Proposta em Vias de Fato 11- A viagem(continuação)

Depois de muitos dias, quando Lídia deu nova tonalidade à rotina, chegou às sete em casa resolvida não sair,era quinta-feira, início do horário de verão; o sol não tinha saído do cenário. Resolveu lambiscar alguma coisa e aproveitar a antecipação para o sono.

Deitou cedo, tinha costume de dormir somente com o abajur ligado ao lado da cama. Acomodou a cabeça ao travesseiro, e logo estava em repouso absoluto.

Depois daquela noite de sono começou cheirar princípio de verdade o fato do tempo e espaço serem objetos de estados, dimensões de consciência...mas parou por aí. Afinal, ao acordar, estava na consciência de sempre, com aquilo que sempre tinha sido, a cômoda posta em frente à cama, o ventilador de teto do quarto( precisando de limpeza), e o relógio despertador dizendo que era hora de levantar .

Inexplicável, viveu tanta coisa, que depois de contada, trazida para o campo do que consideramos o “real”, tornou impossível ficar somente na alegação de que ocorreu em um sonho, nas oito horas dormidas, e nada mais.

Viu, inserida num ambiente recheado de surrealidade, as cores... tonalidades das entrelinhas daquelas que conhecia, sintonizavam entre si formando um cenário nunca visto. Homens e mulheres transitavam nas calçadas cravejadas em rubis, esmeraldas e safiras, seus sapatos reluziam de um material desconhecido, tinham ciência das cores cujo resultado era de um brilho inigualável. A postura dos transeuntes era de pessoas finas no trato, seres de um nível superior de entendimento; sem hesitar cumprimentavam uns aos outros numa reverência de mestre para mestre; cujos destinos indicavam qualquer lugar que comungassem com o espírito que portavam.

Lídia sentiu envergonhada, não pelo que era, mas por estar intrusa em um mundo que não era seu, certa que a intuição lhe dizia que o caminho da aprendizagem nesta vida muito tinha a caminhar em excelência, intrepidez,vontade, e trabalho. Ficou ali, para disfarçar o espanto, aproximou-se de um banco feito de mármore branco, e acanhadamente sentou; olhou para o alto, viu que era coberto pela sombra de uma frondosa árvore, carregada em frutos vermelhos, constituída de pequenos gomos formando o desenho de um coração; caiu um sobre seu colo, arriscou degustá-lo, que doçura!! O doce de um doce nunca experimentado, não deixou um no talo.

Acalmou-se ainda mais, o alimentar daquela fruta assentou-a do desconforto de estar. Tornou como que observadora, passou a analisar as vestimentas daquelas pessoas que circulavam. As mulheres vestidas de trajes finos, de vários forros, tocados pelo vento, as cores contrastavam entre as do arco-íris, que iam se sobrepondo numa tonalidade que ascendia como que da escala musical. Na postura no andar demonstravam a feminilidade aflorada, com expressão de inteligência, aliada à beleza estética de corpo, sóbrias e discretas na sensualidade. Os homens, com passos levemente ritmados, calças e camisas feitas de um linho de qualidade superior à conhecida, de tonalidades neutras, bege, cinzas e marrons, chapéus de abas curtas, a masculinidade expressa no todo do corpo. Todos, indistintamente, caminhavam seguros do que eram.

De onde estava tinha a panorâmica da circunferência local, parecia ser ambiente público, de circulação notória, as casas, grandes edifícios, de uns e outros, vários andares.

A arquitetura das construções neste plano terreno... nunca viu, as dimensões, estruturas, cores, estilos, todas as caracterizações de uma engenharia e arquitetura requintadas, inusitadas, ficou diminuta enquanto humana do nosso planeta terra diante do grau avançado da ciência praticada por aquela raça. O ecossistema que integrou desde então, despertou em si a conexão com outra frequência de ser, estar, fazer, e conviver.

Assim pensando, passou por si um senhor segurando um cajado, cabelos e barbas brancas, vestido de um conjunto de calça e bata brancas; via-se um anel no dedo indicador direito, cravejado de pedra verde musgo. Olhou para Lídia, percebeu que notou sua presença, tinha os olhos negros como que da cor de jabuticabas. Fixou seus olhos nos daquela mulher; aproximou-se e numa reverência cumprimentou-a curvando levemente a cabeça, respondeu com a sua (tinha visto este modo de cumprimentar em filmes orientais). Aquele senhor sentou ao seu lado, encostou o cajado no banco e como num monólogo passou a falar, para surpresa de Lídia, no nosso vernáculo:

“O que existe em baixo, assim é acima, somos em essência participantes do ponto zero da criação”.

“A fonte da água da vida serve a todo aquele que crê, e realiza, em si, não deixando no ontem o que pode, no hoje, criar em renovo”.

“Eu Sou, tu És, ele É, nós Somos, vós Sois, eles São”

“Venho de muitos ontem, de muitos renasceres, refiz a rota da vida centenas de milhares de vezes, até da matemática transpus, nunca desisti do Ser, em si”

“Do sorriso da criança e do choro de um homem, aprendo com os dois, no caminho.”

“Do lixo e da fortuna, do fracasso e do sucesso, saí deles deixando as veste, lá.”

“Enjoei de amar, sofrer, desisti de resistir. Ser, onde e como queiro, como sempre fui.”

“Meu olhar mudou de ótica e com ele mudei de lugar humildemente, na paciência exigida para estar... na eternidade”.

“As sedes, fomes, necessitei do alimentar de uma variedade de alimentos, fartei-me, satisfiz até o enfastiar de todos que quis, surgiram outros, pulei como macaco, de galho em galho, até olhar para o próprio rabo e ferindo mordendo-o, descobrindo a charada, desaparecendo a fome e a sede”

O silêncio foi a pausa que aquele sábio permitiu ao seu entendimento para que catalisasse tanta informação que vinha daquelas palavras faladas por meio dos adágios expressos. Olhava pala ele numa admiração que chegava às curvas do prazer sentido, seu interior gritava regozijo, suas palavras traziam ao seu ser a festa almejada, sua vontade era pular em seu colo e beijar sua boca por longo tempo, queria agradecer e sentir nos lábios o calor de sua fala.

Conteve os excessos, ele, numa maestria que demonstrava ler sua mente, sabedor do arquétipo de mulher que era, olhou novamente nos seus olhos, deu um sorriso compassivo, em êxtase de felicidade. Começou a solidarizar com ele, sorriram como crianças em festa; levantou-se e convidou Lídia a dançar. Interessante que não havia som de música no lugar. Não negou o convite, levantou e envolta em seus braços dançaram em movimentos sincrônicos, tinha sentido, parecia que dançavam em salão de festa nos palácio da aristocracia europeia do século XVIII. Ele, na medida em que a conduzia na dança, irradiava de si um semblante luminoso, seu calor era de temperatura aconchegante, acolhedora, pacificadora.

Não cansou, o corpo não pedia parada, repentinamente interrompeu a dança, soltou das mãos de Lídia, foi até o banco, pegou o cajado, despediu-se dela, curvando levemente a cabeça, e partiu andando como peregrino em direção a uma das ruas que se estendia daquela praça.

Márcia Maria Anaga
Enviado por Márcia Maria Anaga em 23/07/2016
Código do texto: T5706589
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