uma música e outra os olhos de Leandro congelaram quando a roda de samba se abriu e com graciosidade, sensualidade e muito requebrado Gabriela adentrou com as outras passistas o centro da roda de samba. A cada requebrado, o coração de Leandro que já batia no compasso das melodias parecia querer pular do peito. Seus olhos acompanhavam os movimentos de Gabriela de cima abaixo, direita e esquerda, para trás e para frente. Percebendo o frenesi do garoto que a observava imóvel, Gabriela, pipa avoada nos assuntos do coração aproximou-se dançando colada a ele e sentindo o forte cheiro da colônia emprestada por Plínio já que onde morava não tinha ocasiões para perfumar-se. Sentiu os pelos do corpo eriçarem ao sentir o cheiro do perfume da preta que como uma mola dançava a sua frente e dizia baixinho seu nome de forma com que só ele entendesse. Continuaram naquele jogo de sedução velada durante três músicas quando ela ainda dançando afastou-se pedindo para que a procurasse ao final do ensaio. Vermelho e vendo que todos o olhavam incrédulo, já que Gabriela não dava trela aos homens da comunidade, Leandro afastou-se tentando esconder-se da multidão que já comentava sobre ele e foi refrescar-se tomando um refrigerante. Enquanto tomava uma golada, recriava em sua mente as cenas tórridas que havia acabado de viver. Não acreditando no que havia passado, buscou um guardanapo branco na televisão cinza e passou sobre a testa que ardia em brasa e lhe fazia brotar gotas de suor. Recostou-se na pilastra que tinha às suas costas e ficou ali imaginando como seria seu primeiro beijo de verdade.

Todos estavam a postos! A bateria após um esquenta com todas as suas bossas, já estava posicionada ao centro da quadra e os cantores com suas vozes magistrais já esperavam a largada para cantar o hino e o samba enredo que seria defendido daqui a poucos dias. O presidente, emocionado com tamanha adesão das pessoas a campanha da escola, com eloquência agradecia a todos os seguimentos, dos porteiros aos ajudantes de barracão, mestre sala e porta bandeira, harmonia, bateria, baianas e à imensa comunidade que lotava as dependências. Depois dos agradecimentos e gritos de guerra, o ensaio incendiou a Unidos do Barranco. A plenos pulmões, a comunidade cantou o samba da escola deixando claro que as rivais deveriam se desdobrar para tirarem o título daquela gente. À frente da bateria, Gabriela requebrava-se mostrando a todos os novos movimentos que treinara mais cedo durante o banho, deixando rivais e passistas boquiabertas. Seus movimentos, semelhantes aos de uma cobra com seu encantador deixavam todos boquiabertos com tamanha sensualidade porém delicadeza que tratava o riscado. Sambava e rodopiava como se aquele momento fosse único e somente dela. De vez em quando, voltava-se para os camarotes onde Plínio e Leandro acompanhavam à sua maneira o desenrolar dos trabalhos. Enquanto fitava o seu ébano, Leandro sentia um calor tomar seu corpo e seu rosto ruborar quando Gabriela rodopiava e lhe mandava infinitos beijos. Encorajado por Plínio, desceram e se misturaram ao povo que cantava e dançava rodando o barracão até suarem em bicas. Brincaram e se divertiram até que o mestre da bateria, um velhinho simpático ordenasse a seus comandados a última passagem do samba e posteriormente o final daquele ensaio. Quando o último acorde do surdo de primeira ecoou, já estavam em frente a uma carriola tomando mais um refrigerante para recobrarem as energias. Enquanto isso, Gabriela atendia a todos que a cercavam com alegria e simpatia, tirando fotos, selfies, sorrindo e falando da sua expectativa quanto ao desfile que seria em poucos dias.

Enquanto refrescavam-se Emília uma das passistas da escola, chamou Leandro de canto e lhe deu instruções de como encontrar Gabriela sem que eles fossem vistos. Pediu que saísse rua afora e que lhe aguardasse próximo à praça que tinha como referência a padaria de seu Joaquim que àquela hora já estaria fechada. Leandro, mais que apressadamente saiu rumo ao local do encontro deixando Plínio avisado sobre o que haveria por vir. Gabriela, após atender a todos os pedidos gentilmente, saiu à francesa para encontrar o garoto do interior que deixou seus sentidos à flor da pele. Deu a partida em seu veículo e saiu sem que pudessem notar sua ausência, eram onze e quinze quando isso aconteceu.

Ás onze e vinte e dois, um carro importado encostou junto à calçada e ao abrir do vidro, Leandro, ouviu finalmente a voz que tanto imaginava em seus pensamentos gentilmente pedindo para que ele entrasse no carro para partirem dali. Saíram rumo ao Mirante do Santo João, local afastado da cidade e que naquela noite estaria iluminado apenas pelo clarão da noite. Durante o trajeto, conversaram brevemente, deixando que o desejo de se possuírem falasse mais alto. Chegaram ao mirante no auge da lua cheia, em plena meia noite somente com suas respirações e corpos ali presentes. Gabriela saiu do carro e contemplou o brilho da sua somente de lingerie, tomando um belo banho de lua que iluminava sua pele preta realçando sua cor. Deitou-se no capô do carro e ficou ali, contemplando a cidade que daquela vista era pequenina e uivando de felicidade. Leandro não acostumado a situações como aquela ainda ficou dentro do carro apenas apreciando o banho de lua da menina mulher da pele preta, até que ela sedenta por amar o chamou a sair do carro e lhe possuir ali mesmo.

Naquela hora da madrugada a lua cheia ofuscava o brilho das estrelas. Leandro de forma tímida apreciou o corpo de Gabriela tocando-o gentilmente e ao mesmo tempo apreciando a forma com que ela deslizava para enrolar o corpo dela ao dele. Beijaram-se de forma ardente, colocando seus corpos em chama, e amaram-se por toda a madrugada, emaranhando cabelos, mordidas, línguas e bocas. Conheceram seus corpos por completo, e potencializaram o máximo que puderam o momento de prazer que partilhavam. Contemplaram o amanhecer do mirante, dando bom dia ao sol e ao laranja que tomava conta dos céus antes dos demais. Como “pipa avoada” que era Gabriela tratou de levar Leandro de volta ao ponto de encontro e com um beijo doce, desejou que os dois um dia pudessem se encontrar novamente. Partiu arrancando e deixando seu perfume entranhado nos poros de Leandro que jurava a si mesmo que mais uma vez teria nos braços a mulher com quem teve sua primeira vez.

O desfile da Unidos do Barranco foi um espetáculo e rendeu a escola pela primeira vez o título de campeã do carnaval. Na festa do campeonato, a bateria mais uma vez deu show com suas paradinhas e seus integrantes cantando a plenos pulmões o samba que contagiou a avenida. Leandro, na ânsia de reencontrar Gabriela tratou de vir a cidade grande e com Plínio seu amigo foram à sede da escola acompanhar as festividades. Ao avistar Gabriela, radiante, sambando e rodopiando viu seu coração acelerar e mais uma vez ruborar as bochechas. Tentou uma aproximação para marcar um encontro porém viu que sua amada estava nos braços de outro rapaz que a cortejava como um mestre sala. Gabriela ao ver a tristeza no rosto de Leandro sorriu maliciosamente e voltou suas atenções novamente à bateria que agora entoava a canção É Campeã! Lembrando-se que a negra mulata era “pipa avoada” para as coisas do amor, Leandro continuou ali, observando embasbacado o gingar de Gabriela a mulher com quem teve sua primeira experiência nas cousas do amor, sua primeira amante, seu desejo de ébano. E a festa foi até as tantas da manhã da quarta-feira, que nublada varria as cinzas de mais um carnaval.

Marcelo Almeyda
Enviado por Marcelo Almeyda em 23/06/2016
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