Muito próximo de um coração selvagem.

Escrito quando Clarice Lispector, tinha vinte anos de idade, o livro tem como protagonista Joana, que narra sua história em dois planos: sua infância e o início de sua vida adulta. A literatura brasileira era, naquela altura, dominada por uma tendência essencialmente regionalista, com personagens contando as dificuldades da realidade social do país na época. Seja pelo caráter existencial, ou o seu poder magnífico individual. E você é assim, me encanta (não sei se é bem essa a última frase que eu gostaria de construir, Joaz. Mas na falta de criatividade ela está aí).

Espero não demorar muito em Angra, mesmo que eu chegue por volta do meio dia, acredito que consigo resolver as coisas dentro de quatro horas. Desembarco, vou ao banheiro da rodoviária, escovo os dentes. No passar da escova entre um dente e outro penso que talvez dessa vez consiga te encontrar, mas deixo a ideia de lado. Desde a última tentativa não penso mais sobre você, ou eu, ou alguma coisa que nos envolva.

Lembro a forma como nos conhecemos. Uma história para contar aos amigos, todos reunidos em uma choperia, e nesse tempo eu talvez já tenha deixado a barba crescer sem me preocupar, e você se sinta um pouco mais rendido, sem se preocupar em perder o ônibus de volta para a casa. Linda essa história com a qualquer eu deixei de pensar. Mas, eu lembro que era domingo, e eu costumava não me incomodar com o que os outros caras iriam achar de mim. Eu acho que sempre fui o tipo de pessoa que deixou de ser retraído aos dezesseis anos, no curso de teatro no centro comunitário de uma cidade grande, muito grande e sempre engarrafada. Mas, eu não me importo muito com as coisas, ou se me importo perco o interesse rapidamente, não me prendo muito, mas não sei dizer se sou livre. Conversamos algumas horas, eu até desci pelas escadas, evitando os elevadores, quando fui comprar cigarros, para não perder a rede do celular. Em um noite construímos uma vida, engraçado. Eu lembro que comecei a me importar com você, se iria gostar de mim, se eu não estava magro demais, ou gordo demais, ou barbudo demais, ou se minhas roupas não eram legais, ou se eu precisava cortar o cabelo. Lembro que me inscrevi na academia e achei que iria ficar super definido em uma semana, ou pelo menos dar um jeito no meu corpo mal distribuído. Você disse não se importar. E eu fiquei muito nervoso e sem jeito.

Eu precisava dar um jeito nisso, até porque as coisas iriam mudar, sempre mudam. Então eu deixei de te ser no Facebook, liberando espaço para eu voltar ao que eu sempre fui, desinteressante.

Finalmente nos encontramos, e você é muito mais bonito pessoalmente do que em fotos. Você é mais baixo do que eu pensava, e é dessa forma que eu consegui imaginar e sentir meus braços passando pelas suas costas e te apertando contra mim, sem poesia, só uma vontade bastante sexual, sentindo seu corpo contra o meu, te prendendo em mim, te explorando.

Pedi que escolhesse um lugar, porque eu não sabia o que estava fazendo. Eu não só não sabia onde ir, como também estava perdido no que fazer. O "me importar" é um território mais ou menos novo para mim, e eu quis causar uma boa impressão. Começamos a conversar e você era exatamente tudo o que disse ser. Eu às vezes penso que você constrói esse papel estranho por algum motivo, mas fico na dúvida se não estou enganado, talvez você seja assim. Que olhos bonitos você tem. Eles se assustaram quando eu disse que você demonstra ser uma pessoa carente e por isso atrai pessoas absurdamente carentes, até porque apensar de você ser um cara muito bonito, elas criam empatia com você. Eu faço uma expressão interna, de ganho com essa frase, eu a sinto dentro de mim, e talvez você tenha odiado esse momento. Estamos na nossa terceira cerveja, você parece estar inquieto, me pede desculpa por olhar tanto o relógio, diz que tem medo de perder o ônibus. Eu começo a pensar que estou com uma roupa escrota, que normalmente uso quando não estou muito a fim de ver as pessoas, ou estou atrasado. A roupa de alguém que não se importa.

Você parece mais interessante a cada segundo. Tenho mais vontade de estar perto de você do que de transar com você. Você diz que poderia dormir na casa da sua amiga, que está excitado. Eu tenho uma sensação engraçada, de que eu preferia continuar conversando com você, passar a noite em qualquer lugar, de fazer qualquer coisa, e se o sexo rolar, então seria legal, mas que talvez não seria esse o mérito. Tenho vontade de ficar mais tempo com você. Fechamos a conta. Andamos por uma onde os prédios pareciam pardieiros, eu não consigo parar de te olhar, mas não estou empolgado ou apaixonado. Você para e me beija. Eu penso que sou um idiota frouxo, eu não deveria ter deixado você me beijar primeiro, eu deveria ter tomado a situação, te puxado, te prendido e dominado a situação. Não consigo, eu me importo com você, sou um frouxo. Estou nervoso, a bebida vai embora, minha excitação vai embora. Acho que nunca mais vamos nos encontrar. Continuamos andando pela rua do pardieiro, ela está escura, tenho vontade de te agarrar, nos beijamos mais vezes. Penso que gostaria que essa rua não tivesse fim, ou que eu deixe de ser frouxo, que eu deixe de me importar. Te puxo, te beijo. Quero te colocar contra a parede, te prender ali. Você parece estar se divertindo. Diz que não pode perder o ônibus. Mas uma vez eu me importo. Quero poder te ver mais vezes, então eu te solto, mas não deixo de tocar. Minha excitação alterna entre existir e não existir. Chegamos ao seu destino, a entrada da UFF, penso em te beijar, mas não sei o que você quer. Estou sendo muito frouxo. Tenho o olhar um pouco perdido, você fica com a expressão vingativa, percebe que eu não sei mais o que fazer. Você me abraça e se vai. Tenho vontade de pedir que não vá, mas onde nós iríamos? Estou sem dinheiro, tenho o suficiente para ir embora, e então não te ver nunca mais. Viu como estou me importando? Tenho medo agora e isso é estranho e engraçado, essa confusão, esse mal entendimento que começo a ter de mim mesmo. Penso que se você quisesse eu faria qualquer coisa, e qual cara não faria qualquer coisa por você? Você sabe que todos fariam, que todos gostariam de ter um momento com você, ou a eternidade, a vitaliciedade. Eu gostaria.

No dia seguinte eu resolvi tudo o que tinha para resolver, com exceção da prefeitura que está com cortes e fechou antes das duas da tarde. Eu enrolo um pouco, vejo se você se interessou, se quer me ver, se também se importa. Preciso parar de pensar, então eu paro, me preparo. Acabo te enviando uma mensagem, gostaria de me despedir, pelo menos deu para se despedir, você diz. Eu aperto um sorriso, te abraço, você precisa entrar na aula. Gostaria de te ver novamente. Não me importo se você tem dinheiro ou não, eu talvez me organizaria para te ver todos os dias se fosse preciso. Faria o que fosse preciso, e eu até pensei em me mudar para Angra, mas percebi que talvez estivesse exagerando. Nesse momento o mundo depende de você. Estou frouxo, me importo. Crio uma certa raiva de mim mesmo, não sei o que isso significa. Estou no ônibus de volta, pensando em você. Estou gargalhando de mim mesmo, confuso. Eu não sou uma pessoa carente, nem estou, não sei o que pensar sobre, ou não posso dizer a verdade.

O fato é que quero te ver novamente, deixar rolar, te trazer para essa mesa de amigos, e entre uma cerveja e outra contar a forma como qual nos conhecemos. Quero te mostrar os shows que rodam no projetor do meu quarto, minha coleção de cds, meus livros da Françoise Sagan, rir do modo como você lida com as coisas, de dar atenção, sem planos, ou com planos... quem se importa? E talvez a leitura ser caleidoscópica, como a protagonista do livro de Lispector, que ora tem uma cor, ora outra, conforme o momento "real" ou onírico. As cores dançam no enredo misturado ao cenário e às sensações da menina-mulher-amante. Deixar você desfilar na vida do meu personagem. Te ter no momento que tem que ser.

Yuri Santos
Enviado por Yuri Santos em 30/10/2016
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